22 junho 2023

Minha Casa, Minha Vida

O Minha Casa Minha Vida voltou

Além de garantir atendimento prioritário a grupos vulneráveis, reforçando lutas sociais e por direitos após um período em que essas pautas haviam sido combatidas pelo Estado, o novo MCMV tem o potencial de ser a plataforma programática do desenvolvimento urbano brasileiro 
Renato Balbim/Le Monde Diplomatique


Os seis primeiros meses do governo Lula podem ter pavimentado caminhos para sua sucessão. Foi aprovada em 13 de junho a Medida Provisória (MP) 1.162, que recriou o principal programa habitacional que o Brasil já conheceu.  

O Minha Casa Minha Vida (MCMV), lançado originalmente em 2009, contribuiu para fazer da crise de 2008 uma marolinha, como disse Lula à época, e junto ao PAC foi decisivo para que o PT continuasse na presidência da República. 

Antes o Brasil havia conhecido apenas uma política nacional de habitação. Esta recebeu o nome de seu principal instrumento, o Banco Nacional de Habitação (BNH), extinto em 1986. 

Assim como à época, e novamente agora, por causa do desinteresse histórico em se efetivar uma política nacional de desenvolvimento urbano, os dois programas, BNH e MCMV, tiveram o condão de organizar parte expressiva da produção das cidades, seja essa pública, privada, em parcerias ou via autopromoção. 

Não incluo aqui o Programa Casa Verde Amarela (PCVA). Apesar de sua estrutura assentada em um tripé – destinação de imóveis públicos da União, regularização fundiária e provisão habitacional – também extrapolar o arcabouço de um programa exclusivamente habitacional, o PCVA não destinou nenhum imóvel público via parcerias público-privadas (Programa Aproxima), não contratou nenhum financiamento para regularização e melhorias habitacionais (Programa RegMel) e apenas financiou habitações via Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e Fundo de Arrendamento Residencial (FAR), o que acontece de maneira similar desde a criação desses fundos em 1966 e 1999. 

O PCVA teve apenas o “mérito” da destruição, e assim entrará para a história. Primeiro porque rompeu o ciclo do MCMV ao extinguir parcela do programa e a marca reconhecida inclusive internacionalmente. Segundo porque rompeu com práticas federativas da era PT ao enfraquecer a autonomia municipal em prol do setor privado.  

Já o MCMV tem uma história de grandes conquistas, e por isso mesmo teve sua marca extinta, temporariamente. Segundo o último ciclo publicado de avaliação do Conselho de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas (2021), o MCMV entregou mais de 5 milhões de Unidades Habitacionais (UHs) de 2009 a 2019, somando mais de R$ 129,8 bilhões em subsídios financeiros e tributários e R$ 98 bilhões em subsídios ao FGTS (preços de 2019).  

Com grandes impactos no aquecimento da economia, na demanda por novas UHs, e impactos modestos no enfrentamento ao déficit habitacional, formado substancialmente pelo ônus excessivo com aluguéis e precariedades urbanas, o MCMV recebeu críticas por produzir exclusivamente novas UHs – muitas vezes expandindo periferias e relegando seus benificiários, ao menos por certo tempo, a viver afastados das infraestruturas e equipamentos urbanos que qualificam unidades habitacionais como moradias

Essa situação é também criticada por seus beneficiários, que de maneira geral, e a princípio contraditoriamente, se revelam satisfeitos com a casa própria. Essa divergência parece estar ligada à mecânica incremental da urbanização brasileira.  

Nossas cidades, segregadas e fragmentadas, não resultam do planejamento de suas expansões, mas sim das disputas por privilégios e direitos. De um lado, recursos públicos e regulações flexíveis são negociadas entre construtoras, incorporadoras, bancos e poder público. De outro, ocupam-se espaços onde as regulações, ao menos por certos períodos, não se fazem valer.  

Nesses lugares a luta cotidiana é por escolas, creches, equipamentos, regularização fundiária, saneamento e transporte, melhorias que ao longo do tempo transformam ocupações, loteamentos ou conjuntos habitacionais em cidades, em ciclos que coincidem com o calendário eleitoral. Foi assim que muitos empreendimentos do BNH, apartados da cidade na década de 1970, constituem hoje ilhas de urbanização em um mar de periferia autoconstruída.  

