03 dezembro 2023

Espionagem no governo Bolsonaro

No reino da arapongagem
Como os órgãos oficiais abriram as comportas da espionagem ilegal no governo Bolsonaro
Allan de Abreu/revista Piauí

Em março de 2019, três meses depois da posse de Jair Bolsonaro, o Brasil começou a abrir um mercado fértil para um setor que atua nas sombras – a espionagem. Um dos mais bem-sucedidos fabricantes de material de escuta e monitoramento do mundo, o israelense NSO Group percebeu a maré favorável e acionou seus representantes para vender equipamentos ao governo. Afinal, o então presidente dizia publicamente que não confiava no sistema de inteligência oficial. Suas declarações soavam como um convite às fabricantes para vender suas ferramentas intrusivas, sobretudo à Polícia Federal e à Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Um dos lobistas do NSO, o brasileiro Marcelo Comité Ferreira da Silva, arregaçou as mangas. Em um áudio de WhatsApp, obtido no âmbito de uma investigação do Ministério Público Federal e ao qual a piauí teve acesso, o lobista comenta as boas possibilidades que surgiam com o novo governo para oferecer seus produtos:

O Eduardo Bolsonaro, por exemplo, é um cara que é…. Dá pra gente chegar e fazer essa apresentação, entendeu? Eu vou fazer o seguinte, cara. Eu vou pegar, ver se eu pego o Ramagem, que é o cara que… é… ver se eu faço lá na DPF mesmo, que é uma coisa transparente pro Ramagem, e chamar o pessoal da inteligência do gsi, para apresentar isso lá… lá na DPF.

No áudio, Ferreira da Silva se refere a Alexandre Ramagem, um policial federal que, quatro meses depois ocuparia o cargo de diretor-geral da Abin. O lobista do NSO queria apresentar seu produto no DPF, que é como se refere à Polícia Federal, e esperava contar com a presença de integrantes do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), órgão então sob comando do general Augusto Heleno. No entanto, a presença de Ramagem, hoje deputado federal pelo PL do Rio de Janeiro, era especialmente importante. Prossegue o áudio:

Porque ele [Ramagem] é o cara de extrema confiança do Bolsonaro. […] É delegado de polícia, sabe investigar pra cacete. Esse cara vai ver a importância disso. Acho que é o melhor cara pra gente chamar na DPF, né? Às claras, na DPF ali, e fazer uma apresentação para ele, cara. É um… é o cara ‘top’ para gente fazer isso aí. Se é pra chegar no Bolsonaro, esse é o cara.

O material de alta “importância” que Ferreira da Silva pretendia vender ao governo chama-se Pegasus. É a mais agressiva e eficiente ferramenta cibernética de espionagem de que se tem notícia. Sua primeira versão surgiu em 2011 e revolucionou os serviços de inteligência estatal no mundo ao oferecer múltiplas funções: invade qualquer aparelho celular, em qualquer dispositivo operacional (Android ou IOS), sem que o usuário perceba, driblando qualquer criptografia de aplicativos de mensagens – e tudo isso sem depender de nenhuma ação por parte do investigado, como um clique em algum link malicioso, para iniciar o monitoramento. O Pegasus revelou-se tão poderoso que só pode ser negociado com entes governamentais e toda a venda depende de uma autorização formal do governo israelense.

A sugestão de um encontro do NSO com Ramagem ganhou impulso poucos dias depois, quando Bolsonaro e seu filho Flávio retornaram de uma viagem a Israel, durante a qual se encontraram com representantes do grupo. Em novo áudio, o Ministério Público Federal suspeita de que Alyson Rainer de Barros, outro representante do NSO, é quem comemora com Ferreira da Silva que a reunião de apresentação já estava marcada e dá a entender que Bolsonaro, na visita a Israel, conheceu o Pegasus e gostou do que viu:

Fala, chefe. […] Tá marcado quarta-­feira, 15 horas, apresentação pro Ramagem, que é o braço direito do presidente. Cara, que quando o presidente viu o Pegasus, chegou no Brasil e mandou o Ramagem atrás, tá? E aí o Ramagem vai chamar o presidente pra ver a apresentação.

