20 agosto 2023

Futbol Club Barcelona: muito a esclarecer

Barcelona, os pequenos segredos de um grande clube

Conhecido no mundo todo por seus sucessos esportivos, o Futbol Club Barcelona é para muitos catalães um motivo de orgulho e atributo de sua identidade. Contudo, o Caso Negreira e as suspeitas de corrupção de árbitros lançaram uma dura luz sobre os desmandos empresariais de uma instituição ainda fortemente controlada pela burguesia regional
David Garcia/Le Monde Diplomatique


Les Corts, domingo, 19 de março. No bairro da região oeste de Barcelona, dezenas de milhares de torcedores dirigem-se para o estádio Camp Nou, onde tremulam lado a lado a bandeira azul e grená do Futbol Club Barcelona (FCB) e a senyera – quatro listras vermelhas horizontais sobre um fundo dourado –, emblema histórico da Catalunha. Mas atenção: não são as cores da Espanha… Estandarte do catalanismo há mais de um século, o “Barça” se prepara para enfrentar seu maior rival, o Real Madrid, encarnação da monarquia e do abominado centralismo espanhol. O encontro entre os dois grandes clubes é um clássico (clàsic, em catalão) que vai muito além de uma partida de futebol: “Sabemos, claro, que desde os anos 1920 o FC Barcelona é o representante simbólico do exército sem armas da Catalunha e que o Real Madrid foi uma legião conquistadora nas mãos da propaganda franquista”, resume o escritor catalão Manuel Vázquez Montalbán.1 Ao assumir a presidência do Barcelona em 1968, Narcis de Carreras proferiu uma frase que virou o lema do clube: “O FC Barcelona é mais que um clube” (“més que un club”, em catalão).

Junto ao Camp Nou, o museu do Barcelona explora ainda mais essa identidade desportiva e regional. Inscrito em letras garrafais sobre as traves do estádio, o lema do clube está em todos os lugares: sob a profusão de logotipos dos patrocinadores, em um afresco comemorando os triunfos esportivos do Barça. Contudo, não necessariamente os visitantes, torcedores e turistas dão muita importância a ela. Seus flashes se concentram no exuberante espaço dedicado às sete Bolas de Ouro de Lionel Messi, maior jogador da história do clube, e na vitrine que exibe os cinco prestigiados troféus da Liga dos Campeões conquistados pelo Barcelona. Telas gigantes exaltando gols “lendários”, fotos de jogadores vitoriosos em júbilo: sinônimo de domínio esportivo e financeiro em escala global, o período 2008-2015 é evocado com grandiloquência.

Maior estádio da Europa, o Camp Nou lota para o clássico, com 95.745 espectadores. Obras de reforma impediram de chegar à capacidade máxima de 100 mil lugares. O “exército” catalão canta o hino do Barça: “Somos os blaugranas [azuis e grenás], não importa de onde viemos, do sul ou do norte […], uma bandeira nos une”. Desde o início da partida, o público aplaude calorosamente as tomadas de bola dos locais e vaia as jogadas dos visitantes. A partida vira em favor do Barcelona, que vence por 2 a 1. Eufóricos, torcedores zombam do presidente do Real Madrid, Florentino Pérez: “Vai pra onde, Florentino, vai pra onde?”. Alguns dias antes, o clube madrilenho tinha se tornado parte em um caso de pagamento pelo Barça a um ex-vice-presidente do comitê de arbitragem espanhol. É o Caso Negreira, que leva o nome do árbit ro envolvido, José María Enríquez Negreira, a quem o clube é suspeito de ter pago mais de 7 milhões de euros entre 2001 e 2018.

400 milhões de seguidores

Acusado de corrupção, o Barcelona contra-ataca pela voz de seu presidente, Joan Laporta, em uma coletiva de imprensa no dia 17 de abril. Criticando o que considera ser “o ataque mais feroz de toda a história do clube, um dos símbolos da identidade catalã”, ele recorda a conivência do Real Madrid com o regime franquista (1939-1975): “Estamos falando de uma entidade que historicamente manteve estreita relação com o poder político, econômico e esportivo”.

