18 abril 2023

Uma crônica de Ronaldo Correia de Brito

O NORDESTE E A MEMÓRIA QUE NOS ATORMENTA

Ronaldo Correia de Brito/revista Continente

 

É difícil escrever um romance, sobretudo quando estamos velhos. Mas nem José Saramago nem Alejo Carpentier escreveram jovens. J. M. Coetzee se queixava do peso dos personagens, da dificuldade em carregá-los na velhice. Um memorialista brasileiro, Pedro Nava, escreveu livros volumosos, depois dos oitenta anos. Fizeram grande sucesso e ocuparam a lista dos mais vendidos. Hoje, ninguém os menciona. 

Em plena era do Twitter ainda se escrevem livros folhosos, beirando as mil páginas, ou ultrapassando-as. Estranho porque a leitura e a escrita mais praticadas são as do WhatsApp. Para que e para quem escrever tanto? 

Segundo Octavio Paz, sem épica não há sociedade possível, pois não existe sociedade sem heróis em que se reconhecer. Jacob Burckhardt foi um dos primeiros a advertir que a épica da sociedade moderna é o romance. Mas como chamar de épico um gênero ambíguo, que mal se define entre a crônica, o ensaio filosófico, a confissão autobiográfica, em que cabem todos os experimentos com a linguagem? 

Nos últimos três anos, dediquei-me ao projeto de um novo romance. Para quem ler? Repeti a pergunta. 

Herdei um olhar para trás e volto sempre à mesma história. Mas ela nunca é igual cada vez que a escrevo, pelo menos imagino que não seja. O argentino Jorge Luis Borges afirmava só existirem sete temas na literatura. Esbarrei no primeiro deles, com os riscos de tornar-me repetitivo e monótono. Não tenho culpa se um feminicídio que inaugurou a epopeia da minha família no sertão, há trezentos anos, me impregnou a ponto de imaginar que fui eu que o cometi. 

Tento livrar-me dessa culpa pegajosa narrando o acontecimento, sem nunca conseguir parar de escrever sobre o mesmo tema. Minha família é numerosa como antigamente era o gado nos pastos. Escolheram-me para ouvir suas histórias e memorizá-las, igual às tribos africanas fazem com os griôs. Não imaginavam que também me aventuraria a escrevê-las, supondo poder fixá-las e, assim, livrar-me do peso que guardam. 

É desagradável ter memória, vivemos atormentados por ela. Mais odioso quando não se trata de memória histórica, aquela que se repete sempre igual, o modo como é preservada na família, sobretudo nos homens. Minhas lembranças são reinvenções, sofrem quebras de ritmo, acréscimos, decréscimos, a ponto de se afastarem do fio condutor inicial e parecerem outra história. Preciso justificar isso a cada livro. 

Suponho que os leitores da Bíblia tenham conhecimento de que, ao contrário do que se imagina, não se trata de um livro ditado por Deus. Tudo nela é criação de poetas, místicos delirantes, narradores cultos. Os homens atribuíram um sentido sagrado a cada palavra, supondo que elas guardam a inquietação do fogo, ou o sossego de uma pedra. 

Algumas vezes desejei escrever um romance com palavras sem pronúncia, iguais, insípidas, inodoras e incolores, moléculas de H2O. Mas sempre sou invadido por sotaques, descubro no processo que cada pessoa é um dialeto e as palavras que brotam delas são códigos genéticos. 

Os acadêmicos não reconhecem o saber fora das salas de aula, é preciso romper com a tirania do suposto saber. Ornitólogos não questionam se os pássaros cantam com acentos diferentes uns dos outros. Por que acadêmicos se incomodam com falas humanas soando desiguais, se escrevendo diferentes do que eles estabelecem em cânones? 

Linguistas lamentam o desaparecimento de muitos idiomas, durante a conquista de povos, como aconteceu nas Américas e na África. Bradam se os registros dessas línguas se perdem como no incêndio do Museu Nacional (RJ). Se alguns choram as perdas numa margem de rio, na outra margem apedrejam diferenças, dialetos, sotaques e regionalidades. Alheia ao que pensam os acadêmicos, a hegemonia de nosso jeito de falar e escrever se consuma na sintaxe do Sudeste, macaqueada sobretudo na televisão, onde se engole e vomita embalsamadas as falas e palavras do Brasil. 

Desculpem o mau humor e o desalento. Um casal de sabiás fez um ninho e pôs três ovos num arbusto de alpendre, em nossa casa. Vieram os saguis e comeram as avezinhas implumes, que nem voar aprenderam. O mesmo fazem conosco das bandas de cá do Nordeste, se escapamos de ser devorados ainda no ninho, atiram pedras em nosso voo. 

Não sei se o meu editor vai aceitar a reescrita da mesma história. É tarde para pensar nisso. Consumi anos em pesquisas históricas, ouvindo pessoas velhas, visitando lugares, lendo arquivos de igrejas. Sobretudo vasculhei a memória, onde empurraram conhecimentos que não escolhi guardar, mas se guardaram. 

Num detalhe pode estar a essência https://bit.ly/3Ye45TD

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