22 abril 2023

Uma crônica de Karina Buhr

BUEIRO

Karina Buhr/Revista Continente

 


A tampa retangular em cima
 do bueiro redondo, parecendo aquele brinquedo de criança, de encaixar. Antes um monte de galho seco, feito um fauno emergindo das profundezas, pra adiar um pouco a morte da pessoa que atravessa e dificultar a passagem dos carros, que deveriam agradecer, mas xingam a ideia do cara do final da rua que impede a queda num buraco desse e a pessoa de ir até o centro do inferno em chamas. Um dia medíocre, nada bom nem ruim demais ao alcance dos olhos, vendo daqui da borda da rede, os fios de algodão laranja histérico fazendo um listrado desfocado na minha visão da calçada. Quem passa não desconfia que olho e se olha de volta não me vê, mesmo dando impressão que sim e eu abaixo a cara pra não aparentar vigia, algum interesse na vida alheia. 

Hoje ia ser melhor se fosse um dia de semana, ir pagar alguma coisa ou ganhar alguma coisa pra ir pagar outras, ou só sair, pra realizar um verbo, somente ir. Ideia boa pra esse exato momento também seria mais barulho de carro e menos de música, prefiro zoada de martelete esgarçando viga do que não poder escolher o repertório e esse pensamento parece encomendado pelo meu pai. As roupas estão secando rápido, mas não adianta porque vem toda hora uma chuva passageira o suficiente pra encharcar tudo de novo. O dia vai nessa, virando tarde da noite, a fome não veio, nem a caneta se mexeu, ficou só de vez em quando balançando, trocando de lado pra revezar o braço, segurando um livro que cai de tempo em tempo, das adormecidas que dou, sem prestar atenção na história, só enxergando as letras sem formar palavras, nem os óculos resolveria a falta de foco, ou foco excessivo em outro assunto e aí o livro é vontade que não realiza. 

O celular cai na cara, em mais uma desmoralização da leitora. Na televisão as galinhas engordam, presas no jornal matinal do agro, a pauta do ovo de páscoa caro, a conversa do empreendedorismo na fabricação caseira e venda feliz pra quem é de felicidade e novas receitas - esse ano tem um com dendê - a barreira que derreteu antes da prefeitura chegar, o protocolo antigo nas mãos, desde uns dez desabamentos atrás. Começou a falhar a transmissão do que já sei, as chuvas de abril, os tempos se repetem, a inundação agora foi maior. A televisão piorou e perco as novidades de sempre. Caiu um raio em alguma estação de energia, ou o estardalhaço do pipoco foi caminhão batendo em poste, jamanta descarrilada batendo nele e engavetando em cima da rede elétrica que dá vida às televisões desse lado do bairro, pixels formando outras imagens, feito nuvem de dragão e baleia, trazendo a inovação pro assunto páscoa. Desligo. 

Já é tarde no meu corpo preguiçoso ou desistido e ainda são oito e meia da noite. Queria essa tecnologia de segurar ponteiro e calendário no dia de entregar trabalho, preciso tentar desenvolver, domingar uma terça-feira esculhambada feito a que vai ser a próxima. Um parabéns pra você esfuziante ecoa sozinho no quarteirão, as outras trilhas desligadas. Precisamos aniversariar assim, contentes, comemorar a proximidade maior da morte em grande estilo, agradecer por estar vivo, mesmo às vezes preferindo nem ter vindo, ó! Começar pra ter que acabar sempre é um problema e aí economizar nos começos pode ser um bom empreendimento. Avisar pro pessoal da redação um mote pro próximo coelho da páscoa, pra aquela matéria que quando acaba a seguinte vem anunciada por um "agora vamos falar de coisa boa!". Conversas interiores desconexas, minha cabeça conversando com cabeça minha, diálogo de umbigo de um domingo aparentemente tranquilo, num tempo de fim de mundo, sem saber se abraço a dormência do meu dia ou o caos da realidade. O choro é seco nas minhas cidades alagadas e não há bóia suficiente.

Guerreira da luta e da arte https://bit.ly/3GwFhie

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