Em resposta, o Real devolve o estigma franquista com um vídeo intitulado “Qual é o clube do regime?”, postado em sua conta no Twitter. O adversário catalão é apresentado como capanga do caudillo espanhol. Três vezes condecorado pelo Barça, por três vezes Francisco Franco salvou o clube catalão da falência, afirma uma voz em off, tendo como pano de fundo imagens de arquivo e recortes de jornais da época. O final do vídeo chega a apresentar os madrilenhos como vítimas do franquismo – uma asserção puramente fantasiosa, já que o Real Madrid tirou proveito de suas relações com os dignitários do regime. Prova de que os fantasmas da ditadura nunca param de assombrar a Espanha, uma semana após essa batalha memorial, os restos mortais de José Antonio Primo de Rivera foram exumados. Fundador da Falange Espanhola, partido de inspiração fascista que se tornou partido único em 1939, ele foi sepultado na cripta do Valle de los Caidos, a basílica funerária de onde também foram retirados, em 2019, os restos mortais de Franco, transferidos a um simples cemitério.

Ferido pela montagem tendenciosa do Real Madrid, o governo da Generalitat – que reúne o Parlamento, o governo e o presidente da comunidade autônoma da Catalunha – diz que ela é “uma ofensa e um insulto a todas as pessoas que sofreram com o franquismo, como o presidente do FC Barcelona Josep Suñol”.2 Esse deputado da Esquerda Republicana da Catalunha (Esquerra Republicana de Catalunya, ERC, que hoje lidera a Generalitat), era presidente do Barça há um ano quando os nacionalistas o prenderam e fuzilaram no início da Guerra Civil Espanhola, em 6 de agosto de 1936.

A partir do regime militar do general Miguel Primo de Rivera – no poder de 1923 a 1930 e pai de José Antonio –, o Barça se tornou “um vetor clandestino, mas explícito, da consciência catalã”, explica o historiador Benoît Pellistrandi.3 O governo ordenou o fechamento do clube por seis meses em 1925, depois que torcedores vaiaram o hino espanhol durante um amistoso contra a tripulação de um navio britânico.4 O fim da Segunda República Espanhola (1931-1939) foi quase fatal para o Barcelona. Depois de cogitarem sua dissolução, os franquistas descatalanizaram o clube, que ficou sob a tutela da federação espanhola de futebol até 1946. O Barça pagou seu compromisso em favor do estatuto de autonomia da Catalunha, concedido em 1932. Assim como havia feito Primo de Rivera, Franco proibiu a bandeira e a língua catalã ;s no espaço público. O Camp Nou assumiu ares de uma vila entrincheirada. “Durante as partidas contra o Real Madrid, os torcedores do Barcelona manifestavam seu orgulho de representar a identidade catalã. As autoridades deixavam passar, alegando o caráter supostamente apolítico do esporte”, recorda Xavier Antich, presidente de uma ONG dedicada à defesa da cultura e da língua catalãs. A Omnium Cultural, que teve de trabalhar na clandestinidade na França durante a ditadura franquista, apresenta-se hoje como a mais influente entidade catalanista – junto com o Barça. No entanto, em termos de fama, o Barcelona ganha de longe. No dia 18 de junho de 2021, o clube passou a marca dos 400 milhões de inscritos nas diversas redes sociais! 

17’14’’: a torcida brada “Independencia

As principais instituições catalãs reforçam essa influência. “Instituição privada de prestígio, o Barça difunde uma imagem moderna da Catalunha”, afirma Francesc Xavier Vila, secretário de política linguística da Generalitat. O govern [governo] conta com o clube para promover o catalão, no âmbito de seu Pacto Nacional pela Língua. Essa reputação do Barcelona compensaria parcialmente a ausência de um aparelho de Estado, prejudicial para a valorização turística da Catalunha, segundo Narcis Ferrer, diretor da Agência Catalã de Turismo. “Se o Prado é o museu mais visitado de Madri, na Catalunha o do Barça vem em primeiro lugar. O clube projeta muito mais do que uma simples marca esportiva. Até os Jogos Olímpicos de 1992, a fama mundial do clube era maior do que a da ci dade de Barcelona!”, acrescenta Pau Solanilla, responsável pela promoção econômica da “marca Barcelona” na prefeitura.

