05 setembro 2023

Autonomia do Banco Central pra quê?

Deve-se rever a autonomia do Banco Central?

A inflação atual no Brasil é impulsionada não por uma economia superaquecida, mas por um conflito distributivo entre o setor comercializável e o não comercializável. Manter altos níveis de taxa de juros reais de curto prazo não resolverá o problema e aumentará o hiato de produção já existente na economia
José Luis Oreiro e Maurício Andrade Weiss


 

O Banco Central do Brasil (BCB) passou a ter autonomia formal para a condução da política monetária, creditícia e cambial por meio da Lei Complementar n. 179, em 24 de fevereiro de 2021, a qual concedeu também um mandato estável de quatro anos para o presidente e seus diretores. Embora já tenha havido críticas sobre essa autonomia no momento de sua adoção, o tom se elevou pela insistência do atual presidente do BCB, Roberto Campos Neto, em manter a taxa real de juros do Brasil no maior patamar do mundo, mesmo com a desaceleração da inflação ocorrida ao longo de 2023.

A pandemia de Covid-19 acarretou perdas profundas para o mundo. Em termos econômicos, fez com que um número significativo de países interrompesse as atividades econômicas não essenciais. As medidas restritivas causaram um choque negativo tanto na demanda quanto na oferta na economia mundial no segundo e terceiro trimestres de 2020, mas o choque na demanda claramente predominou, já que a taxa de inflação nos países desenvolvidos e em desenvolvimento caiu por causa da diminuição da produção e do emprego em todo o mundo.

No Brasil, observou-se o mesmo fenômeno. A média móvel de doze meses da taxa de inflação medida pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo – Índice Geral de Preços ao Consumidor (IPCA) começou a cair rapidamente a partir de março de 2020, chegando a um nível abaixo do piso da meta de inflação para 2020 de abril a agosto daquele ano. Desde então, a taxa de inflação começou a acelerar, atingindo a meta para 2020 em outubro. Porém, foi somente em fevereiro de 2021 que a taxa de inflação atingiu o teto da meta, continuando a acelerar pelos catorze meses seguintes, quando atingiu um pico de 12,13% ao ano em abril de 2022. A partir desse momento, a inflação estabilizou-se e, em seguida, iniciou um rápido processo de redução, atingindo 3,16% no acumulado de doze meses em junho de 2023. 

A reação inicial do BCB à crise da Covid-19 foi iniciar um processo de redução da taxa Selic, que caiu de 4,25% ao ano em março de 2020 para 2% em agosto, o nível nominal mais baixo na história da política monetária no Brasil. 

Por causa da aceleração da inflação descrita anteriormente, em combinação com uma meta de inflação mais baixa para 2021 (4% em 2020 e 3,75% em 2021), o BCB retomou o processo de aumento da taxa Selic em março de 2021, muito antes que os bancos centrais dos Estados Unidos, da zona do euro e do Reino Unido. Apesar do rápido aumento da taxa de juros nominal, a inflação no Brasil continuou acelerando, fazendo com que a taxa real de juros permanecesse em termos negativos até abril de 2022.

A partir de maio de 2022, no entanto, a taxa de juros real continuou em um processo de aumento constante, atingindo um valor positivo muito alto, considerando os padrões brasileiros dos últimos dez anos. Entre janeiro e junho de 2023, a taxa Selic real aumentou de 6,29% para 9,45%. É importante notar que, mesmo após um processo sustentado e bem-sucedido de redução da inflação que começou em junho de 2022 e levou a inflação a um nível médio-baixo de 3,16% no acumulado de doze meses em junho de 2023, a taxa de juros real continua subindo em razão do fato de o Banco Central, após aumentar a taxa Selic para 13,75% em agosto de 2022, ter decidido manter a taxa de juros de curto prazo nesse nível até hoje.

Nas últimas reuniões do Copom de 2022 e nas três primeiras de 2023, argumentou-se que não era o momento de reduzir a taxa Selic, uma vez que a inflação ainda estava acima da meta e que a economia brasileira estaria superaquecida por causa das políticas fiscais expansionistas adotadas por Bolsonaro em 2022 na tentativa de vencer a corrida presidencial e da falta de confiança do mercado em relação às políticas fiscais que seriam adotadas pelo governo de Lula.

De fato, a taxa de inflação só ficou abaixo do teto da meta de inflação para 2023 em março do mesmo ano. Portanto, podia-se argumentar que o BCB deveria ter esperado um pouco mais para ver se esse movimento era permanente ou apenas temporário. Isso poderia ser um argumento razoável se a economia brasileira estivesse realmente superaquecida por conta de um excesso de demanda agregada. No entanto, de acordo com os próprios dados do BCB, o hiato do produto é negativo desde janeiro de 2020 e, depois de ter sido reduzido de um pico de –5,19% em junho de 2020 para apenas –0,67% em março de 2022, começou a aumentar novamente. No Relatório de Inflação publicado em 29 de junho de 2023, a estimativa de hiato do BCB para o primeiro trimestre de 2023 era de –1,2% e, para o segundo trimestre, de –1,5%.