Ramagem demonstrou interesse no Pegasus, as negociações se prolongaram, mas o Ministério Público Federal não conseguiu confirmar se a Abin, de fato, comprou a ferramenta. Ao MPF, o órgão negou ter adquirido o programa israelense. “A intrusão, a interceptação de comunicações ou a obtenção de arquivos em dispositivos eletrônicos […] não têm amparo legal e não é permitida à Abin”, disse a Secretaria de Planejamento e Gestão da agência. Não se sabe qual uso Bolsonaro pretendia dar ao Pegasus quando se interessou pelo programa, mas a Abin, naquela mesma época, vinha operando ilegalmente um programa de espionagem que adquirira um ano antes – o FirstMile. Fabricado pela Cognyte Software Ltd., empresa também israelense e concorrente do NSO Group. O FirstMile é uma ferramenta potente, mas não tem as mesmas propriedades que o Pegasus. Seu forte é monitorar em tempo real a localização geográfica de um celular, mas não é capaz de invadir seu conteúdo. Substituí-lo pelo Pegasus seria uma enorme vantagem.

O FirstMile vinha sendo útil aos arapongas. Em março deste ano, o jornal O Globo revelou que servidores da Abin estavam usando o programa para bisbilhotar adversários ilegalmente. Diante da denúncia pública, a Polícia Federal abriu uma investigação e constatou que a Abin fizera mais de 30 mil rastreamentos de celulares por meio do FirstMile. A polícia já descobriu a identidade de metade dos 1,8 mil monitorados. Entre eles, estavam o jornalista americano Glenn Greenwald e seu marido, o deputado federal David Miranda, falecido em maio de 2023, além de um agente do Ibama, Hugo Loss, chefe de fiscalização exonerado depois de realizar operações contra garimpeiros e madeireiros ilegais no Sul do Pará.

Entre os alvos da investigação da PF, que tramita em sigilo, está Caio Cesar dos Santos Cruz, filho do general Carlos Alberto Santos Cruz, ministro-chefe da Secretaria de Governo no início da gestão Bolsonaro que depois rompeu com o governo. Caio Santos Cruz trabalhava como lobista da Cognyte, a fabricante do FirstMile. Outro alvo da PF é Paulo Maurício Fortunato Pinto, terceiro na hierarquia da Abin, de onde foi demitido. Em sua casa, os agentes encontraram 172 mil dólares em espécie. Fortunato Pinto trabalhou no Serviço Nacional de Informações (SNI), o serviço secreto do regime militar. No governo Bolsonaro, foi diretor de operações da Abin, nomeado por Alexandre Ramagem.

A venda do FirstMile e o trabalho do NSO para oferecer o Pegasus ao governo é uma operação comercial regular e dentro da lei, bem como o interesse do governo em adquirir uma ferramenta capaz de ampliar sua capacidade de combater o crime. “Não se discute a importância de o Estado usar ferramentas tecnológicas na investigação de organizações criminosas que há tempos escondem suas atividades sob o escudo de aplicativos criptografados”, diz Bárbara Simão, coordenadora de pesquisa na área de privacidade e vigilância do InternetLab, centro de pesquisa em direito e tecnologia, localizado em São Paulo. “Mas é necessário haver regras claras no uso desses dispositivos, e hoje essas regras não existem no Brasil, o que permite todo tipo de desvio ético e legal.”

O Ministério Público Federal entende que casos de monitoramento por geolocalização também requerem aval da Justiça. O argumento dos procuradores é baseado numa analogia simples: a lei nº 13812, de 2019, exige essa autorização para localizar pessoas desaparecidas. Portanto, é natural que a Justiça também precise autorizar o uso de programas de geolocalização.

Nos Estados Unidos, desde 2018, por decisão da Suprema Corte, as polícias só podem usar esses programas com autorização judicial.

Encerradas as negociações com a Abin para a compra do Pegasus, o governo Bolsonaro voltou ao assunto em julho de 2020. Em seus primeiros dez anos de existência, o programa fora adquirido pelas mais renomadas polícias e serviços de inteligência do mundo, como o FBI. Seu uso permitiu que a polícia mexicana prendesse o megatraficante Joaquín “El Chapo” Guzmán, levou ao desmonte de ações terroristas na Europa e revelou uma rede global de abusos de crianças. Mas, como tecnologias são amorais, houve danos colaterais gravíssimos.