No fim de janeiro, o Barça exibiu um minifilme publicitário coproduzido com a Agência Catalã de Turismo. Intitulado Feel the colours [Sinta as cores] e com o subtítulo love FC Barcelona, discover Catalonia [ame o Barcelona, descubra a Catalunha], ele alterna sequências filmadas no Camp Nou e lindas paisagens e monumentos emblemáticos. “Aproveitamos a enorme caixa de ressonância oferecida pelos canais de transmissão do Barça”, sorri Ferrer. A sede da agência fica próxima à famosa Casa Batló, cuja fachada de formas irregulares projetada pelo arquiteto Antoni Gaudí é um ímã para os turistas. Dois meses depois, o Barça postou outro vídeo promocional. A filha da Catalunha Aitana Bonmatí, estrela da equipe feminina, formada no clube, proclama seu amor pela Catalunha: “Estou cercada de jogadoras de diferentes países e gosto de contar a elas sobre a Costa Brava, Girona, Montserrat”.

A relação privilegiada que o Barcelona mantém com as autoridades catalãs não agrada a seus concorrentes regionais. Na sombra do Barça há décadas, o Espanyol de Barcelona sofre com esse favoritismo interessado, a ponto de responder com seu próprio vídeo: More than two colours [Mais que duas cores] destaca a existência de milhares de outros clubes de futebol na Catalunha, igualmente ligados à cultura e ao patrimônio catalães. “Somos tão catalães e orgulhosos de nossa identidade como o Barça, mas em nosso estádio queremos falar apenas de futebol”, assume David Tolo, historiador do Espanyol. Fundado em 1900, o clube tem esse nome por oposição ao Barça, criado um ano antes pelo suíço Hans Gamper, que jogou ele próprio na equipe com outros estrangeiros, de nacionalidade britânica. Ao contr ário do Barça, o Espanyol procura ficar afastado das lutas catalanistas. Seria o caso de ver nesse apoliticismo declarado simpatias espanholistas, pró-Real Madrid, talvez simpatias criptofascistas? Alguns torcedores do Barça não se importam com nuances. “A caricatura é mais fácil quando os vencedores sempre escrevem a história”, aponta o filósofo Xavier Fina, caloroso torcedor dos “brancos e azuis”.

Cultural, a linha divisória é sobretudo sociológica e política. “O Barça pertence à burguesia catalã”, analisa o cientista político Gabriel Colomé. Sejam catalães “da gema” ou espanhóis “imigrados” de outras comunidades autônomas, os torcedores do Espanyol marcam sua distância do catalanismo ostensivo do Barça. “O Espanyol tornou-se o clube de uma parte dos barceloneses que não falam catalão em casa”, explica o jornalista britânico Simon Kuper, autor de um livro sobre o Barça.5

Durante o processo que levou à declaração de independência da Catalunha em 2017, a clivagem entre os dois clubes se acentuou, ecoando a fratura da sociedade catalã. No auge do movimento independentista, no outono de 2017, os dois campos estavam lado a lado, segundo a pesquisa anual do Instituto de Ciências Políticas e Sociais (ICPS) de Barcelona.6 Os defensores da independência ergueram a voz no Camp Nou. A cada partida, o mesmo ritual se repetia: aos 17 minutos e 14 segundos, milhares de torcedores do Barcelona bradavam “Independencia”, agitando bandeiras catalãs. É uma alusão à queda de Barcelona, em 11 de setembro de 1714, ante as tropas do rei da Espanha Filipe V. Oriundo da dinastia francesa dos Bourbon, o novo monarca pôs fim à autonomia secular da Catalunha dentro do reino. Chamada diada, essa derrota militar é celebrada todo di a 11 de setembro como feriado “nacional” pelos independentistas catalães. 

