Uberização traz novo controle dos modos de vida e de luta dos
trabalhadores, diz pesquisadora
Para Ludmila
Abílio, debate de regulação de trabalho em app é propício mas "campo minado": "as
empresas têm lobby forte". A entrevista é de Gabriela Moncau, publicada por Brasil de Fato
Unisinos
A uberização é muito
mais do que a lógica que rege o trabalho em aplicativos, de onde cerca de 1,7
milhão de pessoas tiram a renda no Brasil, segundo o Ipea. Como uma "nova
forma de controle, gerenciamento
e organização do trabalho", o modelo impacta todas as
profissões e os próprios modos de vida contemporâneos. É o que constata Ludmila Abílio,
pesquisadora do Instituto
de Estudos Avançados da USP e do Centro de Estudos Sindicais e de Economia
do Trabalho.
Se a dinâmica que faz com
que trabalhadores fiquem
disponíveis e sejam recrutados só de acordo com a demanda já está em curso há
décadas, as plataformas digitais trouxeram uma novidade. Com a gestão do trabalho por meio de algoritmos,
conseguem fazer com que a necessidade do trabalhador se engajar permanentemente
para "se manter no jogo" produza dados que tornam o gerenciamento
daquela força de trabalho cada vez mais eficaz.
No caso dos entregadores, esse
"jogo" acontece em um contexto em que as regras – para eles, não para
as empresas - são propositalmente nebulosas. O quanto vão ser pagos por
corrida, o que faz com que pedidos toquem ou deixem de tocar, qual o motivo do
bloqueio no app são exemplos disso – não à toa, sempre aparecem nas demandas de
suas greves.
"O trabalhador tenta lidar
com essas regras o tempo inteiro, mas ele não tem nenhum poder de negociação,
influência e nem de conhecimento sobre o que rege o próprio trabalho dele,
então é um exercício permanente de adivinhação", descreve Abílio.
Se o mundo do trabalho carrega
essas entre suas características contemporâneas, as lutas dos trabalhadores de
aplicativo também envolvem novas lógicas. Entre elas, na visão de Abílio, que é também
professora colaboradora da Sociologia da Unicamp, a organização dispersa, em rede.
"Tem a ver com ser multidão", sintetiza. "E tem uma potência
enorme: os motoboys têm
um poder quase como o dos caminhoneiros. Eles podem interromper os
fluxos", afirma.
Eis a
entrevista.
Você fala
da uberização como a forma contemporânea de subordinação e gerenciamento do
trabalho e, ao mesmo tempo, chama a atenção que ela não se reduz ao trabalho em
plataformas, que tem a ver também com modos de vida. O que é a uberização?
A uberização é uma
nova forma de controle, gerenciamento e organização do trabalho. Isso envolve
uma série de elementos que dizem respeito a como nós, socialmente, estamos
sobrevivendo. Como estamos sendo remunerados, as noções de justiça, de
dignidade, de saúde, de segurança, como elas estão se organizando nesse dado
momento histórico.
A uberização tem
alguns elementos centrais. O primeiro é
a transformação das pessoas em trabalhadores sob demanda. Podemos usar um termo
que é o trabalho just in
time, que tem a ver com o toyotismo, quando falavam na produção just in time, uma grande
transformação que vemos mais fortemente a partir dos anos 1970. É quando a
produção é organizada de acordo com a demanda, eliminando uma série de riscos e
custos, como estoques. Uma coisa é produzir um monte de carros e ter que
vendê-los, outra é produzir o carro quando ele já está vendido. É como o Marx já falava n'O Capital: o ideal do capitalista é uma
fábrica que funcione sob encomenda. Isso é uma produção just in time.
Então olha a complexidade e
perversidade de falar num trabalhador just in time. Ele
vive na mesma racionalidade que organiza a produção - só que ele é um ser
humano. Então, ele passa a ser um fator de produção que é recrutado e usado
quando necessário. Isso quer dizer que grande parte dos riscos e custos que
envolvem o trabalho dele, são transferidos para ele próprio.
