14 novembro 2023

Dólar perde força

Seria mesmo o fim do dólar?
A cúpula do Brics em Johannesburgo, em agosto, foi acompanhada de declarações oficiais denunciando o lugar da moeda norte-americana na economia mundial, bem como sua utilização para fins políticos. Rússia e Brasil anunciaram que pretendem limitar sua exposição às verdinhas. Contudo, será que basta declarar o fim da hegemonia do dólar para executá-la?
Renaud Lambert e Dominique Plihon/Le Monde Diplomatique


 

“Os relatos da minha morte são amplamente exagerados”, teria ironizado Mark Twain em 1897, quando uma agência de notícias anunciou seu falecimento. A recente explosão de declarações alardeando o fim da hegemonia do dólar evoca o espírito do escritor norte-americano: a despeito de algumas declarações inflamadas, o atual Sistema Monetário Internacional (SMI) não está morto. Entretanto, tal como o autor de Huckleberry Finn quando da publicação de seu obituário prematuro, ele está doente.

O questionamento do papel do dólar na economia global não é novidade. Em 2010, um certo Nicolas Sarkozy aproveitou a presidência francesa do G20 para denunciar um modelo que tornava “parte do mundo dependente da política monetária dos Estados Unidos”.¹ Cinquenta anos antes, o ministro das Finanças da França, Valéry Giscard d’Estaing, já tinha apontado o “privilégio exorbitante” que a utilização internacional do dólar conferia aos Estados Unidos. Menos de quinze anos após seu nascimento, os desequilíbrios no funcionamento do SMI já eram suficientemente visíveis para que, em 1958, o economista belga Robert Triffin apontasse uma “ameaça iminente sobre um d&oac ute;lar norte-americano, que perdeu seu poder de outrora”.² Em 1976, seu colega Charles Kindleberger estava convencido: “O dólar como moeda internacional acabou”.³ E, no entanto, o dólar continua reinando do alto do sistema econômico global…

Estaríamos observando então a mera sobrevivência de uma contestação ritual, na qual cada anúncio de mudança está condenado a durar menos que um bom vinho? Talvez não. Ocorre que, quando o presidente russo, Vladimir Putin, prevê o “início do fim”4 do dólar e a ex-presidenta brasileira, Dilma Rousseff, à frente do Novo Banco de Desenvolvimento do Brics,5 promete “encontrar formas de não estar mais […] dependente de uma única moeda”,6 eles falam em um contexto no qual a guerra na Ucrânia aumentou consideravelmente a lista de recriminações contra o SMI.

 

Retorno do cassino monetário

Grandes vencedores da Segunda Guerra Mundial, no fim do conflito os Estados Unidos impuseram seu domínio ao mundo. Essa pax americana baseia-se, entre outras coisas, no estabelecimento de um sistema monetário dominado pelo dólar, cujos termos foram organizados em julho de 1944 pelos Acordos de Bretton Woods. A moeda norte-americana seria a única diretamente conversível em ouro, constituindo o pivô em torno do qual seriam definidas todas as taxas de câmbio. O FMI7 e o Banco Mundial, criados para supervisionar a adoção dos acordos, ficariam sediados em Washington – no primeiro, os Estados Unidos gozariam de direito de veto; no segundo, do poder (não oficial, porém muito real) de nomear o presidente.

De maneira geral, os países endividados precisam encontrar uma maneira, junto a seus parceiros, de conseguir moeda para liquidar seus empréstimos. Não os Estados Unidos, que “se endividam de graça, pagando suas dívidas, em parte, com dólares que cabe a eles próprios emitir, e não com ouro, que tem um valor real, que só temos se o ganharmos”, denunciava o presidente francês Charles de Gaulle em uma coletiva de imprensa no dia 4 de fevereiro de 1965. Esse “privilégio” permitiu ao país acumular déficits externos. Em outras palavras, gastar sem preocupação.

