Como
resgatar a OMS da miséria neoliberal
Instituição foi criada com os princípios de
solidariedade entre países e, na Declaração de Alma Ata, fundou as bases para a
Atenção Primária à Saúde global. Mas está há décadas subfinanciada e infiltrada
pelo Banco Mundial, FMI e congêneres
Dian Maria
Blandina, no People’s Health Dispatch | Tradução: Gabriela Leite/OutraSaúde
Durante sua existência de quase sete décadas, a Organização Mundial da Saúde (OMS) teve sucesso na erradicação da varíola, lançou a ambiciosa declaração de Alma Ata para a atenção primária à saúde (APS) e agora lidera os esforços globais para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. No entanto, seu impacto foi diluído pela influência de corporações transnacionais e outras instituições globais, particularmente o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional. A economia neoliberal e os ataques ao multilateralismo criaram um contexto difícil para o trabalho da OMS, impactando gravemente seu funcionamento independente e capacidade de atender às necessidades de saúde extremas, especialmente em ambientes com poucos recursos.
Buscando as raízes da Organização Mundial da Saúde e seus princípios fundadores
A OMS foi criada em 1948, mas sua forma e trabalho foram construídos como uma continuação da Organização de Saúde da Liga das Nações (LNHO). Desde o início, sua reunião anual de tomada de decisões, a Assembleia Mundial da Saúde, operou sob o princípio de “um estado, um voto”. Isso significava que todos os países eram iguais, independentemente da influência econômica ou política. O espírito era resolver os problemas por meio do diálogo em vez do voto da maioria, que pode ser influenciado por outros fatores além das necessidades de saúde pública.
Por padrão, a OMS não pretende cumprir todos os papéis na saúde global ou impor penalidades. Em vez disso, sua eficácia e sucesso dependem da cooperação e solidariedade de seus membros. Um excelente exemplo dessa colaboração é a erradicação bem-sucedida da varíola, quando os países deixaram de lado suas diferenças para trabalhar em estreita colaboração uns com os outros e com a OMS.
O preâmbulo da Constituição da OMS compreende nove princípios e, embora a frase “Saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença ou enfermidade” seja frequentemente mencionada, os outros princípios também são dignos de nota. Eles enfatizam o direito fundamental à saúde para todas as pessoas, a importância do desenvolvimento igualitário na promoção da saúde em todo o mundo, o papel do desenvolvimento e da educação infantil para alcançar uma sociedade saudável, a importância da opinião pública informada e da cooperação para melhorar a saúde pública e a obrigação dos governos para fornecer medidas sociais e de saúde suficientes para proteger seus cidadãos.
Da higiene imperial à medicina social – e vice-versa?
Apesar do princípio “um estado, um voto”, as decisões da OMS sempre foram influenciadas pela política dentro e fora da organização. Logo após sua criação e o início da Guerra Fria, a OMS começou a se alinhar mais estreitamente com a política externa dos Estados Unidos. Por causa disso, entre 1949 até meados da década de 1950, a União Soviética e seus aliados deixaram a OMS – e o contrapeso para a medicina social, que já era insuficiente, deixou de existir. Com isso, a OMS retomou como essência uma abordagem ultrapassada de “higiene imperial” orientada para a doença, deixando de lado os princípios da medicina social. Apesar disso, os então dirigentes da OMS mantiveram a esperança de que a medicina social voltasse à lista de prioridades da agência.
No final dos anos 1970, após o sucesso de campanhas como a de erradicação da varíola, a OMS pôde revisitar suas origens. Sob a liderança do Dr. Halfdan Mahler, a agência retornou às ideias da medicina social por meio de sua estratégia de Atenção Primária à Saúde. A estratégia visava fortalecer a infraestrutura de saúde e apoiar o desenvolvimento econômico e social, principalmente nas áreas rurais.
As ideias não eram diferentes daquelas exploradas pela LNHO em 1937, quando a organização enfatizou a ligação entre saúde e progresso social durante a Conferência Intergovernamental dos Países do Extremo Oriente sobre Higiene Rural. Em 1978, a Conferência sobre Atenção Primária à Saúde em Alma Ata, RSS Cazaque – hoje Cazaquistão – permitiu a todos os países do mundo definirem uma estrutura para promover a “Saúde para Todos” e abordar os problemas de saúde no Sul Global. A conferência produziu a Declaração de Alma Ata, de 1978, que descreve os ideais de APS que os movimentos de saúde em todo o mundo ainda seguem: alcançar o mais alto nível de saúde por meio da participação da comunidade e de um enfoque multissetorial.
