A BOMBA-RELÓGIO DOS CARTÕES DE CRÉDITO
Famílias brasileiras comprometem 27% da renda com dívidas, a maior parte relacionada a consumo
Lauro Gonzalez e Adrian Cernev/piauí
Diz o ditado popular que “a diferença entre o remédio e o veneno é a dose”. A frase resume bem a evolução do mercado de crédito para pessoas físicas (PF) no Brasil. Estudo recente da FGV mostra ter havido um aumento vertiginoso de crédito das pessoas físicas voltado para consumo, em especial nos cartões de crédito, modalidade que cobra taxas de juros que podem chegar a 450% ao ano. No modelo atual, os cartões de crédito tornaram-se uma máquina de produzir superendividados.
Dados dos últimos dez anos mostram que, até o ano de 2015, o crédito para as pessoas físicas era puxado pelo crescimento do crédito imobiliário, fato positivo considerando que a finalidade de uso dos recursos é a moradia. Entretanto, a partir de 2016, enquanto o crédito imobiliário manteve-se relativamente constante, em torno de 9% do PIB, o restante (não imobiliário), voltado basicamente para consumo, passa a crescer e salta de 16% para cerca de 23% do PIB entre 2016 e 2022. O grande destaque foi a alta na modalidade cartão de crédito, que no Brasil atingiu um volume de 5% do PIB em 2022, superior àquele alcançado nos Estados Unidos (2,7%).
A expansão dos cartões de crédito propicia aumento de crédito a curtíssimo prazo, quando o cartão é utilizado essencialmente como meio de pagamento e a fatura é quitada por completo (à vista). Ou propicia aumento de crédito de prazos mais dilatados se o pagamento não for quitado (rotativo e parcelado), caso no qual os juros dão inveja aos agiotas. Obviamente, o risco dessas operações é muito elevado, mas isso não tem sido empecilho para o crescimento dos cartões. A porcentagem de brasileiros utilizando cartão de crédito (60%) supera a média de utilização em países de alta renda (51%). Em relação ao PIB, o volume das transações com cartões de crédito é maior no Brasil (5%) do que nos EUA (2,7%).
Conforme o Banco Central, no ano de 2022 havia 190,8 milhões de cartões de crédito ativos no país, mais do que o dobro de 10 anos antes. Hoje há duas vezes mais cartões do que pessoas economicamente ativas. Trinta e sete milhões de pessoas têm dois ou mais cartões de crédito. Quanto maior o número de cartões, maior a dívida onerosa das famílias. Como consequência, quase 27% da renda das famílias brasileiras está comprometida com pagamento de dívidas, a maior parte delas relacionada a consumo. Para efeitos de comparação, esse mesmo comprometimento de renda nos Estados Unidos é 9,5%, sendo que a maior parte corresponde ao pagamento de financiamento imobiliário (mortgage).
Com todos esses números não surpreende sermos um país de superendividados, com 70 milhões de negativados. Os cartões de crédito são utilizados como um complemento de renda em um contexto de precarização do trabalho e aumento da informalidade. Além disso, a emergência dos bancos digitais e das fintechs turbinou a oferta de cartões no mercado. Não vingou a promessa dessas instituições fazerem algo realmente diferente do que vinha sendo feito pelos bancos tradicionais.
Diante desse cenário, é impossível não relembrar outros episódios nos quais o Banco Central e as autoridades regulatórias atuaram de maneira firme na defesa dos interesses difusos dos consumidores e impuseram medidas desagradáveis aos interesses do mercado de cartões.
Diz o ditado popular que “a diferença entre o remédio e o veneno é a dose”. A frase resume bem a evolução do mercado de crédito para pessoas físicas (PF) no Brasil. Estudo recente da FGV mostra ter havido um aumento vertiginoso de crédito das pessoas físicas voltado para consumo, em especial nos cartões de crédito, modalidade que cobra taxas de juros que podem chegar a 450% ao ano. No modelo atual, os cartões de crédito tornaram-se uma máquina de produzir superendividados.
Dados dos últimos dez anos mostram que, até o ano de 2015, o crédito para as pessoas físicas era puxado pelo crescimento do crédito imobiliário, fato positivo considerando que a finalidade de uso dos recursos é a moradia. Entretanto, a partir de 2016, enquanto o crédito imobiliário manteve-se relativamente constante, em torno de 9% do PIB, o restante (não imobiliário), voltado basicamente para consumo, passa a crescer e salta de 16% para cerca de 23% do PIB entre 2016 e 2022. O grande destaque foi a alta na modalidade cartão de crédito, que no Brasil atingiu um volume de 5% do PIB em 2022, superior àquele alcançado nos Estados Unidos (2,7%).