Todavia, as críticas da França têm pouca importância, considerando-se que os Estados Unidos se beneficiam dessa situação de três maneiras: eles financiaram com facilidade suas despesas militares ligadas à Guerra Fria; eles aumentaram artificialmente o nível de vida de grande parte de sua população; e suas empresas puderam realizar investimentos diretos estrangeiros (IDE) a custos mais baixos, garantindo sua expansão na economia global. Resultado: a maior potência mundial é o país com a dívida externa mais elevada, estimada em US$ 24,952 trilhões no início de 2023.

Muito rapidamente, porém, pareceu que o SMI baseado no domínio do dólar – às vezes definido como dollar exchange standard – era vítima de uma contradição ameaçadora, que o economista Triffin identificou no fim da década de 1950. O sistema precisava cumprir duas funções incompatíveis. Ele obrigava o Federal Reserve (Fed), banco central dos Estados Unidos, a realizar emissões regulares de dólares para apoiar o aumento do comércio internacional – para os Estados Unidos, esse cenário permitia manter seu “privilégio”. Porém, isso gerou um crescimento mais rápido dos dólares em circulação que do estoque de ouro de Fort Knox, minando a confiança dos países estrangeiros de que suas reservas em dólar pudessem ser convertidas no metal precioso. Ocorre que o SMI se baseava justamente nessa certeza, no princípio da paridade ouro-dólar. Ele exigia, portanto, ao mesmo tempo, que os Estados Unidos reduzissem seus déficits, ainda que isso prejudicasse o comércio internacional e deprimisse a economia mundial.

Embora os Estados Unidos claramente não tivessem planos de renunciar ao mecanismo que cimentava sua supremacia, o general De Gaulle os colocou contra a parede. Em 1965, exigiu a conversão dos dólares detidos pela França em metal precioso – decisão que aborreceu a Casa Branca e lhe valeu o apelido de GaulleFinger, em referência ao filme de James Bond lançado um ano antes, Goldfinger. Percebendo que o estoque de ouro dos Estados Unidos não seria capaz de responder à multiplicação de demandas semelhantes, o presidente Richard Nixon decidiu, em 15 de agosto de 1971, mandar pelos ares o SMI imaginado em Bretton Woods: ele suspendeu a conversibilidade do dólar em ouro e inaugurou uma nova fase de flutuação generalizada de moedas. A decisão unilateral dos Estados Unidos não apenas levou à “reabertura do grande cassino monetário&r dquo;, como explica o economista James K. Galbraith,8 mas também permitiu um retorno progressivo à liberalização da circulação de capitais: os mecanismos que Bretton Woods tinham procurado conter por causa de seus efeitos devastadores durante o entreguerras.

“O sistema encontrou então um potencial de desestabilização nunca visto desde a Segunda Guerra Mundial”, destaca um alto funcionário do Ministério da Economia russo que concordou em falar conosco sob anonimato. “E fez isso em um contexto no qual a ‘moeda-chave’ continuou sendo uma moeda nacional, gerida em função de objetivos nacionais”. “O dólar é nossa moeda, mas é problema de vocês”, teria retorquido o secretário do Tesouro, John Connally, aos diplomatas europeus alarmados com a decisão do presidente Nixon em 1971. Nesse ponto, nada mudou. Confrontado com um episódio inflacionista, o Fed tem realizado, desde março de 2022, um aumento das taxas de juros motivado por preocupações internas9 – uma política nacional que, segundo Dilma Rousseff, resulta em “maior probabilidade de redu&c cedil;ão das perspectivas de crescimento e maior probabilidade de recessão”10 no resto do mundo…

Até aqui, portanto, nada de muito novo nas críticas dirigidas ao dólar. Contudo, a guerra na Ucrânia evidenciou agora outra disfunção do SMI: a utilização pelos Estados Unidos do duplo estatuto do dólar – moeda nacional e moeda-chave do SMI – para impor sanções a atores econômicos privados ou nacionais considerados hostis. Ou, para usar uma formulação que se tornou comum desde 2022, “a transformação do dólar em arma”.