O mesmo Pegasus que viabilizou a captura de El Chapo foi usado pelo governo do México para espionar jornalistas, advogados e ativistas dos direitos humanos. Em El Salvador, ocorreu uma invasão idêntica, com perseguição aos jornalistas do El Faro, site independente de notícias que resiste às hostilidades autoritárias do governo de Nayib Bukele. No caso mais rumoroso, uma série de reportagens do consórcio de jornalistas Forbidden Stories (Histórias proibidas) trouxe indícios de uso da ferramenta na perseguição a dois jornalistas que acabaram assassinados: o mexicano Cecilio Pineda Brito e o saudita Jamal Khashoggi, esquartejado dentro da Embaixada da Arábia Saudita em Istambul. O consórcio ainda revelou que o Pegasus espionou o presidente da França, Emmanuel Macron, e opositores do primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu. Depois da publica&ccedi l;ão dos escândalos, os Estados Unidos desistiram de adquirir produtos do NSO. A Meta e a Apple processaram o NSO acusando o grupo de ser “cibermercenário” e promover “pseudoguardiões que distribuem softwares intrusivos e prestam serviços de vigilância indiscriminada, leia-se espionagem”.

A Polícia Federal brasileira, porém, não viu nenhum inconveniente em tratar com o NSO. Naquele mês de julho de 2020, Rolando Souza, ex-subordinado de Ramagem na Abin, estava no comando da PF e reabriu a discussão para comprar o Pegasus. O Serviço de Operações de Inteligência da corporação fez uma descrição minuciosa das funções que um programa de escuta e monitoramento precisava ter – e a descrição se encaixava com o Pegasus. Alexandre da Silveira Isbarrola, então diretor de inteligência policial, encabeçou as negociações com o NSO. Nos diálogos captados pelo Ministério Público, os representantes do grupo israelense, curiosamente, não tratam o programa pelo nome, mas por um código – “boi”. A PF queria quinze licenças do “boi”, capazes de vigiar 5 mil alvos por ano, a um custo de 7,5 milhões de dólares.

De novo, as negociações se arrastaram, e a Polícia Federal acabou adquirindo outra ferramenta do NSO, o PixCell. O programa custou 28 milhões de reais. Não é igual ao Pegasus, mas também é altamente invasivo. Conforme a descrição da própria empresa, o PixCell “localiza, intercepta, bloqueia, manipula comunicações”. É o que o mercado conhece como “IMSI-­catcher” – ou “receptor IMSI”, sigla, em inglês, para “interceptador de identidade do assinante móvel internacional”. Um IMSI-catcher é especialmente adequado para escutas ilegais porque dispensa a intermediação de uma companhia telefônica. A ferramenta realiza a interceptação de forma direta e autônoma – driblando, portanto, a autorização da Justiça.

A Polícia Federal não apenas comprou o PixCell como tentou esconder a aquisição das autoridades. Em 2015, a corporação já havia comprado uma ferramenta bastante invasiva, o RCS Galileo, fabricada pela italiana Hacking Team, que é representada no Brasil pela YasNiTech. A PF também tentou ocultar a compra do RCS Galileo. No bojo da investigação, o Ministério Público perguntou formalmente se a PF tinha algum desses programas espiões. A corporação respondeu que não, mas a fabricante italiana entregou o jogo, ao confirmar a venda da ferramenta e apresentar a nota fiscal. (Estranhamente, uma das parcelas do RCS Galileo não foi paga pela PF, mas por um delegado, Hugo de Barros Correia, então chefe da divisão de crimes fazendários da corporação. Procurado pela piauí, Correia não quis falar.)

A falsa negativa da PF sobre a posse das duas ferramentas levantou suspeitas. Em uma ação civil pública contra a União, os procuradores escreveram: “Em quais procedimentos, investigações e análises as tais ferramentas foram usadas? Por que manter a aquisição e uso desses instrumentos de investigação e de obtenção de informação ocultos do Ministério Público? Não se pode sequer afirmar que seria necessário manter sigilo absoluto a respeito das ferramentas adquiridas. Considerando que seu uso depende de autorização judicial, e sendo o processo criminal brasileiro acusatório e dialético, tendo a defesa acesso a todas as provas produzidas, no primeiro caso que fosse usada a ferramenta, seu uso tornar-se-ia público.”

