16 setembro 2023

Uma crônica de Urariano Mota

O Dia Nacional do Frevo
Celebremos a perene vitalidade do frevo, enraizado no coração pulsante de Pernambuco, que resiste ao tempo, renovando-se na tradição e no brilho dos novos artistas.
Urariano Mota*

O frevo, que raro se ouve agora nas rádios de Pernambuco, ganhou em compensação dois dias para a sua homenagem: 9 de fevereiro, porque o nome “frevo” teria aparecido em 9 de fevereiro de 1907 na imprensa, e 14 de setembro, aniversário de nascimento do jornalista Osvaldo Almeida, amante e divulgador do carnaval do Recife.

Para o seu dia, copio as linhas a seguir do nosso Dicionário Amoroso do Recife.

No Aeroporto Gilberto Freyre pode ser vista uma reprodução do quadro Frevo, de Lula Cardoso Ayres. Ele bem que podia ser uma primeira aproximação do frevo dançado em Pernambuco.  Ele é imagem precisa e preciosa de um tempo do frevo ao ser dançado nas ruas, numa dança que os pernambucanos chamam de “fazer o passo”, e haja passos, saltos, acrobacias, explosão de energia humana. Dizemos explosão e, para quem não viu nem conhece, esclarecemos que isso não é bem uma metáfora. No reino animal, o fenômeno que mais lembra o passo da gente, quando os metais de sopro jogam no calor, para o azul do céu o frevo Vassourinhas, no reino animal o que mais lembra o passo coletivo é um estouro de boiada. A poeira sobe. Os gritos de libertação se gritam com força. É uma felicidade, um desassossego, e um sufoco. Quando Vassourinhas é anunciado como se deviam anunciar os batalhões na guerra, e quando por fim, num surto, Vassourinhas avança, sobe uma nuvem de violência no ar. Há bombos, percussão intensa, mas não sabemos se o baque pesado vem dos bombos ou dos passos, dos muitos pés, pontapés, cotoveladas, golpes que homens e mulheres se dão. É coisa forte, é tempero forte, é calor intenso, é gozo pesado. É uma forma de ser de Pernambuco, desde a bebida, a grossa aguardente, aos pratos da gastronomia, que mais se devia chamar de gastroviolencia. Nada de mais ou menos. É preto negríssimo, é branco de incandescer. Ou estás vivo, ou estás morto.

Dissemos explosão, e esclarecemos uma vez mais, escrevemos explosão sem usar imagem de escritor ocioso. A música do frevo para os corações fracos não se recomenda. Ouçam e desfrutem as variações criadoras do sax de Felinho. Essa música é uma promessa das coisas que se devem fazer com o corpo. Mais que promessa, é uma intimação, uma ordem. Vamos, esmorecido. Se você não é mais de pular, como este que lhe fala, procure um abrigo de abstração ao ouvir Vassourinhas. Diga-se, por exemplo: “Que melodia estranha e bela. Que acordes”. Isso você deve se dizer com os olhos bem fechados para não ver a multidão na praça, no largo e nos largos que se tornam pequenos.

O frevo de rua, que vem encantado em instrumentos de sopro, de metais, e mais está para sangue coagulado de porco, que melhorado com suas vísceras chamamos de sarapatel, o frevo de rua ainda guarda elementos de música de guerra. Nelson Ferreira, que era maestro supremo do gênero, dava uma lição bem prática: “Peguem o Hino Nacional. Toquem rápido, mais rápido… isso já é frevo”. Com isso ele queria dizer que o frevo veio das bandas militares, que em uma estranheza tão rara quanto a passagem do primo do macaco para o homem, evoluíram dos dobrados marciais para o frevo. De rua, e de rua foi para o frevo-canção, que se espraiou para o frevo de bloco, com um andamento mais leve, suave, mais família e menos raivoso, digamos assim.

“Por que o frevo não se renova?”, me perguntou uma vez o amigo Joaquim Ancilon no Pátio de São Pedro, enquanto ouvíamos frevos de bloco. Joaquim era um professor, um homem honesto, mas nem por isso imune a fazer perguntas de provocação. E em que momento oportuno ele fez a pergunta! Porque lá no palco a senhora Lilia, ex-presa política, cantava:

“Felinto, Pedro Salgado,
Guilherme, Fenelon,
Cadê teus blocos famosos?
Bloco das Flores, Andaluzas,
Pirilampos, Apôis-Fum,
Dos carnavais saudosos?

