01 maio 2023

Trabalho escravo no Brasil: mancha histórica

O cativeiro liberal

O liberalismo brasileiro nasceu tingido de autoritarismo e conservadorismo
Arthur Daltin Carrega/Le Monde Diplomatique


Recentes acontecimentos envolvendo trabalhos análogos à escravidão não deixam de formular interrogações a respeito do obscuro passado brasileiro. Não bastassem as denúncias assustadoras que trouxeram à tona as condições de superexploração de trabalhadores no Rio Grande do Sul, em Minas Gerais e até no conhecido festival Lollapalooza, em São Paulo (SP), seguiram-se uma série de discursos preconcei tuosos e justificativas descabidas por parte das empresas envolvidas, instituições, jornalistas e políticos. Tais fatos se somam a um problema nem um pouco recente e denunciam a persistência de uma dita burguesia rural brasileira em sua versão excêntrica e criminosa do liberalismo.
Foi no século XIX que uma série de ideias novas chegou ao império tropical recém inaugurado apresentando uma forma mais racional de olhar para o mundo. Entre tantas teorias, o liberalismo tinha destaque e, ao mesmo tempo, despertava um medo visceral nas camadas dominantes em relação às massas populares, cuja liberdade era um termo pretensiosamente distante. Como uma saída estratégica, os donos do poder resolve ram tomar a intelectualidade para si e criar suas próprias versões de racionalidade, ciências, constitucionalismo etc.
O liberalismo brasileiro nasceu, assim, tingido de autoritarismo e conservadorismo: ampliava ideias de liberdade econômica, mas eliminava a defesa da igualdade entre os cidadãos; desenvolvia debates sobre uma constituição, mas conservava a monarquia e a centralidade do poder na figura do imperador; discursava pela liberdade religiosa, mas mantinha um Estado oficialmente católico; manifestava-se pelo direito ao acesso à terra, mas p romulgava a lei que permitia a compra apenas para os mesmos latifundiários que já as tinham.
Para a “modernização” do trabalho, o recurso não foi diferente, e uma série de argumentos sugerindo a humanização de fachada da relação entre senhor e escravo ganhou espaço em periódicos da época. Junto com tal concepção estavam a justificativa da insistência pelo trabalho forçado: “[…] a abolição total, feita de chofre, e for&cced il;adamente entre nós, traria inevitavelmente consigo a destruição de todas as fortunas, a ruína inteira da agricultura, e o regresso mesmo na estrada da civilização”, escreveu o advogado Carlos Alberto Soares na revista O Auxiliador da Indústria Nacional em 1847.
Imigrantes italianos, alemães, portugueses, suíços e tantos outros também foram deslocados para a labuta no campo; sonhava-se em modernizar a economia e a cultura a partir da mera presença desses estrangeiros morigerados e afeitos ao trabalho. Na prática, porém, foram submetidos a uma tal “parceria” que lhes dava o direito a metade dos lucros oriundos do café que produziram, descontadas suas despesas com transporte, alimentação, beneficiamento etc. As pesadas dívidas recaiam apenas sobre os trabalhadores que, alienados das comodidades do progresso, modernizaram a revolta.
Voltando para o século XXI, leis contra a exploração laboral forçada já foram promulgadas, várias outras constituições entraram e saíram de vigor, propostas de combate à escravidão e fiscalização foram tentadas. No entanto, a mentalidade escravocrata persiste nos discursos e justificativas de notícias tão lamentáveis: as empresas Aurora, Garibaldi e Salton alegam que desconheciam as condições daqueles que, indiretamente, lhes prestavam serviço, o vereador Sandro Fanatiel – usando a tribuna de Caxias do Sul (RS) – e o Centro da Indústria, Comércio e Serviços (CIC) – em nota – responsabilizaram a “falta de mão de obra na cidade” pelas condições precárias em que as pessoas estavam. O segundo chegou até a levantar suspeitas sobre as denúncias e taticamente culpar as vítimas, que estariam sendo exigentes demais.
Mais recentemente, a recém contratada da CNN Janaína Paschoal levantou uma série de dúvidas sobre a real situação dos escravizados e atribuiu a descoberta dessas condições a uma suposta narrativa de esquerda atrelada ao governo Lula empossado três meses atrás, com intenções de desapropriar terras produtivas. Novamente, o que o discurso levantava era a verossimilhança na apuraç ão dos acontecimentos pelas polícias responsáveis e a defesa incondicional dos grandes produtores: “repentinamente, vários casos aparecem e, repentinamente, muitos políticos de esquerda passam a exigir desapropriações…”, argumentou em determinado momento.
Há um longevo legado da mentalidade preconceituosa e despretensiosa da burguesia agrária brasileira, que por mais de um século e meio insiste em criar sua própria narrativa da racionalidade e da liberdade. Uma visão arbitrária e, desde sempre, totalmente descolada da realidade, que insiste em encontrar uma forma de modernizar o Brasil, sem modernizar as relações de trabalho sob a lógica da obediência do empregado. Para este a modernidade segue sendo uma propaganda, discurso ou um sonho de consumo. É mecanismo conscientemente criado e difundido pelo lobby na imprensa e no Congresso, para germinar novas formas de exploração e dificultar a integração efetiva de determinados grupos de pessoas à sociedade.
Arthur Daltin Carrega é doutorando em História (Unesp) e bolsista CNPq.
A desafiante agenda do governo Lula https://bit.ly/3ZNEz7p

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