Em 11 de setembro de 2017, centenas de milhares de pessoas foram à Praça da Catalunha, em Barcelona, reivindicar a independência. Algumas semanas depois, em 1º de outubro, a Generalitat organizou um referendo de autodeterminação sem o acordo do governo espanhol, modificando a agenda do Parlamento, bem como seu regulamento, “a fim de permitir uma leitura urgente e reduzir o direito de emenda da oposição”, explica Pellistrandi. O “sim” ganhou amplamente, porém a abstenção foi maciça, com os partidos anti-independência chamando o boicote. Declarado inconstitucional pelo governo espanhol, presidido pelo conservador Mariano Rajoy, o referendo foi invalidado, assim como a declaração de independência proferida pelo Parlamento da Catalunha. “No Camp Nou ou na rua, os independentistas fazem muito barulho, mas isso não significa que eles sejam maior ia”, comenta Colomé. De acordo com a mais recente pesquisa do ICPS, 53% das pessoas entrevistadas hoje votariam “não” em um referendo regional sobre a independência da Catalunha. E 39% votariam “sim”. Mas três quartos dos catalães ainda se dizem apegados ao “direito de decidir” seu futuro por meio de um referendo.7

O Barça expressou sua desaprovação após a prisão de vários altos funcionários da Generalitat por ordem do governo espanhol. “O FC Barcelona, fiel a seu compromisso histórico com a defesa da pátria, da democracia, da liberdade de expressão e do direito de decisão, condena qualquer ação que impeça o pleno exercício desses direitos”, dizia um comunicado de 21 de setembro de 2017. Isso não significa que o clube tenha abraçado a causa separatista. “O Barça não é independentista e não pode ser, porque deve manter sua capacidade de acolher simpatizantes de sensibilidades opostas sobre essa questão”, esclarece Xavier Roig, diretor da mídia on-line catalã Politica i Prosa e ex-diretor de campanha de Laporta, presidente do Barça de 2003 a 2010, depois novamente desde 2021.

Em nome desse equilíbrio, a direção recusou-se a ceder aos independentistas, que exigiam o cancelamento do jogo agendado no Camp Nou no dia do polêmico referendo. O Barça venceu o Las Palmas a portas fechadas, enquanto confrontos violentos entre separatistas e a polícia nacional resultavam em uma centena de feridos, o que poderia ser imputado às forças da ordem. Normalmente ultralegitimista, o jornal catalão Sport criticou a atitude do clube: “Vergonha”, foi a manchete de sua primeira página no dia 2 de outubro de 2017, que avaliou que a partida “nunca deveria ter acontecido”.

A Fundação Qatar

Presidente do Barça de 2014 a 2020, Josep Bartomeu teria sido excessivamente conciliador com os “espanholistas”? É a crítica que faz em meias-palavras Victor Font, candidato derrotado para sua sucessão em 2021. “Os socis [sócios-torcedores] do Barça cultivam um vínculo indissolúvel com a nação catalã. Proprietários do clube, eles elegem o presidente e votam suas orientações estratégicas. Em vez de ir na direção da maioria, Josep Bartomeu deu algumas vezes a impressão de andar de lado”, avalia o empresário de obediência nacionalista. Os 143 mil socis são favoráveis à separação da Catalunha do resto da Espanha? Pelo menos os 92% deles que vivem na Catalunha?8 O campo independentista quer acreditar nisso, mas o FCB tem o cuidado de nã ;o fazer essa consulta, temendo semear a discórdia entre seus simpatizantes. Um equívoco, segundo Font: “Sobre uma questão tão fundamental, os socis devem se pronunciar”.

O Barça, no entanto, deu uma contribuição significativa para a luta pela emancipação da Catalunha em junho de 2013, quando o Camp Nou sediou um festival independentista durante o qual uma formação humana exibiu a frase “Freedom for Catalonia” [Liberdade para a Catalunha]. Algumas semanas depois, 400 mil pessoas celebraram a diada formando uma via catalana: uma corrente humana ligou a Catalunha desde a fronteira francesa até o sul da província de Tarragona, atravessando o Camp Nou, onde foram hasteadas senyeras. Para o economista Roger Vinton, “o FCB do presidente Sandro Rosell (2010-2014) respeitava a maioria dos socis”.9