A lista de medidas coercivas do Tesouro dos Estados Unidos, a primeira das quais data de muito antes da invasão da Ucrânia pela Rússia, tem 2.206 páginas, mais de 12 mil nomes e afeta 22 países. Segundo Christopher Sabatini, do think tank britânico Chatham House, “mais de um quarto da economia global está sob alguma forma de sanção”.11 A utilização desse tipo de disposição se acelerou ao longo da última década, enquanto “sucessivos presidentes dos Estados Unidos optaram por uma estratégia considerada de baixo custo em termos de esforço e sangue para resolver seus problemas de política externa”, analisa o Financial Times.12 Aos privilégios da dívida fácil e da coerção monetária, o dólar veio somar o da extraterritorialidade: ele permite aos Estados Unidos impor suas decisões a todos os atores que desejam utilizar sua moeda. Em 2015, o banco francês BNP-Paribas foi multado em um valor recorde de US$ 8,9 bilhões por não respeitar o embargo norte-americano a Cuba, ao Sudão e ao Irã. A maior parte das operações realizadas por esse banco com os três países “inimigos”, fora de seu território, era denominada em dólar, por isso tiveram de passar por uma câmara de compensação localizada nos Estados Unidos, caindo sob o golpe do direito norte-americano.

Já aplicadas à Cuba, à Coreia do Norte, ao Afeganistão, ao Irã e à Venezuela, as sanções tomaram uma dimensão sem precedentes após a eclosão da guerra na Ucrânia. Os Estados Unidos e seus aliados expulsaram a Rússia do sistema de pagamentos internacionais Swift e apreenderam US$ 300 bilhões de reservas russas denominadas em dólar e euro: “Roubo puro e simples”, observa o funcionário russo mencionado.

Um SMI cuja moeda-chave é também a moeda nacional do país hegemônico só é estável se for percebido “como proporcionando mais vantagens por meio da integração comercial e financeira do que desvantagens para os países subordinados”, observam os economistas Michel Aglietta, Guo Bai e Camille Macaire.13 Pelo contrário, “a utilização deliberada do sistema internacional de pagamentos em dólar para bloquear as transações privadas relativas a países que os Estados Unidos pretendem sancionar apenas confirma a instrumentalização dessa moeda como puro meio de dominação política”. E exige uma reação dos adversários dos Estados Unidos: “Não somos nós que estamos nos livrando do dólar”, argumentou Putin em 2020, “é o dólar que est&a acute; se livrando de nós”.14 Diretor-executivo do grupo de países liderados pelo Brasil no FMI entre 2007 e 2015, Paulo Nogueira Batista Jr. coloca de outra forma: “Hoje, o principal inimigo do dólar são os Estados Unidos”.

Para todos os países em desacordo com os Estados Unidos, ou que temem um esfriamento de suas relações com o país do dólar, a urgência seria, portanto, “desdolarizar”. Esse projeto, no entanto, levanta uma questão espinhosa: para utilizar qual moeda?

A primeira resposta parece óbvia: se usar a moeda de outro país é um problema, vamos usar a nossa! – o que vários países começaram a fazer para seu comércio transfronteiriço. Em abril de 2023, a Índia e a Malásia anunciaram que também negociariam em rúpias, a moeda indiana. Um mês antes, a China e o Brasil declararam incentivar transações em reais brasileiros e yuans chineses. A França também participa desse movimento, uma vez que um quinto de suas trocas com o Império do Meio agora são feitas em renminbi, outro nome para a moeda emitida na China.15 A despeito das declarações cheias de voluntarismo que interpretam esse movimento como uma “revolta antinorte-americana”, essas iniciativas não resultam necessariamente de um desejo de contestar o domínio do dólar. A desdolarização comercial de vocação geopolítica liga-se a outra, mais pragmática: a que resulta de um esforço para reduzir o custo das transações, por vezes ampliado pelas múltiplas conversões, da moeda A para o dólar, depois do dólar para a moeda B.

 

Rúpia, rublo ou dirham?