Se a inflação brasileira não é resultado de uma economia superaquecida, qual é sua natureza? O Brasil, assim como muitos outros países do mundo, sofreu no período de 2020 a 2023 três ondas de inflação: inflação transitória de bens duráveis, inflação de commodities e, finalmente, inflação de margem de lucro. 

Para os Estados Unidos, a inflação de bens manufaturados foi uma consequência do aquecimento da demanda de forma mais rápida do que a retomada da produção, impulsionada pelos estímulos fiscais que ampliaram a capacidade de consumo. Consequentemente, houve uma recuperação do mercado de trabalho no setor manufatureiro, a qual gerou aumento nos salários, sem a contrapartida na redução dos vencimentos no setor de serviços, que estava desaquecido em razão da rigidez nos salários.

No Brasil, esse fenômeno apresentou semelhanças, com produção e demanda do setor manufatureiro crescendo relativamente mais rápido do que o setor de serviços até fevereiro de 2022. Como havia um acentuado hiato do produto e um alto nível de desemprego, a elevação nos salários no setor industrial não alcançou o mesmo patamar dos Estados Unidos. Por outro lado, houve elevada pressão nos custos pelo encarecimento dos insumos utilizados na indústria por uma combinação de: i) 28,26% da depreciação da taxa nominal de câmbio entre janeiro de 2020 e janeiro de 2021; ii) alta dos preços dos fretes; e iii) problemas de oferta ocasionadas pelas combinações específicas de cada setor com o descompasso nas cadeias produtivas globais. Nesse último aspecto, um dos casos mais conhecidos foi o de semicondutores, com forte impact o na indústria automobilística e outras de bens duráveis. Como a demanda dos bens manufatureiros se recuperou mais rapidamente do que a do setor de serviços, houve repasse para os consumidores do primeiro setor, gerando uma perda relativa para os segundos.

Analisando-se os fatores que provocaram o maior desvio da meta de inflação em 2021 com base no Relatório de Inflação de março de 2022, a inflação importada respondeu por 4,4 pontos percentuais (pp) dos 6,3 de desvio da meta. Dentro desse grupo, preços de commodities em dólares tiveram contribuição de 0,71 pp, e a cotação do petróleo, de 2,95 pp. O preço da gasolina isoladamente respondeu por 2,3 pp do IPCA do ano. Já o hiato do produto atuou negativamente em –1,21 pp. Outra forma de analisar o impacto externo é por meio da variação dos preços administrados, a qual foi de 1,79% ao ano em janeiro de 2021 para 19,23% em novembro de 2021. 

O conflito na Ucrânia, iniciado em fevereiro de 2022, acentuou ainda mais as pressões sobre commodities em geral e sobre combustíveis em particular, os quais já haviam se elevado em 2021, principalmente pela combinação de redução na produção de petróleo por parte da Opep+ e recuperação econômica acima do esperado de alguns países asiáticos, especialmente da China, e até de alguns países desenvolvidos. Acrescenta-se a redução de oferta de outras fontes de energia, como a eólica, que pressionou a demanda por petróleo. A combinação desses aspectos fez com que a produção global de petróleo aumentasse em torno de seis vezes menos que a demanda. Além da questão dos combustíveis, a invasão da Rússia na Ucrânia pressionou para uma alta dos pre&cced il;os de grãos que ambos os países exportam e dos preços gerais dos alimentos pelo fato de a Ucrânia ser importante exportadora de fertilizantes. O preço dos alimentos também foi agravado pela combinação do fim dos estoques reguladores de alimentos durante o governo Bolsonaro com problemas de estiagem que afetaram a oferta no Brasil e em outros importantes exportadores de grãos, como a Argentina. 

O Relatório de Inflação de março de 2023 apontou como principais causas do desvio para 2022 a “inércia” e “demais fatores”. Entre estes últimos, destacam-se os bens industriais e os alimentos em domicílio, cujas explicações já foram dadas anteriormente. Já a questão da inércia é um problema estrutural do Brasil, pois o Plano Real eliminou apenas a indexação dos contratos com prazo inferior a um ano, mantendo a indexação dos contratos com prazo superior a um ano. A inércia inflacionária só pode ser resolvida por uma reforma monetária que elimine definitivamente a indexação de contratos no Brasil. Como fatores que pressionaram para baixo, mais uma vez estavam a questão do hiato do produto (–0,45 pp), mas principalmente o fim das bandeiras tarifárias (-1,02) e as medidas tributárias (–2,33 pp), as quais fizeram parte do pacote de medidas do ex-presidente para tentar a reeleição. 