Filho de um ex-secretário do Barça e cofundador do partido nacionalista conservador Convergència i Unió – hoje independentista –, Sandro Rosell tem o perfil típico do líder culé. A expressão vem do primeiro estádio, inaugurado em 1909, que não comportava todos os torcedores. Alguns se sentavam no muro do estádio, ficando com o traseiro para fora, à vista dos transeuntes. Por extensão, acabaram sendo chamados de culés os jogadores, os dirigentes e os simpatizantes do Barça. Ex-dirigente da fabricante de equipamentos esportivos Nike na Espanha e depois no Brasil, Rosell tornou-se o número 2 do Barcelona em 2003, ao lado de Laporta, a quem ajudou a conquistar o poder, antes de suceder-lhe. Sua ascensão ao cargo marcou uma virada na história política do Barça. “Laporta entregou o clube à influ& ecirc;ncia dos independentistas. Desde então, nós, antisseparatistas, nos sentimos marginalizados”, denuncia Francesc Trillas, professor de Economia na Universidade Autônoma de Barcelona. No Camp Nou, os torcedores ligados à unidade da Espanha baixam a cabeça, mas mantêm-se fiéis a sua equipe. Fundador de um pequeno partido político independentista, Laporta integrou o Parlamento da Catalunha de 2010 a 2012, como deputado da coalizão Solidariedade Catalã pela Independência.

Advogado de profissão, Joan Laporta se fez conhecer pelos torcedores do Barça ao lançar o movimento Elefant Blau [Elefante azul] no fim dos anos 1990, com o objetivo de impedir um projeto de transformar o Camp Nou em uma galeria comercial. Durante sua presidência, os promotores do Elefant Blau devolveram as cores catalãs ao clube, iniciando o processo de mercantilização do Barça contra o qual tinham lutado. Eles se inspiraram na trajetória do Manchester United, vitrine do capitalismo futebolístico, e… do Real Madrid. “Os colaboradores de Joan Laporta ficaram fascinados com a experiência do diretor-geral do clube de Madri”, revela Xavier Roig.

Hábil comunicador, o presidente do Barça deu um golpe de mestre ao assinar um acordo com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) em 2006. Pela primeira vez desde sua criação, o clube aceitou uma operação de patrocínio para sua camisa, que por 107 anos esteve livre de qualquer marca publicitária. Porém, em vez de receber recursos, era o Barcelona que contribuía financeiramente com o Unicef! No total, o Barça pagou 21,5 milhões de euros ao fundo, até o fim da parceria em 2022. Entretanto, ele não resistiu por muito tempo à sedução do mercado. Em 2010, o logotipo da Fundação Qatar juntou-se ao do Unicef na camisa azul e grená, em troca de 90 milhões de euros ao longo de três temporadas. Desde então, outros patrocinadores pagantes apareceram nos mantos dos jogadores sob polpudos contratos. A busca frenética pelo sucesso esportivo justifica abrir mão de qualquer coisa: o clube compartilha a mesma visão de futebol que seu rival madrilenho. Desde 2020, o Barça e o Real defendem juntos um projeto de “superliga” europeia reservada aos clubes mais ricos, gerando o máximo de lucro.

O Barça está gastando muito para recuperar seu status de grande europeu, prejudicado pelas consequências da pandemia de Covid e pela saída repentina de sua estrela Lionel Messi para o Paris Saint-Germain em 2021. Apesar de um nível de endividamento recorde (1,35 bilhão de euros), o clube multiplicou as compras de jogadores no verão de 2022. No fim de abril, a presidência anunciou a tomada de um empréstimo bancário de 1,45 bilhão de euros para financiar o Espai Barça [Espaço Barça], um gigantesco programa de renovação do Camp Nou. Sem dinheiro, o pentacampeão europeu já tinha vendido um quarto de seus direitos televisivos pelos próximos 25 anos à empresa de investimentos Sixth Street, em troca de 500 milhões de euros. Outra cessão de patrimônio: 49% do capital da subsidiária responsável pela gest ão do conteúdo audiovisual do clube. A Socios.com e a Orpheus Media, empresa dirigida por Jaume Roures, chefe da Mediapro – especializada na venda de direitos televisivos –, adquiriram cada uma metade dessas ações, em troca de 100 milhões de euros de cada. Roendo seus ativos, o Barça não está hipotecando seus recursos de longo prazo e até sua singularidade? “O clube perde um potencial de receita para sempre. Nenhum jogador vale arriscar a independência do FCB”, preocupa-se Marc Cornet, porta-voz da torcida organizada Seguiment FCB.