E aí as plataformas digitais têm
um papel importante nisso, porque trazem novos meios tecnológicos e políticos
desse gerenciamento. Então, qual é a grande novidade aí? Muita gente já vive
sob demanda há muito tempo no Brasil. Mas passamos a ter uma racionalização e
uma centralização desse controle. Temos 1 milhão de entregadores, 1 milhão de
motoboys, 1 milhão de motoristas subordinados e controlados de forma
extremamente eficiente e racionalizada por essas empresas.
O segundo elemento
da uberização se
refere à informalização.
É tornar o trabalhador formal em informal, mas é mais do que isso. Também é um
processo em curso há décadas e nós que estamos em home office sabemos
do que se trata. É quando as distinções entre o que é tempo de trabalho, o que
não é, o que é local de trabalho, o que não é, o que são custos do trabalho, o
que não são, se informalizam. Isso também se traduz em uma série de transferências de custos para nós
trabalhadores, e também de extensão do nosso tempo e
intensificação do nosso trabalho, numa polivalência em que a gente vai
combinando um monte de coisas ao mesmo tempo, inclusive coisas da nossa vida
reprodutiva.
No caso dos entregadores, essa informalização envolve
a perda de clareza mesmo das regras que regem o mundo trabalho. Mas todas as
regras. Que chegam até na forma como o trabalho é precificado, como é
distribuído para o trabalhador, por que o trabalhador é bloqueado, por que ele
é beneficiado. O trabalhador não sabe mais quais são as regras do jogo.
E parece
que a mediação é sempre com sistemas, máquinas, algoritmos, não é?
Por meio dessas plataformas, de
fato, a gente vê o que chamamos de gerenciamento
algorítmico do trabalho. Ele é criado por meios, determinações
e critérios humanos. Mas o gerenciamento algorítmico possibilita transformar em
dados uma série de elementos do mundo social, que vão sendo combinados para
usar aquela força de trabalho sob demanda de forma mais eficaz. O trabalhador
tenta lidar com essas regras o tempo inteiro, mas ele não tem nenhum poder de
negociação, influência e nem de conhecimento sobre o que rege o próprio
trabalho dele, então é um exercício permanente de adivinhação.
Por fim, tudo isso envolve também
uma transformação - que não é uma superação. Não é que o Charlie Chaplin desapareceu,
aquele modelo disciplinar de um corpo que tem que ser controlado e vigiado
externamente, se não ele escapa. Que é o modelo fordista e taylorista, né? Ele
continua, mas se combinou com novas formas de gestão do trabalho que transferiu
para nós o gerenciamento do trabalho de forma subordinada.
De novo, a figura do home office. Eu sou muito
mais produtiva aqui na minha casa, cozinhando, fazendo mil trabalhos,
respondendo e-mails, etc., do que se eu estiver num escritório com o gerente me
observando. É uma transferência
de gerenciamento, mas eu sou mais produtiva porque estou num
contexto de desemprego, ameaça e concorrência permanente. Então é demandar de
mim um engajamento permanente para eu me manter no jogo.
E essa gestão de si, que a gente
vai chamar de empreendedorismo de si,
na verdade, é assim: você é um trabalhador em que as garantias conquistadas a
duras penas, e que se referiam à responsabilização do Estado e do capital sobre
a sua vida, se esfumaçaram. E você agora é um empreendedor de si, porque você
passa a ser inteiramente responsável pela gestão da sua sobrevivência. E, para
o lado da empresa e até do próprio Estado, você se torna uma pura força de
trabalho. Então, há uma dissociação de algo que move a relação capital e
trabalho, né? E é uma luta histórica a de que o trabalhador não é só força de
trabalho, ele é um ser humano. É como se essa dissociação finalmente fosse
feita. Por um lado, você é força de trabalho e, por outro, na sua vida, você é
um ser humano - se vire para viver como tal.
