Patentes: mais uma ameaça que vem do Reino Unido
País quer acordo de livre-comércio que imponha leis mais restritivas de propriedade intelectual à Índia – principal fornecedora de genéricos do Sul Global. Organizações se reúnem para opor-se à decisão, que pode ser anunciada nos próximos dias
Rajnia de Vito e Susana van der Ploeg/OutraSaúde
O Reino Unido pode estar prestes a firmar um Acordo de Livre-Comércio com a Índia que põe em risco o fornecimento de medicamentos genéricos em todo o mundo. Os termos desse compromisso podem ser anunciados na próxima reunião do G-20, que acontece entre os dias 9 e 10 de setembro. Uma carta enviada à secretária de Comércio inglesa, Kemi Badenoch, e assinada por 120 organizações da sociedade civil de 28 países alerta para as graves consequências caso o acordo realmente seja assinado.
As organizações exigem que as propostas sejam abandonadas, e caracterizam o acordo como “mais um ato de vandalismo”, depois de os países do Sul Global terem sido impedidos de produzir medicamentos genéricos, insumos e vacinas contra a covid. No Acordo de Livre Comércio que pode estar sendo fechado nesta semana, a Índia pode adotar leis de propriedade intelectual mais restritas, que permitiriam às farmacêuticas estender suas patentes por mais tempo.
“As empresas muitas vezes negam aos pacientes o acesso oportuno e econômico aos medicamentos de que eles precisam com urgência. Os medicamentos genéricos são como uma tábua de salvação para nós. Mas o seu governo pode estar prestes a destruí-la”, alerta a carta.
O Reino Unido tem proposto cláusulas ao acordo que prejudicariam a indústria farmacêutica indiana, como explica a Médicos sem Fronteiras. O acordo se sobreporia às leis nacionais de propriedade intelectual em relação aos critérios para que uma patente seja concedida, tornando-as mais flexíveis – o que aumentaria o número de patentes e o tempo de validade destas, entre outras mudanças. Especialistas dizem que essas cláusulas são ainda mais rígidas do que o que foi estabelecido no Acordo Internacional sobre Propriedade Intelectual (TRIPS) – e podem ser consideradas TRIPS plus.
O capítulo sobre propriedade intelectual presente no Acordo de Livre Comércio ainda precisa ser negociado entre o Reino Unido e a Índia, mas ministros indianos que participam da negociação indicam que um acordo pode estar próximo. Seria um grande passo atrás para todo o Sul Global – e uma tragédia até para os sistemas públicos de saúde de países ricos, incluindo o próprio Reino Unido.
A farmácia popular do mundo
A Índia é considerada a farmácia popular do mundo. É o maior produtor mundial de medicamentos genéricos, fornecendo 20% do suprimento mundial. 80% dos antirretrovirais usados globalmente no tratamento da aids são fabricados lá. A Índia também é líder mundial no fornecimento de vacinas DTP, BCG e contra o sarampo. É responsável por 60% da produção global de vacinas contribuindo com 40 a 70% da demanda da OMS por vacinas contra difteria, tétano e coqueluche (DTP) e Bacillus Calmette-Guérin (BCG), e 90% da demanda da OMS pela vacina contra o sarampo (Departamento Indiano de Farmacêuticas, 2021).
Na América Latina não é diferente. A Índia representa cerca de dois terços de todos os medicamentos genéricos importados no Brasil, é o maior fornecedor de genéricos para o México e está entre os maiores fornecedores de produtos oncológicos, para HIV e vacinas na região. Atualmente, a Índia é o destino com o maior número de aprovações de locais de fabricação pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA).
“90% de todos os medicamentos essenciais de Uganda são genéricos da Índia. Se o Reino Unido cortar esta tábua de salvação no seu acordo comercial, os danos colaterais serão as nossas vidas. Seria mais uma traição aos pacientes do Sul Global”, criticou Kenneth Mwehonge, diretor executivo da Coalizão de Uganda para Promoção da Saúde e Desenvolvimento Social.
O Brasil também tem uma história particular com a Índia. A ampliação do acesso a antirretrovirais no país se deu graças ao licenciamento compulsório do Efavirenz em 2007. A licença abrangia importação de versões genéricas da Índia a um terço do preço oferecido pela empresa Merck. Estima-se uma economia de 237 milhões de dólares até 2012. A região toda deve à indústria indiana uma grande economia em relação aos seus altos gastos com saúde.
Apesar de países em desenvolvimento serem especialmente afetados, os termos inseridos no acordo pelo Reino Unido também teriam um impacto no próprio sistema nacional de saúde britânico, o NHS, que recebe 25% de todos os seus medicamentos da Índia.
Se o acordo for aprovado, medidas em nome do direito à saúde não serão mais possíveis. Um caso emblemático aconteceu em março deste ano, com uma decisão indiana de negar o pedido de extensão da patente submetido pela Johnson & Johnson sobre seu medicamento contra a tuberculose. O fim da patente da bedaquilina pode significar uma economia de 80% do preço atual.
“A indústria indiana de produção de genéricos fornece medicamentos vitais e acessíveis a todos os cantos do mundo, por isso não é exagero reafirmar quão irresponsáveis são estas propostas”, defende Sangeeta Shashikant, consultora jurídica da ONG Third World Network. “Regras de patentes menos rigorosas reforçariam os monopólios farmacêuticos da Big Pharma, aumentariam os preços dos medicamentos a nível mundial e impediriam que milhões de pessoas tivessem acesso a remédios essenciais, o que levaria a mortes totalmente evitáveis. Em vez de aceitar ordens das grandes empresas farmacêuticas, o Reino Unido precisa de atender às exigências vindas do Sul Global e abandonar estas propostas desastrosas.”
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