24 julho 2023

Enio Lins opina

Jane & Serge e as lembranças de "Je t’aime... moi non plus"

Enio Lins*



Ali, no começo dos anos 70, numa onda irresistível, a canção Je t’aime... moi non plus, proibida pela ditadura brasileira e por várias supostas democracias ocidentais-cristãs, marcou época. Furou os todos os bloqueios à sua difusão. Sacudiu o mundo – “pelo seu dominamento”, como cantaria Mestre Verdelino – numa época em que inexistiam plataformas digitais, redes sociais e que tais.

Quem, vivente naqueles tempos, se lembrava hoje de Jane Birkin? Confesso que eu não. Mas, ao triscar no nome dela nos diminutos títulos dos obituários das grandes personalidades, os gemidos e sussurros da música cinquentenária fizeram uma marcha-à-ré desde os escondidinhos do cérebro e reverberou nos ouvidos, como se fosse agora: ooohhhhhh...

Com sua cara empapuçada, olhos maldormidos, barba por fazer, aparência geral nem tão limpa assim, cigarro no bico ou nos dedos, Serge Gainsbourg era alvo do despeito e da esperança machista de todas as idades naqules dias agitados: “Pô, como uma mulher linda namora um sapo desse?”. O ciúme gerava a despeita no geral e a esperança, no particular, que pessoas mocorongas, um dia, pudessem encontrar um par como a linda moça de corpo, voz, resfolegar e gemidos tão arrepiantes.

Como a péssima memória musical só me havia retido os acordes iniciais e os vagidos finais, nada como o gentil Google para reencontrar a peça inteira. É uma bela música, uma composição harmoniosa, poesia que dispensa tradução, podendo ser deliciada pelo som das palavras (dom que a língua francesa tem de montão). Os plangores caem como luvas. Nunca foi uma obra de arte pornofônica, mas eternamente sensual.

Ouvi e reouvi, reencontrando sons. Não sei um “oui” em francês, mas a pronúncia e a cadência das palavras, o rimar dos versos com os suspiros, é tudo energizante. E escutando os sussurros de Jane Birkin, envolventes, sedutores, ritmados, não há como não comparar com os atuais gemidões do zap, e letras contemporâneas que parecem escritas por Carlos Zéfiro, agressões irradiadas pelos paredões que infestam ruas daqui e alhures.

Pensando bem, não sei com o que comparar a conjunção musical-carnal de Jane & Serge com outras composições antes ou depois da citada música, gravada em 1969 e regravada praticamente a cada dois anos por celebridades distintas – a mais recente foi Madonna, em 2012, num show no teatro Olympia, em Paris – segundo lista a Wikipédia. Mas nenhuma reprodução alcançou o original êxtase do público.

Pelo elencado no verbete da enciclopédia virtual, poder-se-ia comparar apenas com a própria composição numa gravação anterior, datada de 1967, envolvendo o impagável feioso Serge com sua namorada na época, uma jovem atriz chamada Brigitte Bardot (aquele sapo barbudo era um engolidor de musas). Esse primeiro disco não foi adiante, pois a moça desistiu da empreitada temendo a repercussão.

Outra questão de época é que desde o final dos anos 70 o império dos sentidos musicais e comportamentais estava polarizado pelo rock. As pedras rolavam cada dia mais pesadas, com o romantismo dos Beatles (e mais atrás, as melosidades de Elvis) sendo substituído pelas vociferações do Black Sabbath, Led Zeppelin e outras anglofonias ruidosas da moda.

Naquele cenário onde os berros anglófonos pocavam tímpanos alheios, os sussurros francófonos de Jane mordiscavam orelhas de forma geral, ampla e irrestrita. Sim, cada artista contestava e provocava a seu modo. Tudo bem, não se desconsidere o rock. Mas nessa peleja, (50 anos depois, novamente) deixo meu voto auditável -e aqui impresso - para a dupla de (en)cantadores gauleses.

Voltando à Jane, Birkin era inglesa, nascida em Londres, 1946. Sem perder a beleza jamais, morreu – em Paris – aos 76 anos e seis meses de idade, há seis dias. Essa britânica virou uma referência da canção francesa e rejuvenesceu o velho marketing e mito da França como pátria da sensualidade (dois anos antes do último tango amanteigar a cena erótica entre Marlon Brando e Maria Schneider e azedar esse tema, mas aí é outra história).

Ao sétimo dia da despedida de Jane Birkin, vai aqui este modesto tributo a ela e – por tabela – ao provocador Serge Gainsbourg (1928/1991). Um brinde à dupla! E, com todo respeito a Ingmar Bergmann, o “viva!”, aqui e agora, vai sem gritos nem sussurros.

Viva Jane! Viva Serge! Vida eterna a “Je t’aime... moi non plus”!

*Arquiteto, jornalista, cartunista e ilustrador

"O custo de um pequeno gesto" - uma crônica sobre a indiferença https://tinyurl.com/27mvmzdw

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