A terceira onda de inflação nos países desenvolvidos ocorreu em função do aumento das margens de lucro após a recuperação dos efeitos da pandemia de Covid-19. No Brasil, parece haver evidências de que a recente aceleração da inflação de serviços não se deve a um excesso de demanda, e sim ao resultado de uma tentativa de recompor as margens de lucro erodidas durante o período da pandemia. No Brasil, a taxa de inflação de bens não comercializáveis foi menor do que a inflação de bens comercializáveis de abril de 2020 a fevereiro de 2023, o que significa quase três anos de aumento do preço relativo de bens comercializáveis em relação a bens não comercializáveis. Essa mudança significativa e duradoura nos preços relativos causou redução nas margens de lu cro do setor de serviços, que é insustentável a longo prazo, exigindo uma correção por meio da aceleração da inflação de serviços em relação a bens comercializáveis. 

Em outras palavras, a inflação atual no Brasil é impulsionada não por uma economia superaquecida, mas por um conflito distributivo entre o setor comercializável e o não comercializável. Manter altos níveis de taxa de juros reais de curto prazo não resolverá o problema e aumentará o hiato de produção já existente na economia. A melhor solução para esse problema é permitir que o ajuste de preços prossiga até que o setor de serviços alcance sua margem de lucro-alvo. Para facilitar e acelerar esse processo, o Conselho Monetário Nacional (CMN) deveria reverter o processo de queda da meta de inflação e reconhecer que as condições atuais prevalecentes na economia mundial exigem uma taxa de inflação mais alta para fazer os ajustes necessários na economia real. A inflação médi a de longo prazo no Brasil durante o regime de metas de inflação foi de 6,4% (1999-2022). Uma meta de inflação de 3,25% para 2023 é simplesmente “uma ponte longe demais”. É hora de ser realista. O Conselho Monetário Nacional deveria revisar a meta de inflação para pelo menos 4% ao ano no período de 2023 a 2026.

Cabe ressaltar que tais medidas não significam, de forma alguma, negligência do Estado com o processo inflacionário, mas utilização de um conjunto mais amplo de instrumentos no combate à inflação. Algumas importantes medidas já foram retomadas pelo atual governo, como o incentivo à agricultura familiar e a retomada do controle de estoque de alimentos e alteração na política de preços da importação (PPI) por parte da Petrobras. É importante ressaltar que a Petrobras pode se manter altamente lucrativa e com capacidade de investimento sem precisar repassar toda a volatilidade internacional para os preços domésticos. 

Por fim, precisa-se destacar que a Selic, no patamar atual, está trazendo um enorme prejuízo para o país em diversos aspectos. Tem-se observado um contínuo aumento da inadimplência, a qual saiu de 3% no crédito com base nos recursos livres em outubro de 2021 para 4,9% em maio de 2023. O crédito como proporção do PIB caiu 1,4 pp nos primeiros cinco meses de 2023, sendo este um importante canal de crescimento econômico nos anos recentes. Os impactos negativos dos juros no PIB foram ofuscados pelo forte crescimento do agronegócio do primeiro trimestre, mas o IBC-BR do BCB já indicou uma retração de 2%. Diversas empresas também têm relatado dificuldades financeiras por conta do encarecimento do crédito. 

A elevada taxa de juros tem ainda um elemento concentrador de renda. Isso ocorre por meio de dois canais: um deles é que os detentores dos títulos públicos beneficiados pelos juros altos são em geral pessoas de maior poder aquisitivo; o outro é que, a cada ponto percentual, o custo da rolagem da dívida líquida sobre o PIB (DLSP) cresce R$ 40,1 bilhões ao ano. Não à toa, em 2022 o pagamento com juros nominais bateu recorde, ultrapassando os R$ 600 bilhões. Com isso, dificulta-se a redução da DLSP e cresce a pressão do mercado financeiro, mídia e Congresso para a realização de cortes dos gastos do governo, os quais são essenciais para o crescimento do país, especialmente quando se trata de investimento público, e para mitigar o problema da distribuição de renda por meio programas de assistência social.  

Em suma, é urgente que a sociedade brasileira tome consciência de que o atual patamar da taxa de juros Selic não tem fundamento técnico, sendo resultado de um conflito distributivo entre os “rentistas”, de um lado, e o resto da sociedade brasileira, de outro. Esse conflito se expressa na disputa sobre o controle da política monetária no Brasil, a qual continua nas mãos dos representantes dos interesses dos “rentistas”. Nesse contexto, deve-se desinterditar o necessário debate sobre o fim da autonomia do Banco Central do Brasil, para que essa instituição fundamental do Estado brasileiro possa servir aos interesses gerais da sociedade brasileira, em vez de servir ao propósito da crescente financeirização da economia.

*José Luis Oreiro é professor do Departamento de Economia da Universidade de Brasília e do Programa de Doutorado em Integração Econômica da Universidade do País Basco (Bilbao, Espanha), pesquisador Nível I do CNPq e líder do Grupo de Pesquisa Macroeconomia Estruturalista do Desenvolvimento; e Maurício Andrade Weiss é professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pesquisador do Grupo de Pesquisa Macroeconomia Estruturalista do Desenvolvimento.

[Ilustração: Jota Camelo/Viomundo]

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