A lógica incremental e extensora das manchas urbanas historicamente garante votos. Entretanto, algo parece estar mudando. Críticas generalizadas ao modelo inaugurado pelo BNH e reeditado pelo MCMV, e a experiência de rupturas do PCVA, influenciaram o processo de debate da MP e a proposição de muitas das 298 emendas, viabilizando a aprovação de um Projeto de Lei de Conversão (PLC) bastante distinto do texto do Executivo, e que está agora à espera da sanção presidencial. 

Curioso o fato de que, na coalizão de retomada do Estado de direito, coube a relatoria da MP ao União Brasil-SP, que redesenhou aquela que poderá ser uma das bandeiras da candidatura governista em 2026. O relator alinhavou contribuições em um normativo com potencial de imprimir, via execução da União, novas lógicas de urbanização.  

Desvinculado do que chamaria de autonomismo municipalista – que marca as primeiras gestões PT na presidência, e provou não garantir a implementação das diretrizes nacionais de desenvolvimento urbano, além de gerar a atomização dos investimentos federais –, o relator vinculou diretrizes a instrumentos de execução, e estes a critérios de seleção de municípios que deem garantias urbanísticas de efetivação da função social da propriedade. 

Outra curiosidade está ligada à estrutura da MP. De maneira geral, seu texto enxuto parecia deixar espaços para detalhamentos, incluindo uma série de disputas sociais, a serem reguladas pelo Executivo após aprovação do marco. A princípio uma interessante estratégia, visto que o atual Congresso Nacional é tido como o mais conservador desde 1988. 

Entretanto, o PLC reestabelece o padrão normativo do primeiro MCMV, também presente no PCVA, e detalha desde mecanismos operacionais, passando por linhas de atendimento, até a definição de prioridades entre beneficiários. Analisando as 298 emendas e o texto final, esse detalhamento impresso pelo parlamento se revelou mais progressista que a proposta do Executivo. 

Além de garantir atendimento prioritário a grupos vulneráveis, reforçando lutas sociais e por direitos após um período em que essas pautas haviam sido combatidas pelo Estado, o novo MCMV tem o potencial de ser a plataforma programática do desenvolvimento urbano brasileiro. Sua efetivação será garantida caso regulados e executados elementos que podem ser organizados em três conjuntos, apresentados a seguir. 

 Diversidade de modalidades 

Dentre as novas modalidades destaca-se a requalificação de imóveis, retrofit, uma referência clara a pautas que vinham sendo discutidas por governos tucanos em São Paulo. O relator elabora essa linha e a detalha como nenhuma outra. De forma similar, é detalhada a modalidade lotes urbanizados, apenas prevista na MP. 

Fazendo eco a contribuições recebidas nos debates, o PLC valoriza e indica meios e prioridades para a execução de melhorias habitacionais, notadamente por meio de entidades sem fins lucrativos, setor que já aparecia na MP e no PLC ganha maior relevância. 

Destacam-se mudanças legais no processo de regularização fundiária, prevendo fontes de recursos e obrigações de custeio para a execução de obras de urbanização. Um ponto delicado, pois a lei 13.465 de 2017, do governo Temer, desvinculou a regularização fundiária de interesse social da obrigação dos entes públicos em executar as necessárias urbanizações. O PLC não muda o sentido cartorial da lei de regularização, mas viabiliza financiamentos para que compromissos dos entes locais possam se efetivar.  

Além disso, assim como na MP, há previsão de instituir uma política de locação social via produção e requalificação de imóveis para que se constituam parques públicos ou privados dedicados ao mercado de aluguel subsidiado. O PLC detalha a possibilidade de investimentos também na parte comercial de empreendimentos, garantindo o uso misto, viabilizando novas modelagens de negócios que considerem a exploração do uso comercial em prol da manutenção condominial, dentre outros. 

Diretrizes políticas robustas e mecanismos inovadores. 

O segundo conjunto está associado à possibilidade de que o Executivo promova uma revisão das práticas federativas via diretrizes políticas robustas, inovadoras, que tendem a organizar a produção habitacional nas cidades.  

A lei a ser sancionada define que a União deve priorizar investimentos em municípios que garantam a função social da propriedade por meio de instrumentos do Estatuto da Cidade. Programas anteriores traziam diretrizes similares, não obrigatórias, que quando muito orientavam os critérios de pontuação em seleções do Executivo.  