Muitos governos, organizações e indivíduos achavam que a visão ambiciosa da APS da OMS era irreal e impossível de alcançar. Já um ano após a conferência de Alma Ata, eles começaram o processo de converter os elevados ideais da Declaração em intervenções técnicas práticas e mensuráveis em uma pequena conferência em Bellagio, Itália. Esta conferência foi fortemente influenciada pelos formuladores de políticas dos EUA e patrocinada pela Fundação Rockefeller, com assistência do Banco Mundial. A conferência de Bellagio resultou no conceito de Atenção Primária à Saúde Seletiva, com preferência por intervenções custo-efetivas e de foco restrito, que podem ser facilmente monitoradas e avaliadas. Para a maioria dos que se dedicam à abordagem Saúde para Todos, essa mudança foi o equivalente a uma contra-revolução.
Congelamento financeiro
Ao mesmo tempo, o orçamento da OMS começou a diminuir. O financiamento da OMS era composto principalmente de taxas de adesão pagas pelos países membros, que são determinadas por sua população e renda. Este é o dinheiro que é totalmente flexível para a OMS usar como bem entender e lhe dá independência nas operações e na definição de prioridades. No entanto, na Assembleia Mundial da Saúde do início dos anos 1980, o orçamento da OMS foi congelado, ou seja, foi decidido não permitir que o valor da contribuição crescesse em termos de dólares reais e apenas corrigiu a inflação e as taxas de câmbio – o que limitou os fundos e a capacidade de operar livremente da organização. Isso aconteceu exatamente quando a pandemia de HIV/aids estava começando a emergir.
Outra decisão veio em 1993 para tirar da equação a inflação e os ajustes cambiais, o que faz com que o orçamento da OMS caia lentamente em termos reais e piore a já precária situação financeira da agência. O valor real da contribuição flexível de cada país para o orçamento diminuiu lentamente nos anos seguintes, obrigando a OMS a recorrer ao financiamento de agências multilaterais ou nações doadoras. Os doadores decidem quais programas querem apoiar e têm a opção de retirar o financiamento caso não estejam satisfeitos com o trabalho da OMS, comprometendo fortemente sua independência. Nações doadoras ricas e agências multilaterais como o Banco Mundial têm controle considerável sobre como esses fundos são usados e estabelecem programas “orientados para doenças”, separados dos programas da OMS, além de exercer forte influência nas políticas e decisões da OMS.
No início da década de 1990, 54% do orçamento da OMS vinha de doações específicas ou de outros atores que não os próprios membros da organização. Isso causou uma infinidade de dificuldades de coordenação e tomada de decisão. Hoje, esse tipo de financiamento representa mais de 80% do orçamento, tornando quase impossível para a OMS cumprir seus deveres constitucionais, quanto mais lutar por manter sua própria visão.
A OMS tentou resistir a algumas pressões de governos e grupos poderosos, mas raramente teve sucesso. O Código Internacional de Comercialização de Substitutos do Leite Materno e a Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco foram duas vitórias notáveis na batalha da OMS contra as empresas multinacionais. Na virada do novo milênio, a OMS começou a colaborar mais estreitamente com o Banco Mundial e, desde então, tem participado de atividades que efetivamente promovem a mercantilização da medicina, a privatização dos cuidados de saúde e as políticas de livre comércio. Isso tem causado muitos danos às infraestruturas dos serviços de saúde nos países em desenvolvimento, para não falar em desviá-los de seu caminho de independência social e econômica.
Como construir uma OMS mais forte
Houve algumas tentativas da liderança da OMS para aumentar o financiamento por parte dos governos. Mas não funcionou. Muitos membros e agências multilaterais falam apenas da boca para fora sobre a ideia de fortalecer a posição da OMS como autoridade central na governança global da saúde. Por exemplo, um tratado pandêmico está sendo negociado na OMS, o que pode trazer mudanças significativas nas práticas internacionais de saúde e na governança global da saúde. Mas processos paralelos estão minando a OMS. O Pandemic Fund, uma iniciativa do G20 e do Banco Mundial, delegou à OMS um papel de mero observador em sua formulação de políticas. Outra iniciativa do FMI, destinada a enfrentar a crise climática e a preparação para pandemias, não foi criada tendo em mente as necessidades de saúde ou da OMS. Em fevereiro, essas duas instituições, com o apoio da Fundação Rockefeller, se reuniram em Bellagio para planejar um sistema de saúde global alternativo sem a participação da OMS.
Em seu 75º aniversário, é preciso refletir sobre o significado da OMS e o tipo de organização que precisamos para seguir em frente. Devemos aproveitar esta oportunidade para avaliar as ações passadas e tomar medidas para garantir que a OMS possa cumprir seu propósito. Caso contrário, corremos o risco de a OMS cair ainda mais no controle de doadores poderosos e instituições financeiras internacionais, nos afastando ainda mais de alcançar a saúde para todos.
Tudo o que importa de algum modo permanece https://bit.ly/3Ye45TD
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