07 outubro 2023

Justiça ambiental

Créditos de carbono – ou mercados da poluição?
Tramita no Brasil projeto para que governo regule a ação de empresas, que compram “títulos verdes” para seguirem poluindo. Movimentos denunciam: terras indígenas tornam-se ativos financeiros. Saída à crise climática não virá do mercado privado
Natália Lobo/Brasil de Fato

O chamado “Plano de Transição Ecológica” vem sendo anunciado como uma das agendas mais importantes do governo Lula. A consolidação de um mercado regulado de carbono é colocada como parte importante desse plano, além de ações no campo da transição energética, da bioeconomia, do desmatamento zero, dentre outras. 

Escrevemos esse texto dada a importância do tema e a necessidade dos movimentos e organizações populares incidirem sobre ele no sentido da construção da justiça ambiental e da garantia da soberania dos povos. Pelo menos desde 2007 os movimentos populares, ambientalistas, indígenas, camponeses e feminista organizam ‘contracúpulas’ ou ‘cúpulas dos povos’ frente às COP Clima, com o objetivo de denunciar as “soluções” das corporações, que com o tempo nomeamos “falsas soluções”, e afirmar as verdadeiras soluções desde a resistência dos povos nos territórios. 

Em 2012, na Cúpula dos Povos paralela a Rio+20, houve grande protagonismo dos movimentos populares. As propostas populares articularam muitas questões e apresentaram um programa para a mudança do sistema, construído a partir de muita escuta e tentativas de síntese em um território ocupado no Aterro do Flamengo e no imenso acampamento no sambódromo. A Marcha Mundial das Mulheres construiu esses processos políticos ativamente, pautando o feminismo e o fim da opressão das mulheres como elemento estruturante da mudança de sistema que queremos. 

Desde então, temos acompanhado as movimentações políticas ao redor desse tema a partir da nossa aliança com outros movimentos e organizações que se organizam no Grupo Carta de Belém. Em uma oficina sobre clima de um ciclo de formação da MMM sobre as implicações entre patriarcado, colonialismo e crise ambiental, Tatiana Oliveira, do Inesc, falou que entender o mercado de carbono é uma tarefa difícil, mas não impossível. É nesse espírito que estamos escrevendo: lembrando que não podemos nos distanciar de um debate tão fundamental e que afeta a vida das mulheres (principalmente as do campo, das águas e da floresta) de forma profunda só por ele ser tratado como “assunto de especialistas” e circular de maneira propositalmente complicada nos meios de comunicaç&atild e;o.  

Sabemos que as negociações e debates sobre o clima que ocorrem em espaços internacionais – muito liderados pelos países do Norte Global e por empresas transnacionais – geram soluções prontas, que atendem preferencialmente as demandas do capital, e depois são impostos aos países do Sul Global, sem considerar nossas próprias elaborações e a construção da nossa soberania. As “recomendações de políticas públicas” que saem de espaços como a Cúpula do Clima, no geral, não partem de processos democráticos, nem fortalecem a democracia dos países onde são implementadas. 

Lembramos que, pelo menos até a década de 1970, em nível global, o principal mecanismo para regular o nível de emissão de poluição não era o mercado, e sim a política pública: investimentos em ciência e tecnologia para a criação de tecnologias menos impactantes, formas de tributar mais quem polui mais, dentre outros. Foi nos Estados Unidos que se criou essa forma de lidar com a crise ambiental que não restringe em nada a ação e o lucro das empresas: a idealização dos primeiros mercados de poluição, que estão na raiz do que hoje conhecemos como mercado de créditos de carbono. 

Fizemos esse breve resgate histórico para mostrar que é falso dizer que o mercado de carbono e as soluções do mercado para a crise ambiental são indispensáveis e eficientes. Existem outras formas de combatê-la, por exemplo a partir do fortalecimento da agroecologia e de um modelo energético descentralizado e soberano. Além disso, os mercados de carbono, apesar de sua pouca idade, já têm se revelado extremamente ineficientes em de fato diminuir a emissão de gases de efeito estufa. 