Deve-se notar que a função social da propriedade, que constitucionalmente deveria nortear os planos diretores municipais, é apontada como diretriz introdutória de todos esses planos, mas salvo exceções relacionadas a resistências e lutas sociais, apenas é consubstanciada na demarcação de poucas zonas especiais de interesse social (ZEIS). A União agora tem a obrigação programática de estimular via investimentos o cumprimento do preceito constitucional. 

Indo além, o PLC municia a União para adotar as diretrizes do MCMV ao prever três formas de subsídios: o Verde, aporte complementar de recursos para projetos com tecnologias sustentáveis; o de Localização, para projetos próximos a equipamentos públicos, privados, polos de trabalho e interligados ao transporte público; e o de Qualificação, para construção de áreas comerciais e equipamentos públicos.  

Associados, subsídios e instrumentos de acesso à terra têm o potencial de viabilizar empreendimentos de uso misto, próximos a postos de trabalho, com urbanidade, transporte público e materiais sustentáveis, um grande passo em prol da reforma urbana

Um novo ambiente de negócios urbanos 

O terceiro grupo envolve as medidas de ampliação, diversificação, consolidação e estabilidade do setor produtivo urbano. 

Nas mudanças legais chama a atenção o número de menções a garantias, ao patrimônio de afetação das incorporadoras e temas correlatos, o que indica uma busca por maior “segurança jurídica” e “segurança de conclusão e entrega” dos imóveis. O fato do setor se engajar nessa busca por meio das emendas parlamentares não é em si uma novidade. Nesse caso, há maior clareza na revisão da legislação que impacta os temas apontados, reforçando a ideia de que a relatoria buscou consolidar o MCMV em um conjunto normativo mais amplo, garantindo maior segurança jurídica para suas previsões. 

Há ainda elementos que asseguram a retomada de obras paralisadas, a continuidade da execução financeira e mesmo gatilhos para reajustes automáticos de contratos por ventura paralisados, itens relevantes para a previsibilidade dos negócios. 

Destaca-se ainda a centralidade que as entidades sem fins lucrativos e cooperativas podem ter no MCMV. Além da execução através dessas formas jurídicas estarem destacadas, são vinculados certos produtos à capacidade diferenciada desse setor, notadamente as melhorias habitacionais, a locação social, a produção autogestionária e a requalificação de imóveis públicos da União. Além disso, há uma espécie de “quebra de monopólio” da Caixa ao assegurar a “pluralidade de agentes promotores e financeiros”, de preferência públicos, mas também bancos digitais, sociedades de crédito direto, cooperativas e outros. 

Finalmente, o PLC revê um aparato de dezenove leis que tratam sobretudo de temas cartoriais, referentes a procedimentos de fundos, garantias e relativos ao parcelamento do solo, matrículas, registros eletrônicos. 

O que esperar do MCMV? 

Superadas as dificuldades inerentes à execução de um programa dessa dimensão, o MCMV tem potencial de contribuir com um desenvolvimento urbano mais inclusivo e sustentável.  

Cabe à União cumprir os preceitos constitucionais de orientar a política de desenvolvimento urbano para que se cumpra a função social da propriedade, além de dinamizar a economia, inclusive a economia popular e solidária, o bem e o interesse comum. 

A urgência em mitigar os efeitos da crise climática não foi devidamente priorizada, um desafio ético e político mundial. Cabe então à sociedade e ao Estado aprofundar as medidas previstas que garantam moradia com o menor impacto ambiental possível. A principal modalidade, neste caso, são as melhorias habitacionais. Ao invés de construir novas UHs, requalifica-se o estoque construído, reutilizando materiais, valorizando territórios, ocupando imóveis vazios e garantindo dignidade e cidadania à economia da subsistência. 

Oxalá o governo Lula execute com rigor e coragem os preceitos e instrumentos dessa política urbana, garantindo o interesse comum, com atenção especial aos mais vulneráveis, ao meio ambiente e ao Brasil popular. 

Renato Balbim é doutor em Geografia Humana e membro do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU). 

Governo Lula e Banco Central travam luta política https://tinyurl.com/2wytpzck

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