A expansão dos cartões de crédito propicia aumento de crédito a curtíssimo prazo, quando o cartão é utilizado essencialmente como meio de pagamento e a fatura é quitada por completo (à vista). Ou propicia aumento de crédito de prazos mais dilatados se o pagamento não for quitado (rotativo e parcelado), caso no qual os juros dão inveja aos agiotas. Obviamente, o risco dessas operações é muito elevado, mas isso não tem sido empecilho para o crescimento dos cartões. A porcentagem de brasileiros utilizando cartão de crédito (60%) supera a média de utilização em países de alta renda (51%). Em relação ao PIB, o volume das transações com cartões de crédito é maior no Brasil (5%) do que nos EUA (2,7%).
Conforme o Banco Central, no ano de 2022 havia 190,8 milhões de cartões de crédito ativos no país, mais do que o dobro de 10 anos antes. Hoje há duas vezes mais cartões do que pessoas economicamente ativas. Trinta e sete milhões de pessoas têm dois ou mais cartões de crédito. Quanto maior o número de cartões, maior a dívida onerosa das famílias. Como consequência, quase 27% da renda das famílias brasileiras está comprometida com pagamento de dívidas, a maior parte delas relacionada a consumo. Para efeitos de comparação, esse mesmo comprometimento de renda nos Estados Unidos é 9,5%, sendo que a maior parte corresponde ao pagamento de financiamento imobiliário (mortgage).
Com todos esses números não surpreende sermos um país de superendividados, com 70 milhões de negativados. Os cartões de crédito são utilizados como um complemento de renda em um contexto de precarização do trabalho e aumento da informalidade. Além disso, a emergência dos bancos digitais e das fintechs turbinou a oferta de cartões no mercado. Não vingou a promessa dessas instituições fazerem algo realmente diferente do que vinha sendo feito pelos bancos tradicionais.
Diante desse cenário, é impossível não relembrar outros episódios nos quais o Banco Central e as autoridades regulatórias atuaram de maneira firme na defesa dos interesses difusos dos consumidores e impuseram medidas desagradáveis aos interesses do mercado de cartões.
Em 2010, o Banco Central atuou de maneira incisiva para garantir o fim do aprisionamento (lock-in) entre bandeiras e redes adquirentes. Antes dessa medida, a fim de aceitar os cartões das diferentes bandeiras, os comerciantes precisavam contratar os serviços de múltiplas maquininhas (redes adquirentes), que operavam com exclusividade para as bandeiras. Era comum ver no balcão das lojas diversas maquininhas. As discussões para a mudança ganharam ares de série de streaming. O herói das mudanças foi José Antonio Marciano, funcionário de carreira do Banco Central, que, conforme notícias da época, foi espinafrado pelas empresas de cartão, chamado de retrógrado e inábil.
Pensando em eventuais soluções, a medida provisória do programa Desenrola acaba de ser publicada. Se a implementação funcionar adequadamente, haverá certo alívio financeiro temporário por conta da renegociação de dívidas e do resgate dos negativados. Entretanto, outras medidas precisam ser tomadas no médio e longo prazos. Múltiplos fatores explicam o superendividamento. A literatura especializada permite classificar esses fatores em três grupos. O primeiro se relaciona a fatores individuais que incluem renda, idade, educação financeira, questões psicológicas etc. O segundo grupo é composto por fatores ligados ao ambiente macroeconômico, tais como crescimento da economia, inflação, taxas de juros, precarização do mercado de trabalho, regulação e direitos do consumidor etc. Por fim, há um grupo de f atores relacionados aos credores, como modelos de negócio, estratégias de marketing e manipulações de mercado. Portanto, não há “bala de prata”. O superendividamento é uma questão complexa e interdisciplinar, envolvendo tanto governo quanto atores de mercado.
Apesar da ampliação da educação financeira ser muito bem-vinda, é preciso pensar em outras medidas. A retomada do crescimento da economia e o combate à precarização do trabalho são importantes para que o crédito seja menos utilizado como complemento de renda permanente. Do lado legal/regulatório, a lei do superendividamento, criada em julho de 2021, trouxe avanços importantes que precisam sair do papel. Um deles é estabelecer um valor adequado para o “mínimo existencial”– o valor que deve ser colocado a salvo dos credores para garantir o sustento do devedor. Decreto de Bolsonaro fixou esse valor em 303 reais, claramente insuficiente. O atual governo acaba de aumentar esse valor para 600 reais, o que é positivo. Outra medida importante, ainda não aventada, seria o estabelecimento de um teto de comprometimento de renda para operações de cartões de crédito (rotativo, parcelado etc.), nos moldes do que já existe para o consignado.
É preciso aprimorar a regulação da indústria de cartões, hoje totalmente desequilibrada em desfavor dos consumidores. No passado, a piada pronta é que foi preciso um Marciano para desafiar a indústria de cartões. No presente, esperemos agora que as instituições desse planeta deem conta do recado e ajudem a desarmar a bomba-relógio do superendividamento através dos cartões de crédito.
Lauro Gonzalez Professor da FGV EAESP e coordenador do Centro de Estudos em Microfinanças e Inclusão Financeira da FGV e Adrian Cernev Professor da FGV EAESP e pesquisador do Centro de Estudos em Microfinanças e Inclusão Financeira da FGV
Cercear a fala do presidente não faz o menor sentido https://bit.ly/42Rn33F
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