Nos últimos anos no Brasil, foram criadas leis e políticas que já consideram a existência do mercado de serviços ecossistêmicos ou dos créditos de carbono em seus texto, como a Política Nacional de Mudanças Climáticas, a reformulação do Código Florestal, o Programa Nacional de Pagamentos por Serviços Ambientais e a Lei Nacional de Proteção de Florestas. Isso demonstra que há algum tempo existe a intenção de criar instrumentos financeiros para atuar sobre a agenda ambiental, e talvez o mercado seja o principal deles, tanto que muitas políticas já foram criadas de modo a inserir os créditos de carbono em seu funcionamento assim que o mercado regulado passasse a operar.

Depois de muitos acordos e esforços de sistematização de propostas distintas, em 2023 chegou à Comissão de Meio Ambiente do Senado o PL412 de 2022, que regulamenta o Mercado Brasileiro de Redução de Emissões (MBRE). Esse PL sofreu uma modificação pela senadora Leila Barros (PDT-DF) que modificou o caráter da lei, tornando-a não apenas um mercado, mas um “sistema” para o comércio de emissões de gases de efeito estufa no país. 

Em 2012, na Cúpula dos Povos paralela a Rio+20, houve grande protagonismo dos movimentos populares. As propostas populares articularam muitas questões e apresentaram um programa para a mudança do sistema, construído a partir de muita escuta e tentativas de síntese em um território ocupado no Aterro do Flamengo e no imenso acampamento no sambódromo. A Marcha Mundial das Mulheres construiu esses processos políticos ativamente, pautando o feminismo e o fim da opressão das mulheres como elemento estruturante da mudança de sistema que queremos. 

Desde então, temos acompanhado as movimentações políticas ao redor desse tema a partir da nossa aliança com outros movimentos e organizações que se organizam no Grupo Carta de Belém. Em uma oficina sobre clima de um ciclo de formação da MMM sobre as implicações entre patriarcado, colonialismo e crise ambiental, Tatiana Oliveira, do Inesc, falou que entender o mercado de carbono é uma tarefa difícil, mas não impossível. É nesse espírito que estamos escrevendo: lembrando que não podemos nos distanciar de um debate tão fundamental e que afeta a vida das mulheres (principalmente as do campo, das águas e da floresta) de forma profunda só por ele ser tratado como “assunto de especialistas” e circular de maneira propositalmente complicada nos meios de comunicaç&atild e;o.  

Sabemos que as negociações e debates sobre o clima que ocorrem em espaços internacionais – muito liderados pelos países do Norte Global e por empresas transnacionais – geram soluções prontas, que atendem preferencialmente as demandas do capital, e depois são impostos aos países do Sul Global, sem considerar nossas próprias elaborações e a construção da nossa soberania. As “recomendações de políticas públicas” que saem de espaços como a Cúpula do Clima, no geral, não partem de processos democráticos, nem fortalecem a democracia dos países onde são implementadas. 

Lembramos que, pelo menos até a década de 1970, em nível global, o principal mecanismo para regular o nível de emissão de poluição não era o mercado, e sim a política pública: investimentos em ciência e tecnologia para a criação de tecnologias menos impactantes, formas de tributar mais quem polui mais, dentre outros. Foi nos Estados Unidos que se criou essa forma de lidar com a crise ambiental que não restringe em nada a ação e o lucro das empresas: a idealização dos primeiros mercados de poluição, que estão na raiz do que hoje conhecemos como mercado de créditos de carbono. 

Fizemos esse breve resgate histórico para mostrar que é falso dizer que o mercado de carbono e as soluções do mercado para a crise ambiental são indispensáveis e eficientes. Existem outras formas de combatê-la, por exemplo a partir do fortalecimento da agroecologia e de um modelo energético descentralizado e soberano. Além disso, os mercados de carbono, apesar de sua pouca idade, já têm se revelado extremamente ineficientes em de fato diminuir a emissão de gases de efeito estufa. 

Nos últimos anos no Brasil, foram criadas leis e políticas que já consideram a existência do mercado de serviços ecossistêmicos ou dos créditos de carbono em seus texto, como a Política Nacional de Mudanças Climáticas, a reformulação do Código Florestal, o Programa Nacional de Pagamentos por Serviços Ambientais e a Lei Nacional de Proteção de Florestas. Isso demonstra que há algum tempo existe a intenção de criar instrumentos financeiros para atuar sobre a agenda ambiental, e talvez o mercado seja o principal deles, tanto que muitas políticas já foram criadas de modo a inserir os créditos de carbono em seu funcionamento assim que o mercado regulado passasse a operar.

