O NORDESTE E A MEMÓRIA
QUE NOS ATORMENTA
Ronaldo Correia de
Brito/revista Continente
É difícil escrever um romance, sobretudo quando
estamos velhos. Mas nem José Saramago nem Alejo Carpentier escreveram jovens.
J. M. Coetzee se queixava do peso dos personagens, da dificuldade em
carregá-los na velhice. Um memorialista brasileiro, Pedro Nava, escreveu livros
volumosos, depois dos oitenta anos. Fizeram grande sucesso e ocuparam a lista
dos mais vendidos. Hoje, ninguém os menciona.
Em plena era do Twitter ainda
se escrevem livros folhosos, beirando as mil páginas, ou ultrapassando-as.
Estranho porque a leitura e a escrita mais praticadas são as do WhatsApp. Para
que e para quem escrever tanto?
Segundo Octavio Paz, sem
épica não há sociedade possível, pois não existe sociedade sem heróis em que se
reconhecer. Jacob Burckhardt foi um dos primeiros a advertir que a épica da
sociedade moderna é o romance. Mas como chamar de épico um gênero ambíguo, que
mal se define entre a crônica, o ensaio filosófico, a confissão autobiográfica,
em que cabem todos os experimentos com a linguagem?
Nos últimos três anos,
dediquei-me ao projeto de um novo romance. Para quem ler? Repeti a
pergunta.
Herdei um olhar para trás
e volto sempre à mesma história. Mas ela nunca é igual cada vez que a escrevo,
pelo menos imagino que não seja. O argentino Jorge Luis Borges afirmava só
existirem sete temas na literatura. Esbarrei no primeiro deles, com os riscos
de tornar-me repetitivo e monótono. Não tenho culpa se um feminicídio que
inaugurou a epopeia da minha família no sertão, há trezentos anos, me impregnou
a ponto de imaginar que fui eu que o cometi.
Tento livrar-me dessa
culpa pegajosa narrando o acontecimento, sem nunca conseguir parar de escrever
sobre o mesmo tema. Minha família é numerosa como antigamente era o gado nos
pastos. Escolheram-me para ouvir suas histórias e memorizá-las, igual às tribos
africanas fazem com os griôs. Não imaginavam que também me aventuraria a
escrevê-las, supondo poder fixá-las e, assim, livrar-me do peso que
guardam.
É desagradável ter
memória, vivemos atormentados por ela. Mais odioso quando não se trata de
memória histórica, aquela que se repete sempre igual, o modo como é preservada
na família, sobretudo nos homens. Minhas lembranças são reinvenções, sofrem
quebras de ritmo, acréscimos, decréscimos, a ponto de se afastarem do fio
condutor inicial e parecerem outra história. Preciso justificar isso a cada
livro.
Suponho que os leitores da Bíblia tenham
conhecimento de que, ao contrário do que se imagina, não se trata de um livro
ditado por Deus. Tudo nela é criação de poetas, místicos delirantes, narradores
cultos. Os homens atribuíram um sentido sagrado a cada palavra, supondo que
elas guardam a inquietação do fogo, ou o sossego de uma pedra.
Algumas vezes desejei
escrever um romance com palavras sem pronúncia, iguais, insípidas, inodoras e
incolores, moléculas de H2O. Mas sempre sou invadido por sotaques, descubro no
processo que cada pessoa é um dialeto e as palavras que brotam delas são
códigos genéticos.
Os acadêmicos não
reconhecem o saber fora das salas de aula, é preciso romper com a tirania do
suposto saber. Ornitólogos não questionam se os pássaros cantam com acentos
diferentes uns dos outros. Por que acadêmicos se incomodam com falas humanas
soando desiguais, se escrevendo diferentes do que eles estabelecem em
cânones?
Linguistas lamentam o
desaparecimento de muitos idiomas, durante a conquista de povos, como aconteceu
nas Américas e na África. Bradam se os registros dessas línguas se perdem como
no incêndio do Museu Nacional (RJ). Se alguns choram as perdas numa margem de
rio, na outra margem apedrejam diferenças, dialetos, sotaques e regionalidades.
Alheia ao que pensam os acadêmicos, a hegemonia de nosso jeito de falar e
escrever se consuma na sintaxe do Sudeste, macaqueada sobretudo na televisão,
onde se engole e vomita embalsamadas as falas e palavras do Brasil.
Desculpem o mau humor e o
desalento. Um casal de sabiás fez um ninho e pôs três ovos num arbusto de
alpendre, em nossa casa. Vieram os saguis e comeram as avezinhas implumes, que
nem voar aprenderam. O mesmo fazem conosco das bandas de cá do Nordeste, se
escapamos de ser devorados ainda no ninho, atiram pedras em nosso voo.
Não sei se o meu editor
vai aceitar a reescrita da mesma história. É tarde para pensar nisso. Consumi
anos em pesquisas históricas, ouvindo pessoas velhas, visitando lugares, lendo
arquivos de igrejas. Sobretudo vasculhei a memória, onde empurraram
conhecimentos que não escolhi guardar, mas se guardaram.
Num detalhe pode estar a
essência https://bit.ly/3Ye45TD
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