A investigação dos procuradores também colheu indícios de que o governo do Rio de Janeiro, durante a gestão de Wilson Witzel, comprou quinze licenças do Pegasus. (Nas conversas por WhatsApp, o valor do negócio variava de 45 a 73 milhões de reais.) O então secretário de Polícia Civil, Marcus Vinicius de Almeida Braga, chegou a assinar uma licença de importação do produto, documento exigido pelo governo de Israel. (Consultada pe­la piauí, a Polícia Civil do Rio negou que tenha comprado o Pegasus.) Dias antes da posse, Witzel visitou Israel, encontrou-se com o ministro da Segurança Pública, Gilad Erdan, e prometeu assinar acordos de cooperação. “Os problemas que existem em Israel são muito parecidos com os que nós temos hoje no estado do Rio. Temos grupos armados similares a grupos terroristas”, disse Witzel. Em &aac ute;udios recuperados, o Ministério Público achou indícios de que o contato do governador era o lobista Ferreira da Silva, do NSO Group.

O Ministério Público Federal está preocupado com a desordem na espionagem de órgãos estatais. “O que se verifica aqui é um estado de coisas de patente ilicitude, de flagrante desconformidade ao direito”, criticou. Em março de 2022, o MPF ingressou com ação civil pública contra a União pedindo que a Abin e a Polícia Federal suspendessem o uso de ferramentas invasivas sem autorização judicial e que o governo, no prazo de trinta dias, apresentasse uma proposta de regulamentação do uso desses programas. O pedido foi rejeitado em primeira e segunda instâncias. Está hoje no Supremo Tribunal Federal, sob relatoria do ministro Edson Fachin. O caso tramita sob sigilo.

A legislação nunca foi capaz de eliminar a arapongagem. Há quase três décadas, a lei nº 9296/1996 proíbe e pune o grampo ilegal. Três anos depois da promulgação da lei, a Polícia Militar do Paraná foi flagrada invadindo os telefonemas de cinco lideranças do movimento sem-terra. O caso terminou em pizza nos tribunais brasileiros, mas, dez anos depois, o país foi condenado a pagar 100 mil dólares às vítimas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Em 2008, a revista Veja revelou que o então presidente do STF, Gilmar Mendes, tivera conversas captadas dentro do seu gabinete. Suspeitou-se que a operação fora comandada pela Abin, que havia pouco adquirira uma maleta de escuta telefônica.

Os casos são numerosos, mas a confluência de dois fatores ajudou a agravar o quadro: o surgimento dos smartphones nos anos 2000, com aplicativos de conversa que prescindem do telefone convencional, se somou à disposição bisbilhoteira de integrantes do governo Bolsonaro, o que estimulou a atividade das fabricantes de equipamentos intrusivos no Brasil. Criou-se assim um descontrole ainda maior. “Por lei, cabe ao Ministério Público o controle da atividade policial. Na prática, não há controle algum. Não se sabe com qual finalidade esses dispositivos estão sendo usados Brasil afora, nem por quem, nem contra quem. Estamos completamente no escuro”, diz o procurador Vladimir Aras, do Ministério Público Federal.

Durante seis meses, a piauí investigou o mercado de espionagem ilegal por parte de órgãos do Estado, ouvindo policiais, promotores de Justiça, especialistas em cibersegurança, ativistas ligados aos direitos humanos e políticos em seis estados e no Distrito Federal. A conclusão é que, operando nas brechas da lei ou violando abertamente a legislação, o Brasil virou um celeiro da arapongagem clandestina nas esferas oficiais, o que não envolve apenas a Abin e a Polícia Federal, mas também as polícias estaduais e até o Exército. A bisbilhotice oficial ocorre tanto para fora dos órgãos oficiais, atingindo cidadãos comuns, como para dentro dos órgãos oficiais, envolvendo disputas intestinas por espaço e poder.

Oprocurador Gilberto Valente Martins estava em seu amplo gabinete na sede do Ministério Público do Pará, na manhã de 26 de maio de 2020, quando seu telefone fixo tocou. De um orelhão, um amigo, delegado da Polícia Civil, pediu um encontro urgente, mas fez uma recomendação: o procurador não devia levar seu aparelho de celular. Assim que se sentaram em um banco da Praça Batista Campos, numa área central de Belém, o delegado, assustado, certificou-se de que o procurador não fora seguido, nem estava sendo observado. Então, alertou que as conversas por celular de Martins e outros promotores estavam sendo interceptadas ilegalmente pela Polícia Civil. Era uma notícia assustadora.