Quaisquer que sejam as motivações, esse grande movimento de reajuste do comércio é facilitado pela formidável rede comercial internacional tecida pela China, principal parceiro comercial de 61 países no mundo (contra trinta para os Estados Unidos).16 No entanto, ele enfrenta uma dificuldade importante. “Como as balanças comerciais nunca estão perfeitamente equilibradas, nessas transações um dos dois países é necessariamente levado a acumular moedas do parceiro”, observa Batista Jr. “Isso pode ser um problema, sobretudo se a moeda em questão estiver sujeita a flutuações de valor ou não for facilmente convertível”, o que é o caso da maioria das moedas. É isso que explica o fracasso, em maio passado, das conversações entre Rússia e Índia para realizar transações em rúpias: sendo o comércio entre as duas nações muito desequilibrado em favor da Rússia, esta última temia acumular maços de rúpias inutilizáveis. Então a Índia comprou petróleo russo… em dirhams dos Emirados Árabes.17

“Para que o comércio em moedas nacionais realmente funcione”, continua Batista Jr., “é necessário que as moedas em questão possam ser transformadas em reservas cambiais.” Ou seja, dinheiro facilmente disponível e pouco exposto a depreciações violentas. Por enquanto, nenhum dos candidatos tradicionais à substituição do dólar – o euro e o renminbi – satisfaz essas condições. O euro porque a incerteza sobre seu futuro, evidente desde a crise da dívida soberana de 2010, preocupa o resto do mundo. O renminbi porque a China não liberalizou sua conta de capital: a moeda chinesa não é convertível e continua sujeita a severos controles cambiais. Para que o yuan “destronasse” o dólar, um ponto de virada que alguns analistas apressados já anunciam, a China precisaria fazer uma reviravolta improvável em termos de política monetária.

Isso porque a China sabe que a utilização do yuan por não residentes modificaria o modelo econômico do país. Quanto mais uma moeda é demandada no exterior, mais seu valor aumenta em relação às demais. E mais suas exportações encarecem: um grande perigo para a “fábrica do mundo” chinesa. Além disso, o país mediu os riscos que os processos de desregulamentação significaram para seus vizinhos durante a crise financeira de 1997 e para as economias do Norte durante a crise de 2008. Um episódio de instabilidade nos mercados chineses após uma tentativa de liberalização financeira, em 2015-2016, foi considerado doloroso o suficiente para levar o governo a “redefinir os riscos financeiros como potenciais ataques à segurança nacional”, explica o pesquisador Nathan Sperber. Ele destaca que, do ponto de vista das autor idades chinesas, os controles de capitais não são apenas uma questão de preocupação financeira: “Se os chineses ricos pudessem tirar seu capital do país sem restrições, eles estariam em posição de proteger seus ativos – portanto, seus privilégios. Com o controle de capitais, a propriedade do capital na China permanece relativa: ela está sujeita ao poder político, que mantém a possibilidade de intervir contra os indivíduos que deseja sancionar”.

 

Mal-entendidos convenientes

Entre a internacionalização da moeda nacional e a proteção do modelo de desenvolvimento do país, até o momento a China já fez sua escolha. E, quando se observa uma forma de desdolarização em favor do renminbi, trata-se de um processo “sob restrição”, destaca Sperber: “Não é uma desdolarização motivada pelo fato de que o yuan seria superior ao dólar como moeda de troca ou moeda de reserva para os atores do mercado, mas uma internacionalização por meio de acordos diplomáticos”. Sinal do apelo contínuo do dólar, ele ainda é o porto seguro preferido dos mercados durante as crises financeiras, incluindo quando estas têm origem… nas disfunções dos mercados norte-americanos, como foi o caso durante a crise do subprime de 2008.

Por trás do barulho anunciando que “a supremacia financeira dos Estados Unidos acabou”,18 os números pintam um quadro mais comedido. Segundo dados do último inquérito trienal do Banco de Compensações Internacionais (BIS), de 2022, o dólar ainda é, de longe, a moeda mais utilizada: 88% das transações cambiais recorrem a ele (percentagem inalterada desde 1989), contra 32% para o euro, 17% para o iene e 17% para a libra esterlina.19 A participação do yuan chinês (7%) permanece modesta, embora em forte crescimento (alta de 4% em 2019).

