29 novembro 2023

Claudio Carraly opina

A instrumentalização da fé 
 

Cláudio Carraly*


A instrumentalização da fé como fenômeno global é um tema complexo e multifacetado que permeia diversas sociedades ao redor do mundo, esse fenômeno refere-se à utilização da religião como uma ferramenta para atingir objetivos políticos, sociais ou econômicos, muitas vezes distorcendo os princípios fundamentais das crenças religiosas em prol de interesses de grupos específicos. No Brasil, país marcado por uma diversidade de crenças significativa, uma das manifestações mais notáveis é a intolerância religiosa, na qual grupos e indivíduos se veem compelidos a impor suas crenças como absolutas, desconsiderando a diversidade de práticas espirituais presentes no país e a garantia destas pela Constituição, esse fenômeno não apenas cria divisões, mas também gera conflitos que muitas vezes resultam em violência e discriminação.

O crescimento do fundamentalismo religioso é outra faceta da instrumentalização da fé, esse se manifesta quando determinados grupos interpretam suas escrituras sagradas de maneira literal e buscam impor suas crenças como a única verdade, marginalizando aqueles que pensam diferente, não comungam da mesma fé ou simplesmente não creem, essa instrumentalização frequentemente encontra terreno fértil em momentos de instabilidade social e política. Em períodos de incerteza, as pessoas muitas vezes buscam consolo e segurança em suas crenças religiosas, o que pode ser explorado por líderes políticos em busca de apoio, essa interseção entre religião e política pode resultar na manipulação da fé para consolidar poder, minando os princípios de tolerância e respeito mútuo e depondo contra a separação necessária do Estado da religião. Além disso, a ascensão de líderes religiosos carismáticos e influentes na esfera pública contribui para utilização dos templos como espaços da política e não da fé, esses líderes muitas vezes exercem uma influência significativa sobre suas congregações, manipulando-as para apoiar determinadas agendas políticas ou sociais, por vezes se analisado profundamente, contra os interesses políticos e sociais, dos próprios congregados. 

No entanto, é importante destacar que a instrumentalização da fé não é exclusiva do Brasil sendo um fenômeno global, em diferentes partes do mundo, observamos casos similares em que a religião é utilizada como uma ferramenta para alcançar objetivos seculares e tomada do poder político, principalmente pela extrema-direita, que vem impactado diversos países, incluindo o Brasil, nesse contexto, a manipulação de princípios religiosos para avançar políticas específicas tornou-se uma estratégia recorrente, gerando efeitos consideráveis na sociedade. Um dos sintomas mais evidentes desse fenômeno é a utilização da religião como uma ferramenta para consolidar uma agenda regressiva e reacionária. Líderes da extrema-direita como tática, buscam alinhar suas políticas a valores religiosos, atraindo assim o apoio de comunidades que compartilham essas crenças, esse alinhamento estratégico pode levar a políticas públicas que refletem uma interpretação particular da fé, muitas vezes em detrimento da laicidade do Estado e contra a democracia, isso reafirma a necessidade de uma abordagem ampla para compreender e enfrentar esse fenômeno, promovendo o diálogo inter-religioso, a educação para a tolerância e o respeito à diversidade de crenças e a importância do Estado laico nas democracias.

A intolerância religiosa, nesse contexto, surge como um desdobramento preocupante, podendo estimular a hostilidade contra grupos religiosos minoritários ou com práticas diversas, isso não apenas mina a coesão social, mas também cria divisões profundas na sociedade, alimentando um ambiente propício para conflitos. O crescimento do fundamentalismo religioso é outra manifestação dessa instrumentalização, a extrema-direita muitas vezes se alia a grupos fundamentalistas que compartilham objetivos políticos comuns, essa colaboração pode resultar em políticas que favorecem uma interpretação específica da fé, marginalizando outras visões e contribuindo para a polarização social. A ascensão de líderes carismáticos na extrema-direita, que se apresentam como defensores dos valores religiosos, também desempenha um papel crucial nessa equação, esses têm a capacidade de mobilizar massas, utilizando a fé como um elemento central de sua retórica, criando uma dinâmica em que as crenças religiosas são empregadas para legitimar agendas políticas, muitas vezes em detrimento da pluralidade de visões na sociedade e negando ao outro o direito de crer ou divergir.

A instrumentalização da fé pela extrema-direita é uma realidade que tem impactado o Brasil nas últimas décadas, manifestando-se em diversos aspectos políticos e sociais, tendo seu ápice na ascensão de Jair Bolsonaro à presidência em 2018. Durante sua campanha, este estabeleceu alianças estratégicas com líderes evangélicos e setores conservadores, incorporando uma perigosa retórica religiosa em seu discurso político. Esse alinhamento estratégico entre a extrema-direita e líderes religiosos foi evidenciado pelo apoio maciço desse segmento, que viram em Bolsonaro um defensor de valores conservadores, como a oposição ao casamento LGBTQIA+ e a defesa da chamada família “tradicional”. Essa reconexão entre a política e a religião, que nega o legado de mais de duzentos e trinta anos da Revolução Francesa, foi fundamental para consolidar uma base de apoio sólida que chegava a uma parte considerável da população, demonstrando como a instrumentalização da fé pode ser utilizada como uma ferramenta para conquistar votos e influenciar a política de forma decisiva e perniciosa.

