16 julho 2023

Literatura contemporânea

A fila andou na literatura negra

Agora a toada passa por um caminho de autoafirmação, títulos que sugerem autoestima
Fernando Nolasco Silvestre e Godofredo de Oliveira Neto/O Globo



Tumbeiros. Eram assim chamados os navios negreiros. O termo origina-se de tumba, lugar de morte, esquecimento, dor. As narrativas que abordavam a questão racial negra, de autoria ou não de negros, descreviam horrores, violências e os sofrimentos da escravidão ou dela decorrentes. Os relatos traziam à tona listas infindáveis de carências, ausências, enfim, desgraças. Com Carolina Maria de Jesus, em seu livro mais conhecido, “Quarto de despejo”, há espaço para o humor e para a poesia em meio à labuta diária e à luta pela sobrevivência. Encontramos, na obra, momentos de alegria, de prazer e de ludicidade. A recente produção de autores (as) negros (as) tem buscado superar momentos vinculados apenas à época da escravidão. Lembrar, por exemplo, de “O cemitério dos vivos”, de Lima Barreto, já não basta. A fila andou, e agora a toada passa por um caminho de autoafirmação, títulos que sugerem autoestima, como “Não vou mais lavar pratos”, de Cristiane Sobral. Romances como “Água de barrela”, de Eliane Alves Cruz, trazem mulheres negras empoderadas, fortes, insubmissas. O mesmo tom se encontra na obra “Um defeito de cor”, de Ana Maria Gonçalves, em que a narradora resgata sua trajetória repleta de superações.

A simples narrativa calcada num ciclo de horrores precisava ficar para trás. Idem os personagens estereotipados. A humanização dos personagens negros passa por aí, representados com suas pluralidades, nuances e idiossincrasias. Assim Jeferson Tenório, autor do premiado “O avesso da pele”, dá voz a um narrador que reconstrói a trajetória do seu protagonista a partir de uma perspectiva inédita.

Foi, é, ainda árduo o caminho da literatura negra na constituição de seu corpus. A literatura brasileira enfrenta seus impasses. Militância ou arte? Literatura de autoria ou filiação à escola estética do momento? Percorrendo um caminho, digamos, solitário, a literatura de autoria negra teve de enfrentar diversos obstáculos: público leitor, veículo, conteúdo, legitimidade. O “lugar de fala” se impôs. O período pós- ditadura trouxe novas demandas, novas lutas e bandeiras. O feminismo negro talvez seja uma das forças mais atuantes nesta nova narrativa. São de mulheres as vozes a dar o tom. “Parem de nos matar”, de Cidinha da Silva, denuncia o feminicídio negro. A intelectual e ativista Sueli Carneiro cunhou o termo epistemicídio para definir o processo violento d e apagamento e invisibilidade do negro na sociedade brasileira. Já Djamila Ribeiro, filósofa, feminista, em seu “Pequeno manual antirracista”, nos convoca a lutar por uma real democracia racial. Conceição Evaristo segue conquistando leitores com sua prosa poética em “Olhos d’água”, sucesso de crítica e público, bem como Itamar Vieira Junior e seu premiado “Torto arado”, Marilene Felinto, Paulo Scott, Cuti e Lázaro Ramos, entre vários outros.

A Lei 10.369 — e sua implementação nas redes públicas, que inclui no currículo obrigatório o ensino da cultura afro-brasileira — e a adoção do sistema de cotas nas universidades são passos fundamentais na construção de novo cenário para a inserção da literatura negra. Eduardo de Assis, em “Literatura e afrodescendência — Antologia crítica”, um estudo que abrange um longo período de produção de textos de autoria negra, bem como os trabalhos de Nei Lopes, Cuti e Emicida, dá sustentação e grande visibilidade ao tema. A literatura brasileira encontra a sua história.

*Fernando Nolasco Silvestre é professor de português e literatura do ensino médio, Godofredo de Oliveira Neto é professor da UFRJ e membro da ABL

Foto: A escritora Conceição Evaristo (Leo Martins)

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