Em termos de reservas cambiais, a participação do dólar caiu de 72% em 2000 para 59% em 2023, mas em benefício sobretudo das moedas emitidas pelos aliados geopolíticos dos Estados Unidos: os dólares australiano e canadense, o won coreano e a coroa sueca. No mesmo período, a participação do renminbi aumentou de 0 para 2,6%. Isso porque é muito complicado para um país manter reservas em uma moeda distinta daquela em que sua dívida é denominada. E a internacionalização maciça de um mercado de dívida em renminbi continua impensável sem a liberalização da conta de capital chinesa…

Colapso da legitimidade do dólar como “moeda-chave” do SMI, limites do comércio transfronteiriço em moedas nacionais, ausência de candidatos para substituir o dólar… Diante de uma situação que parece um impasse, a Rússia e depois o Brasil propuseram agir no nível do Brics. O projeto inicial imaginado pela primeira visava criar não uma moeda, mas uma “unidade de conta”: uma ferramenta monetária que permitisse estabelecer paridades entre moedas e fazer a denominação de preços de matérias-primas não sujeitas a flutuações do dólar. Infelizmente, em 21 de agosto de 2023, véspera da cúpula, o secretário de Relações Exteriores indiano, Vinay Mohan Kwatra, aproveitou uma coletiva de imprensa para manifestar a oposição de Nova Déli a um projeto que ele parecia considerar des tinado não à criação de uma unidade de conta, mas de uma “moeda comum”. “Mas não era disso que se tratava!”, irrita-se nosso interlocutor russo. “Todo mundo que trabalha na área econômica sabe que era muito cedo para falar em moeda comum.” Para nosso entrevistado, não há dúvida: o problema é que, “nos ministérios das Relações Exteriores, na Rússia e nos outros lugares, ninguém entende nada de questões monetárias. Mesmo no mais alto nível”.

Vamos tentar entendê-las. Para esclarecer o mal-entendido: as moedas (inclusive as comuns) precisam cumprir duas funções cruciais além de servir de unidade de conta –ser instrumentos de reserva, ou seja, ser capazes de armazenar valor monetário, e permitir trocas. Imaginar uma moeda “comum” do Brics implicaria, portanto, um grau de coordenação muito superior ao exigido pelo projeto russo. Encarregado de mostrar diferentes vias de trabalho sobre a questão monetária durante um colóquio organizado pela China paralelamente à cúpula de Johannesburgo, Batista Jr. apresentou as coisas da seguinte forma: a criação de uma unidade de conta “seria relativamente simples e […] poderia ser colocada em prática rapidamente e com menor custo”; a de uma moeda comum exigiria “uma reflexão e um planejamento que nem começaram”.20 Obviamente já era tarde: o projeto não foi discutido em Johannesburgo.

Os mal-entendidos, porém, não explicam tudo. Eles inclusive são uma maneira confortável de bloquear projetos a respeito dos quais não se deseja explicar claramente a discordância. Divergências geopolíticas e conflitos internos – nomeadamente entre a China e a Índia, que desejam continuar negociando com os Estados Unidos – complicam o trabalho do Brics. As coisas eram assim quando eles eram cinco – os membros fundadores não podem ignorar que a chegada de seis novos membros em 1º de janeiro de 2024 não vai contribuir para agilizar as discussões. Contudo, a questão monetária revela-se particularmente delicada, como sugerem as experiências anteriores de uniões monetárias regionais.