A instrumentalização da fé também se manifestou nas políticas específicas sob o governo Bolsonaro, exemplo é a abordagem em relação às questões de gênero e sexualidade nas políticas educacionais foi promovido uma agenda que buscou restringir a discussão sobre diversidade sexual e de gênero, muitas vezes utilizando argumentos baseados apenas em convicções religiosas. Nesse esteio a intolerância contra praticantes de religiões de matriz africana, levou esses grupos a sofrer discriminação e violência, a retórica polarizadora da extrema-direita contribui para a disseminação de preconceitos religiosos, minando a coexistência pacífica entre diferentes crenças. Outro exemplo é evidente com o apoio que grupos extremistas receberam do governo passado em ações como a tentativa de criminalização do aborto, ancorada em apenas em fundamentos morais e religiosos, ignorando a diversidade de perspectivas éticas na sociedade brasileira. 

Mesmo após a derrota do governo Bolsonaro nas urnas o ovo da serpente ainda pode eclodir através de propostas legislativas que buscam alinhar o ordenamento jurídico a determinadas interpretações religiosas especificas, projetos esses que pretendem limitar direitos civis com base em convicções religiosas, devendo gerar nos próximos anos debates acalorados sobre a laicidade do Estado e a proteção dos direitos individuais e coletivos. Diante dos desafios decorrentes da instrumentalização da fé pela extrema-direita é crucial considerar soluções abrangentes que abordem aspectos políticos, sociais, jurídicos e educacionais apresentadas pelos defensores do Estado laico e democrático:

1. Educação para a Tolerância:
   - Implementar programas educacionais que promovam o respeito à diversidade religiosa e a compreensão intercultural desde as séries iniciais.
   - Incentivar o ensino de história das religiões, destacando suas contribuições culturais e promovendo a coexistência pacífica;

2. Fortalecimento da Laicidade do Estado:
   - Reforçar a laicidade nas políticas públicas, garantindo que as decisões governamentais não se baseiem exclusivamente em convicções religiosas.
   - Revisar e aprimorar a legislação para assegurar a separação efetiva entre instituições religiosas e o Estado;

3. Combate à Intolerância Religiosa:
   - Reforçar a legislação de combate à intolerância religiosa, garantindo que crimes motivados por questões religiosas sejam rigorosamente punidos.
   - Promover campanhas de conscientização e diálogo inter-religioso para combater preconceitos e estereótipos;

4. Promoção do Diálogo Inter-religioso:
   - Estimular o diálogo construtivo entre líderes religiosos de diferentes tradições, buscando pontos de convergência e respeito mútuo.
   - Apoiar eventos e iniciativas que promovam a compreensão e a colaboração entre diferentes comunidades religiosas;

5. Reforma Política:
   - Buscar medidas que reduzam a influência excessiva de grupos religiosos na formulação de políticas públicas, garantindo uma representação mais equilibrada de interesses diversos.
   - Incentivar a transparência nas relações entre políticos e líderes religiosos, evitando acordos não éticos em troca de apoio eleitoral, nem utilização dos púlpitos das igrejas para buscar votos;

6. Fortalecimento da Sociedade Civil:
   - Apoiar organizações da sociedade civil que trabalhem pela promoção da diversidade religiosa, direitos humanos e valores democráticos.
   - Fomentar a participação ativa da população em debates públicos sobre temas que envolvem a relação entre política e religião;
7. Capacitação de Líderes Religiosos:
   - Oferecer programas de capacitação para líderes religiosos, destacando a importância da promoção da paz, tolerância e respeito à diversidade da fé.
   - Incentivar a participação ativa desses líderes em iniciativas que visem à construção de uma sociedade mais inclusiva;

8. Incentivo à Mídia Responsável:
   - Promover a responsabilidade da mídia na cobertura de questões religiosas, evitando a disseminação de discursos que alimentem a intolerância, criminalizar e punir programas de cunho religioso que ataquem outras crenças.
   - Incentivar a produção de conteúdos que destaquem a diversidade de religiões e promovam a compreensão mútua.

Ao adotar abordagens integradas em diferentes áreas, é possível enfrentar os desafios associados à instrumentalização da fé, promovendo uma sociedade mais justa, inclusiva e respeitosa com as diversas manifestações religiosas e culturais. Essas propostas visam não apenas mitigar os sintomas, mas também abordar as causas subjacentes desse triste fenômeno, afinal a crença ou não crença é algo individual, bem como suas repercuções o que um individuo compreende como uma verdade fundamental por conta de sua fé, só diz respeito a ele, e esse não pode querer impor seu pensamento ao conjunto da sociedade, por isso a enorme importância do apartamento da religião do Estado. 

*Advogado, ex-secretário adjunto de Direitos Humanos de Pernambuco
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3 comentários:

  1. Anônimo6:29 AM

    Tentar torná-lo. Agora resta uma dúvida: os políticos são atrasados mentalmente e não conseguem alcançar a laicidade ou não fazem isso por interesse político? Séculos e séculos passarão e eu passarinho

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  2. Anônimo6:30 AM

    Tentar torná-lo. Agora resta uma dúvida: os políticos são atrasados mentalmente e não conseguem alcançar a laicidade ou não fazem isso por interesse político? Séculos e séculos passarão e eu passarinho

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  3. Talvez ambas as coisas, mas não podemos retirar a responsabilidade da sociedade também. Abração

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