03 abril 2023

Protestos na França

Como a França chegou à atual onda de insatisfação popular?

Julia Braun/BBC



Milhões de manifestantes nas ruas francesas. Cerca de 10 mil toneladas de lixo acumuladas nas ruas de Paris. Postos sem gasolina após greves nas maiores refinarias nacionais.
Afinal, o que está por trás da atual situação na França?

A reforma da Previdência

A raiz da onda de insatisfação popular atual é uma reforma no sistema previdenciário assinada pelo governo de Emmanuel Macron em meados de março. Ela aumenta a idade mínima de aposentadoria de 62 para 64 anos para a maioria das categorias.
O governo argumenta que a reforma é necessária para sustentar a Previdência, algo cada vez mais difícil diante da queda na proporção entre trabalhadores ativos e aposentados.
Só em 2021, as despesas com pensões custaram quase 14% do PIB francês aos cofres públicos, quase o dobro da média dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Segundo um relatório de especialistas encomendado pelo governo, essas despesas podem ainda levar a um déficit de 10 bilhões de euros por ano entre 2022 e 2032.
Mesmo com a mudança, a idade mínima para aposentadoria na França ainda é mais baixa que a de vizinhos europeus, como Alemanha, Reino Unido, Bélgica, Holanda, Espanha e Itália, onde ela varia entre 65 e 67 anos.