Na alta madrugada
O coro entoava
Do bloco a marcha-regresso
Que era o sucesso
Dos tempos ideais
Do velho Raul Morais:
‘Adeus, adeus, ó minha gente,
que já cantamos bastante…’
E Recife adormecia
Ficava a sonhar
Ao som da triste melodia… ” 

Não sei se foi o calor do uísque ou da raiva diante da pergunta, não sei se foi a lembrança da fase de ouro do frevo, com Nelson Ferreira, Capiba, Levino Ferreira, Edgard Moraes, João Santiago; não sei se foi a recordação do que um dia escrevemos sobre o gênio de Nelson Ferreira, quando dissemos que esses compositores de frevo de Pernambuco tinham o dom de falar do sentimento da gente com uma voz que atravessava a parede de uma sala vizinha. Dissemos, não somos nós que falamos, mas esses compositores se referem ao que sentimos com tamanha intimidade que são essa maravilha ainda não descoberta: um parente, amigo, da infância, com quem não brigamos que tem crescido em nosso afeto, nutrido no tempo incessante… não sei. Mas deve ter sido uma mistura de tudo isso, porque à pergunta:

– Por que o frevo não se renova?

Respondemos com outra: –

– Por que Dante não se renova?

Por que um clássico não se renova? Por que não se escreve de novo A Divina Comédia? Por quê? As obras seminais, que fundam o nosso ser, não se renovam, não se encontram no mercado, não estão à venda. Estão para sempre, para a nossa reconstrução. A sua modernidade é a sua infindável permanência. A sua renovação é o seu dom de ser insubstituível. Ora. Mas ainda assim, ficamos matutando. Ficou um travo de coisa ruim, de coisa que não estava resolvida, na garganta, no peito. Está certo, viemos pensando, está certo, Nelson Ferreira hoje é impossível, ninguém mais, nunca mais será Nelson Ferreira, o grau de excelência que ele alcançou não se faz mais. Certo. Mas por que o frevo tem que ser somente à maneira e feição de Capiba, Nelson e Levino? Ora, se Dante n&ati lde;o se renova, a poesia continua e continuará em outras faces que não a de Dante. Sim, e por que não, como não? É impossível hoje algo como a Evocação número 1, é certo. É absolutamente improvável, absurdo, que se faça de novo Último Dia, de Levino Ferreira. Mas o frevo acabou?

Não. Todos os dias, temos prova que não, em nossos dias, em nosso ser, nos novos intérpretes que vêm, alguns até bem jovens. Então… O frevo se renovou? Mas o que é mesmo renovar? — Certamente, não é repetir. Certo. Será algo então jamais visto, tão novo quanto seria um extraterrestre para o nosso convívio? E se assim for, como dizer que essa coisa jamais vista ainda é do mesmo gênero, do frevo? Ora. Então esse renovar deve com mais certeza aliar, resolver a tradição no presente. Há caminhos ainda não percorridos, a partir mesmo da tradição. Como pode ser visto com a orquestra Spok em suas apresentações.

Olhem de novo, incrédulos. Que me dizem, ó insensatos? O ET não precisa ser a negação do humano. Spok vai no caminho das estrelas, na jornada das estrelas. Aquelas antecipações de Felinho ao executar Vassourinhas antes de 1950 agora são retomadas pela orquestra de Spok, ao improvisar com liberdade sobre a base da história do gênero, livre com liberdade, que sem ela nada se cria nem se transforma. Dele disse o maestro e compositor Clóvis Pereira: “A Spok Frevo, afinadíssima e conduzida por Spok, é uma orquestra formada por jovens de irrecusável talento musical e nos mostram que o frevo está mais vivo do que nunca, evoluindo cada vez mais até o alvorecer do novo século. Quem viver verá!”. Que dizer, então, em outro ponto, de J. Michiles, autor de muitos sucessos na voz de Alceu Valença? Me segura senão eu caio, Diabo Louro, Rod a e Avisa. Que dizer do Maestro Forró, da Orquestra Popular da Bomba do Hemetério? Que dizer da ação civilizadora de Antonio Nóbrega, que dança, toca, canta e distribui o gênio do frevo em todo o mundo?  Como veem, o mundo continua, a vida segue, apesar da saudade que dá na gente de Nelson Ferreira em todos os carnavais. Que importa? O frevo é o clássico do povo de Pernambuco, que fala para o mundo. Sempre.   

*Jornalista, escritor

Navegar é preciso, viver não é preciso https://bit.ly/3Ye45TD

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