Na Europa, a “serpente monetária europeia” de 1972, que visava proteger as economias envolvidas da flutuação generalizada das moedas, só alcançou a moeda única em 1999, com sucessos bastante mitigados. Em 2010, oito países latino-americanos lançaram o Sistema Unitário de Compensação Regional (Sucre) e uma unidade de conta com o mesmo nome.21 No entanto, a fraca integração comercial dos países envolvidos limitou o porte da iniciativa. Na Ásia, a crise financeira de 2008 levou à criação do Fundo Monetário Asiático, responsável pela regulação das taxas de câmbio. Desde então, porém, os projetos para dar continuidade à reflexão sobre a integração monetária quase não avançaram. Análises recentes destacam o desenvolvimento fut uro das moedas digitais do banco central (CBDC). Na vanguarda da questão, a China quer poder contornar sistemas de pagamento como o Swift com seu e-yuan. Mas isso também levanta receios sobre a capacidade de controle por parte do Estado…

Até o momento, o sistema organizado em torno do dólar não parece, portanto, ameaçado. Todavia, o aumento das tensões geopolíticas internacionais poderá levar ao surgimento de uma zona “não dólar” para os países que os Estados Unidos consideram seus adversários. A China “teria então o papel de ponte entre os dois sistemas: o ponto fixo de uma estrutura multipolar”, acredita Galbraith.22 Ele acrescenta: “Se a China tivesse de enfrentar decisões tão severas [como aquelas impostas à Rússia], então poderia ocorrer uma verdadeira ruptura, dividindo o mundo em dois blocos isolados”. Essa situação, no entanto, se revelaria extremamente onerosa para os Estados Unidos, dado o volume do comércio entre esse país e a China, e complicaria o financiamento de sua dívida.

Será isso um convite à Casa Branca para estar atenta à atual agitação em torno do dólar? Apostar nessa reação também poderia ser o objetivo tácito de parte do Brics. “Você sabe, se as iniciativas do Brics finalmente levassem os Estados Unidos a concordar com a criação de uma moeda verdadeiramente internacional, isso me serviria perfeitamente!”, confidencia nosso interlocutor russo ao final da entrevista. “É isso que a China quer”, confirma Aglietta quando perguntamos.

Na verdade, essa “moeda verdadeiramente internacional” já existe, sob a forma dos Direitos Especiais de Saque (DSE), emitidos pelo FMI.23 Criados em 1969, quando o sistema de Bretton Woods ameaçava entrar em colapso, e semelhantes ao Bancor que John Maynard Keynes havia imaginado em 1944, os DSE têm todas as características necessárias para se tornarem a ferramenta monetária de que o mundo precisa: uma moeda internacional gerida de forma concertada dentro do FMI, instituição criada para esse fim. Em 2009, a ideia foi apresentada pelo governador do Banco Central chinês, Zhou Xiaochuan, que via no Fundo os primórdios de um banco central mundial capaz de gerir a liquidez internacional com o objetivo de estabilizar os preços. A medida implicaria naturalmente uma reforma do FMI, que privaria os Estados Unidos de seu direito de veto, porque as elites norte-americanas não pretend em privar-se do privilégio que o dólar lhes concede.

Por enquanto, pelo menos. Isso porque, como apontam Astrid Viaud e Paul-Arthur Luzu, o presidente Donald Trump (2017-2021), ao longo de seu mandato, não parou de contestar “a política de déficit permanente dos Estados Unidos, que permite o domínio do dólar” – um “sinal forte” que “criou dúvidas sobre o desejo dos Estados Unidos de abastecer o mundo de dólares”.24 Apesar dos discursos oficiais e midiáticos que lhe ensinaram a considerar um dólar “forte” como símbolo da grandeza de seu país, a população dos Estados Unidos seria na verdade uma das principais beneficiadas com um dólar cujo valor não fosse mais impulsionado por seu estatuto internacional. Como observa Galbraith, “a multipolaridade [monetária] poderia ser ruim para a oligarquia, mas boa para a democracia, a proteção do pl aneta e o interesse geral. Desse ponto de vista, ela já passou da hora de acontecer”. Infelizmente, adverte ele, “grandes mudanças na ordem econômica mundial só ocorrem durante crises extremas”.25

*Renaud Lambert é jornalista do Le Monde Diplomatique; e Dominique Plihon é professor emérito da Universidade Sorbonne Paris Nord e membro do conselho científico da Associação para a Taxação das Transações Financeiras para a Ajuda aos Cidadãos (Attac).