Jornalistas devem falar do patrocinador

O economista Ivan Cabeza é mais tranquilizador: “Os ativos vendidos correspondem a apenas 7% a 9% de todas as receitas do Barça. Nada que coloque em risco a integridade do clube. Além disso, os socis aprovaram essas decisões em assembleia geral”. Não é tão simples, objeta Cornet: “O modelo de propriedade do Barcelona está em perigo. O clube está à mercê dos bancos. Um investidor atento poderia lucrar com isso”. Ele critica a falta de transparência em que se votou uma resolução muito emblemática da padronização em marcha forçada do Barça. O nome de seu mítico estádio agora está associado à marca de um patrocinador. Alegando uma cláusula de confidencialidade, o Conselho de Administração nega-se a revelar o valor do contrato com a empresa de streaming&nbs p;de música que pagou para dar seu nome ao Camp Nou. “A grande maioria dos socis se interessa pouco pelas questões financeiras. Eles querem em primeiro lugar e acima de tudo que seu time vença. Das 4 mil pessoas sorteadas [3% dos 143 mil membros] para participar das assembleias gerais, apenas um quarto comparece”, pondera Roures. Todavia, todos são chamados a se pronunciar na eleição do presidente.

De volta ao clássico de 19 de março. Antes do início da partida e no intervalo, a música “Despecha”, da artista catalã Rosalía, não para de tocar. O site do Barcelona nos conta que, “em 2022, Rosalía foi a artista mais ouvida” na Espanha na famosa plataforma de música on-line. Nos dias antes da partida, os jornais pró-Barça Sport e El Mundo Deportivo garantem o serviço de pós-venda da plataforma. Eles dedicam vários artigos à venda de camisas estampadas com o logo da cantora, Motomami. Uma primeira coleção de 1.899 exemplares foi vendida a 399,99 euros cada uma. Composta de 22 unidades, uma segunda série é vendida pelo módico valor de 1.999,99 euros a peça…

Os veículos de comunicação credenciados para assistir ao clássico na tribuna de imprensa receberam uma mensagem bastante impositiva, advertindo que não esquecessem o patrocinador no “nome correto do estádio”. O estudante universitário Francesc Trillas expressa o despeito de muitos apaixonados pelo Barça: “Outrora mais que um clube, o FCB é agora apenas mais um clube”.

*David Garcia, jornalista, é autor de Histoire secrète de l’OM [A história secreta do Olympique de Marseille] (Flammarion, Paris, 2013) e de JO 2024, miracle ou mirage [Olimpíadas 2024, milagre ou miragem], Libre & Solidaire, Paris, 2018.

1 Ler Manuel Vázquez Montalbán, “Qui a peur des Catalans?” [Quem tem medo dos catalães?], Le Monde Diplomatique, ago. 1996.

2 “El Govern de la Generalitat pide al Madrid ‘que retire su video manipulador’” [Governo da Generalitat pede a Madri “que tire do ar seu vídeo manipulador”], El Mundo Deportivo, 18 abr. 2023.

3 Benoît Pellistrandi, Le Labyrinthe catalan [O labirinto catalão], Desclée de Brouwer, Paris, 2019.

4 Ler Gabriel Colomé, “Conflits et identités en Catalogne” [Conflitos e identidades na Catalunha], Manière de Voir, n.38, “Football et passions politiques” [Futebol e paixões políticas], maio-jun. 1998.

5 Simon Kuper, La complejidad del Barça. El ascenso y la caída del club que construyo el futbol moderno [A complexidade do Barça. Ascensão e queda do clube que construiu o futebol moderno], Córner, Barcelona, 2022.

6 Pesquisa citada por José Rico, “El apoyo a la independencia de Catalunya baja del 40%, según una encuesta del ICPS” [Apoio à independência da Catalunha abaixo de 40%, segundo pesquisa do ICPS], El Periódico, Barcelona, 13 jan. 2023.

7 Ibidem.

8 “Rapport annuel du FC Barcelone 2021-2022” [Relatório Anual do FC Barcelona 2021-2022]. Disponível em: www.fcbarcelona.com.

9 Autor de El Barça davant la crisi del segle [O Barça diante da crise do século], Destino, 2021.

[Ilustração: Valentin Baumont]


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