No Brasil, atualmente a idade mínima para aposentadoria por idade é de 62 anos para as mulheres e 65 para os homens, com tempo mínimo de contribuição de 15 anos. A regra foi estabelecida pela reforma aprovada em 2019, durante o governo de Jair Bolsonaro.
Mas o sentimento de revolta na França também está ligado à maneira como a reforma foi aprovada.
A coligação de Macron perdeu sua maioria na Assembleia Nacional nas eleições legislativas de 2022. Com isso, o governo não conseguiu o apoio necessário para aprovar a reforma por meio dos parlamentares e precisou acionar um dispositivo especial da Constituição, chamado de 49-3, que permite que a mudança entre em vigor sem aprovação legislativa.
O recurso foi criticado por membros da oposição e incitou ainda mais os protestos.
Para a professora da Universidade Queen Mary e especialista em política francesa Rainbow Murray, a ação do governo foi vista por muitos como “um atropelamento da democracia parlamentar e da vontade do povo”.
As manifestações
Com tudo isso, o país chegou ao seu décimo dia de manifestações populares na última terça-feira (28/3).
O número total de pessoas nas ruas varia intensamente de acordo com a fonte. Mas, segundo um dos principais sindicatos do país, só na terça-feira mais de 2 milhões de pessoas compareceram aos atos em toda a França, meio milhão delas apenas em Paris.
Já o ministério do Interior e as forças policiais parisienses contabilizaram cerca de 740 mil e 93 mil franceses nas ruas de todo país e da capital, respectivamente.
No ato da semana anterior, o governo havia contabilizado 2 milhões de manifestantes em toda a França.
E enquanto a maior parte se mobilizou de forma pacífica, foram registrados confrontos entre alguns grupos e as forças de segurança.
Em um dos dias mais violentos, mais de 450 pessoas foram detidas pela polícia nacionalmente e 903 focos de fogo foram acesos pelos manifestantes nas ruas de Paris.
E ao mesmo tempo em que as ruas foram tomadas, diferentes categorias organizaram greves. Com isso, aeroportos, escolas e refinarias de petróleo foram afetadas, fazendo com que cerca de 17% de todos os postos de combustível do país relatassem falta de pelo menos um tipo de combustível.
Os agentes de limpeza pública, para quem a reforma da Previdência prevê a mudança da idade mínima de aposentadoria de 57 para 59 anos, também pararam por vários dias.
Dessa forma, imagens de ruas em Paris repletas de lixo viraram cena comum nas últimas semanas, elevando o temor de um problema de saúde pública.
Tema-bomba
Mas essa não é a primeira vez que cenas desse tipo são registradas na capital. Nos últimos 30 anos, todas as tentativas de reformas previdenciárias foram recebidas com manifestações, greves e protestos de sindicatos.
Segundo especialistas, há um componente próprio da França: um histórico de resistência a mudanças no sistema previdenciário, além de uma longa tradição de movimentos sindicalistas e populares.
Segundo Rainbow Murray, a forma como a sociedade francesa vê a aposentadoria influencia na reação às mudanças anunciadas recentemente pelo governo.
“Os franceses são muito apegados à ideia de uma longa aposentadoria financiada pelo Estado, especialmente aqueles em profissões mais desgastantes fisicamente e menos agradáveis — para quem uma carreira mais longa é uma perspectiva pouco atraente”, diz.
O próprio Emmanuel Macron já enfrentou dificuldades para aprovar propostas do tipo. No final de 2019 e início de 2020, durante seu primeiro mandato, um movimento semelhante foi organizado diante do anúncio de um projeto para unificar todos os 45 regimes de pensão do país.
O governo também chegou a pressionar por uma mudança na idade mínima para aposentadoria, mas decidiu adiar o projeto quando o país entrou em lockdown por causa dos primeiros casos de Covid-19.
Mas a reforma é uma promessa de campanha de Macron e foi incluída em seu plano de governo. E ele já disse várias vezes que não pretende abandonar seus planos.
“Vocês acham que eu estou gostando de aprovar essa reforma? Não”, disse o presidente em uma entrevista televisionada. “Quanto mais demorarmos, mais o déficit vai crescer.”
“Essa reforma não é um luxo, não é um prazer, é uma necessidade.”
Crise política
A crise atual é o primeiro grande obstáculo enfrentado por Macron em seu segundo mandato.
Pesquisas mostram que a aprovação de seu governo caiu 4 pontos percentuais em um mês, e está atualmente em 30%.
Além disso, a crise levou o governo a enfrentar duas moções de desconfiança na Assembleia Nacional, que não passaram.
Se alguma das votações tivesse sido bem-sucedida, a primeira-ministra Élisabeth Borne e todo o gabinete de governo teriam sido derrubados, a reforma anulada e Macron teria que formar um novo governo.
Mas, segundo especialistas, a crise pode se aprofundar ainda mais. Há quem tema uma revolta social maior, semelhante à registrada em 2018 contra reformas fiscais e sociais, conhecida como movimento dos coletes amarelos.
Para a cientista política Rainbow Murray, a insatisfação popular também é uma resposta ao próprio estilo de Macron de governar.
“Macron é um político convicto e faz o que acredita ser o melhor, mas pode passar a impressão de ser arrogante e indisposto a ouvir a população. Ele até ganhou o apelido de presidente dos ricos porque dizem que muitas de suas políticas beneficiaram mais os cidadãos ricos do que os trabalhadores”, afirma.
As críticas feitas ao presidente por utilizar um relógio luxuoso em uma entrevista sobre a crise são reflexo dessa impressão passada pelo presidente.
Segundo sua equipe, ele tirou o relógio porque estava fazendo barulho na mesa durante a transmissão. Mas, para os críticos, o objeto de luxo simboliza a falta de contato dele com a população.
Houve quem dissesse que o relógio valeria até 80 mil euros, o equivalente a R$ 450 mil. Mas o governo divulgou que ele usava um modelo personalizado de um relógio que custa na internet entre 1.660 e 3.300 euros, ou R$ 9,4 mil e R$ 18,6 mil, sem a personalização.
Muitos analistas franceses dizem que Macron, que é de centro-direita, perdeu a maioria na Assembleia Nacional justamente por sua forma de governar e por seus planos econômicos.
Enquanto isso, a direita radical, representada pelo partido União Nacional, de Marine Le Pen, conseguiu um resultado histórico e multiplicou por 10 seus representantes na Assembleia.
E especialistas dizem que toda a repercussão negativa da reforma previdenciária pode abrir portas para um crescimento ainda maior da direita radical na França.
Segundo uma pesquisa divulgada em 19 de março, 26% eleitores votariam no União Nacional caso as uniões legislativas fossem realizadas hoje. São 5 pontos percentuais a mais do que há 5 meses.
Perdas econômicas?
Há quem diga que as greves e manifestações pesariam nos bolsos da França, mas diferentes economistas descartaram grandes perdas, apesar dos efeitos no mercado de combustíveis e transportes.
A economista Emmanuelle Auriol, da Escola de Economia de Toulouse, disse à BBC que estima um impacto de algo entre 0.1 ou 0.2 ponto percentual no crescimento trimestral do PIB francês.
Mas ela afirma disse que o efeito não deve ser uniforme. “Alguns setores são mais atingidos do que outros”, disse.
Já o governo e outros apoiadores da reforma dizem que a economia que pode ser alcançada com a mudança previdenciária é imensamente superior a esses eventuais impactos econômicos das paralisações.
A luta política na base da sociedade https://bit.ly/3FZNuve

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