1 “Nicolas Sarkozy s’attaque aux paradis fiscaux et à la suprématie du dollar” [Nicolas Sarkozy ataca paraísos fiscais e supremacia do dólar], Le Point, Paris, 13 dez. 2010.

2 Citado por Herman Mark Schwartz, “American hegemony: intellectual property rights, dollar centrality, and infrastructural power” [Hegemonia norte-americana: direitos de propriedade intelectual, centralidade do dólar e poder infraestrutural], Review of International Political Economy, v.26, n.3, Routledge, Milton Park, 2019.

3 Charles Kindleberger, “The Dollar Yesterday, Today, and Tomorrow” [O dólar ontem, hoje e amanhã], Banca Nazionale del Lavoro Quarterly Review, n.38, Roma, 1985.

4 Durante o Fórum Econômico Internacional de São Petersburgo, 16 jun. 2023.

5 Ler Martine Bulard, “Quand le Sud s’affirme” [Quando o Sul se afirma], Le Monde Diplomatique, out. 2023.

6 Entrevista na CGTN, 14 abr. 2023.

7 Ler Renaud Lambert, “FMI, les trois etres les plus détestées du monde” [FMI, as três letras mais odiadas do mundo], Le Monde Diplomatique, jul. 2022.

8 James K. Galbraith, “The Dollar System in a Multi-Polar World” [O sistema dólar em um mundo multipolar], International Journal of Political Economy, v.51, n.4, Nova York, 2022.

9 Ler Renaud Lambert, “Les Calimero de l’euro” [Os Calimeros do euro], Le Monde Diplomatique, jan. 2023.

10 Entrevista na CGTN, op. cit.

11 Citado por Michael Stott e James Kynge, “China exploits sanctions to undermine dollar” [China explora sanções para minar dólar], Financial Times, Londres, 28 ago. 2023.

12 Michael Stott e James Kynge, op. cit. 

13 Michel Aglietta, Guo Bai e Camille Macaire, La Course à la suprématie monétaire mondiale. À l’épreuve de la rivalité sino-américaine [A corrida pela supremacia monetária global. À prova da rivalidade sino-norte-americana], Odile Jacob, Paris, 2022.

14 “America’s aggressive use of sanctions endangers the dollar’s reign” [Uso agressivo de sanções pelos Estados Unidos põe em perigo o reinado do dólar], The Economist, Londres, 18 jan. 2020.

15 “China wants to make the yuan a central-bank favourite” [China quer tornar o yuan um favorito do Banco Central], The Economist, 7 maio 2020.

16 Direção de Estatísticas Comerciais (DOTS), FMI.

17 Nidhi Verma e Noah Browning, “Insight: India’s oil deals with Russia dent decades-old dollar dominance” [Insight: acordos petrolíferos entre Índia e Rússia prejudicam domínio do dólar há décadas], 8 mar. 2023. Disponível em: reuters.com.

18 Tom Benoît, “La fin du dollar roi” [O fim do rei dólar], Le Point, Paris, 26 set. 2023.

19 Essas porcentagens representam um total de 200%, porque dizem respeito a um dos dois lados de cada operação que envolve duas moedas.

20 Gostaríamos de agradecer a Paulo Nogueira Batista Jr. por nos enviar o texto de sua fala.

21 Ler Bernard Cassen, “Le Sucre contre le FMI” [Sucre contra o FMI], La Valise Diplomatique, 2 dez. 2008.

22 James K. Galbraith, op. cit.

23 Ler Dominique Plihon, “Une ‘monnaie’ mondiale contre le dollar?” [Uma “moeda” mundial contra o dólar?], Le Monde Diplomatique, out. 2023.

24 Astrid Viaud e Paul-Arthur Luzu, Entre dollar et cryptomonnaies. Le défi des sanctions pour L’Europe [Entre dólares e criptomoedas. O desafio das sanções para a Europa], Éditions Arnaud Franel, 2022, Paris.

25 James K. Galbraith, “The Dollar System in a Multi-Polar World”, op. cit.


Ilustração: Winny Tapajós

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