Depois de muitos acordos e esforços de sistematização de propostas distintas, em 2023 chegou à Comissão de Meio Ambiente do Senado o PL412 de 2022, que regulamenta o Mercado Brasileiro de Redução de Emissões (MBRE). Esse PL sofreu uma modificação pela senadora Leila Barros (PDT-DF) que modificou o caráter da lei, tornando-a não apenas um mercado, mas um “sistema” para o comércio de emissões de gases de efeito estufa no país. 

Aqui, é importante ressaltar a diferença entre o mercado regulado e o mercado voluntário de créditos de carbono. O mercado voluntário já opera no país, e é baseado em trocas de créditos de carbono entre empresas, que autodefinem as suas metas de emissão e precisam compensá-las quando extrapolam essas metas. Já no mercado regulado, são os governos os responsáveis por definirem as metas de emissões das empresas. Seguindo os modelos já adotados por outros países, o Brasil optou por um sistema misto que envolve tanto o estabelecimento de metas de poluição para as empresas, quanto a criação de um mercado de licenças e créditos de poluição.  

A ideia é que essas licenças ou créditos de poluição possibilitem a compensação de emissões para as empresas que não atingirem as metas de poluição fixadas por lei. Um dos argumentos favoráveis à regulação é que, com o estabelecimento do mercado regulado, os projetos do mercado voluntário teriam menos presença nos territórios, o que seria positivo visto que a maior parte dos casos de abuso e violação de direitos territoriais está ligado ao mercado voluntário.

No entanto, sabemos que na prática o que deve acontecer é que os dois tipos de mercado existam plenamente, sem que um substitua o outro. O PL sugere que as empresas submetidas à regulação estatal, que terão que se adequar a certos limites de poluição, também possam participar do mercado voluntário para compensar suas emissões. Ou seja, é um mercado regulado que inclui e fomenta o mercado voluntário de maneira indireta. 

Regular o nível de poluição das empresas é algo positivo. No entanto, o governo optou por trazer para dentro do mercado regulado os créditos oriundos de projetos privados de extração de créditos de carbono, os quais, até agora, atendiam apenas ao mercado voluntário. Muitas vezes. são esses projetos que assediam, deslocam e expulsam comunidades ao interferirem nos seus modos de vida e na sua autonomia para a gestão territorial. Então, em vez de a regulação romper com o ciclo vicioso de violações de direitos territoriais e humanos que vêm sendo denunciados pelas comunidades, ela segue estimulando essas violências. É preciso sufocar o mercado voluntário de carbono e as empresas que se beneficiam dele, isto é, que ganham muito dinheiro com esse mercado.

Além disso, o texto do PL tem brechas ou omissões que podem gerar interpretações perigosas. Por exemplo, ele assume a existência de mecanismos de remoção de gases de efeito estufa, mas não define claramente o que seria “remoção”, o que pode abrir brechas para o uso de geoengenharias, que são formas de tecnologia com potencial de impacto socioambiental muito alto. O texto define que a titularidade dos créditos de carbono será de quem fizer o registro do crédito, o que deverá ocorrer via bolsa de valores, abrindo espaço para que as comunidades não tenham direito a serem as donas dos créditos gerados em seus próprios territórios. 

Por fim, a sociedade civil que foi consultada na discussão sobre o PL 412 não representa os movimentos sociais urbanos, do campo, das águas e das florestas. Ainda que o substitutivo que está sendo discutido tenha aspectos melhores do que os textos anteriores que foram submetidos ao congresso, vemos esse movimento de aprovação do mercado regulado com muito receio. 

Temos acompanhado a tramitação desse PL no Senado com cautela e olhar crítico, e reforçamos a nossa visão de que as medidas urgentes para combater a crise ambiental que atravessamos não está no mercado, e sim no fortalecimento das políticas de agroecologia, da soberania alimentar e energética, da titulação e demarcação do território de povos indígenas e comunidades tradicionais e na construção de um modelo de produção, reprodução e consumo que esteja a favor da sustentabilidade da vida. 

Natália Lobo integra a equipe da SOF e é militante da Marcha Mundial das Mulheres em São Paulo. Este texto teve a colaboração de Tatiana Oliveira.

Jacaré e porco espinho não combinam https://bit.ly/3Ye45TD

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