Como você
vê o debate da regulamentação do trabalho em apps?
É complexo e perigoso. A reforma trabalhista reconfigurou a
definição histórica e muito bem constituída do que é emprego formal. Mudou o
que é considerado o tempo de trabalho. Por exemplo, o tempo que ele anda dentro
da fábrica até o posto dele não é mais considerado tempo de jornada de trabalho. Isso
parece um detalhe, mas é muito sério, pois estamos reconfigurando a ideia do
que é a jornada de trabalho e quem arca com isso.
Os poros do trabalho são
aqueles períodos em que o trabalhador está sendo remunerado, que conta como
tempo de trabalho, mas que ele não produz. Há uma luta enorme do capital para
eliminar esses poros do trabalho e a reforma trabalhista já olha para isso, por
dentro da regulação do trabalho formal.
É preciso perceber que o que
aparentemente é a discussão da regulação do trabalho de entregadores se trata,
na realidade, da regulação
da uberização.
Surge um projeto da deputada Tabata Amaral
(PSB), chamado "regime
de trabalho sob demanda". Dava nome aos bois. Quase
emplacou e parte da esquerda abraçou. E ele fazia essa distinção: o trabalhador
teria alguns direitos sociais, mas só seria remunerado pelo tempo efetivo de
produção.
Estamos em um campo um pouco
minado, porque as empresas têm um lobby fortíssimo
e estão muito bem articuladas. E temos também um elemento que não podemos
desprezar. Os trabalhadores -
apesar de trabalhar 6, 7 dias por semana, mais de 12h por dia - prezam muito a
gestão do próprio tempo. Todos nós prezamos. E parte da rejeição de muitos
à CLT está
relacionada a isso. Não querem voltar à figura que regula e vigia a jornada.
Então tudo isso está em questão.
É um momento propicio, importante
para se discutir a CLT,
o trabalho intermitente,
se é necessário pensar em novos modelos, se podemos nos basear em modelos
existentes - tudo isso está em disputa. E a gente tem que ter muito cuidado
para que o resultado disso não seja uma multidão de trabalhadores MEIs. Ou
uma multidão de
trabalhadores intermitentes. Que vão seguir sendo ferrenhamente
subordinados.
O que te
chama mais a atenção nas lutas de trabalhadores de aplicativo no Brasil?
Se você é uberizado e se
organiza politicamente, o dia que você faz greve, você não recebe nada. E as empresas
ainda vão dar uma série de incentivos para que os outros trabalhem. Então, agir
politicamente nessa história demanda muita coisa. É a sua sobrevivência, da sua
família. Você é bloqueado, é desligado.
E a gente viu com o breque dos apps, claro, surgiram lideranças,
depois os sindicatos aparecem, mas nós sabemos que a organização desse
movimento também envolve novas lógicas, que têm a ver com esse formato de rede.
Tem a ver com ser multidão. A organização é dispersa. E tem uma potência enorme
porque, veja, os motoboys têm um poder quase como o dos caminhoneiros. Eles
podem interromper os fluxos.
E as formas de manifestação deles
também se apropriaram desses elementos. Então, não é só fazer ato com
motocicletas pela Avenida Paulista. É desligar o aplicativo, é incentivar o
consumidor a se engajar também, avaliar mal, são novos instrumentos que entram
aí. É bloquear os pontos onde as mercadorias saem para circular.
Mas ao mesmo tempo também esse
efeito muito duro, porque a gente não sabe, na prática, quais foram as
conquistas que esses trabalhadores conseguiram até agora. A gente vem de
décadas de ataques muito poderosos às forças sociais do trabalho. E eles estão no
meio desse turbilhão. Mas é uma construção que está em ato, a gente está vendo
ela acontecer. Para onde ela vai? Isso não está dado.
No meio do caminho tem
uma pedra https://bit.ly/3Ye45TD
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