Naquela época, o Ministério Público e a Polícia Federal investigavam o governador Helder Barbalho (MDB-PA) e seus secretários no âmbito de três esquemas de corrupção: fraudes milionárias na contratação de organizações sociais (OSS) para gerir hospitais públicos e compra superfaturada de cestas básicas e de aparelhos respiradores para tratamento de pacientes com Covid. Um dos principais alvos dos investigadores era Parsifal de Jesus Pontes, então chefe da Casa Civil de Barbalho. Pontes era suspeito de atuar como operador de propinas do governador. Em seu celular, a polícia encontrara comprovantes de compras de roupas caras para a mulher de Barbalho.

De imediato, suspeitou-se que a intercepção ilegal da Polícia Civil se devia a essas investigações em curso. A escuta vinha acontecendo por meio de um programa chamado GI-2, fabricado pela empresa israelense Verint Systems, que depois desmembrou o setor de inteligência e deu-lhe o nome de Cognyte Soft­ware. A Polícia Civil do Pará havia adquirido o produto em fevereiro daquele ano. Não fez licitação e escolheu um modelo que custava 5 milhões de reais.

Com o tamanho de uma mala de viagem grande, o equipamento do GI-2 – que é um tipo de IMSI-catcher – cabe no porta-malas de um veículo de médio porte e é controlado a partir de um notebook. O aparelho opera como se fosse uma Estação Rádio Base (ERB), cujas populares antenas capturam os sinais do celular. Todos os celulares em funcionamento numa certa área (o alcance depende da potência da antena acoplada ao GI-2) deixam de enviar seus sinais para a ERB mais próxima, como acontece regularmente, e passam a enviá-los ao equipamento do GI-2.

A Cognyte costuma vender o GI-2 junto com o programa FirstMile, o mesmo que a Abin de Bolsonaro usou para espionar adversários políticos. Uma ferramenta complementa a outra. O GI-2 também localiza celulares em tempo real, mas o FirstMile tem um alcance espacial maior. Assim, com os dois programas, é possível localizar um telefone a quilômetros de distância por meio do FirstMile, aproximar-se fisicamente do alvo e, então, recorrer ao GI-2 para interceptar a comunicação. O GI-2 tem um funcionamento engenhoso. Quando capta o sinal de um telefone, o programa rebaixa a conexão para 2G, que é mais antiga, mais lenta e não é criptografada. Com isso, consegue interceptar as ligações telefônicas convencionais e mensagens de SMS, dentro da área monitorada. Mais que isso: é capaz até de editar uma mensagem do SMS, sem que a pessoa espionada perceba. O GI-2 ainda bloqueia o sinal de internet do celular, mas não consegue quebrar a criptografia de aplicativos como o WhatsApp.

Com uma versão potencializada, o GI-2 também é capaz de abrir o microfone do celular do alvo de espionagem para captar a conversa ambiente. O portfólio da Cognyte sobre o programa, obtido pela piauí, descreve textualmente as capacidades do GI-2: “Controle as chamadas de voz e mensagens de texto enviadas ou recebidas pelo dispositivo do alvo […], ative o microfone do dispositivo do alvo e escute secretamente nas imediações.” Neste ponto, a lei brasileira é clara e criminaliza interceptações de comunicação sem autorização judicial.

Mas nada disso deteve a espionagem.

Naquele maio de 2020, também chegou à Superintendência da Polícia Federal em Belém a informação de que os próprios agentes também estavam sendo vigiados pela Polícia Civil por meio do GI-2 instalado numa van ali perto. Discretamente, policiais da PF foram até o estacionamento da sede da corporação no bairro de Nazaré, em Belém, e encontraram a maleta do GI-2 no porta-­malas de uma van. A partir daquele momento, promotores e policiais federais passaram a evitar o uso de celulares e priorizar conversas presenciais, sem telefone no bolso.

O então delegado-geral da Polícia Civil paraense, Alberto Henrique Teixeira de Barros, tinha razões familiares para investigar promotores e policiais federais. Parsifal Pontes, o chefe da Casa Civil do governo, é seu cunhado. Além disso, a mulher do delegado-geral, Denise, estava lotada na Casa Civil e havia participado da comissão de licitação que resultou na contratação de duas OSS – e num desvio estimado em 455 milhões de reais. Quando desconfiou que sua mulher e seu cunhado estavam na mira dos agentes federais e promotores, o delegado Alberto Barros começou a bisbilhotá-los com o GI-2 e instaurou um inquérito na Polícia Civil. Queria apurar se um dos testas de ferro do esquema de compras fraudulentas de cestas básicas estava, ou não, sob a mira da investigação da PF.

No dia 29 de setembro de 2020, numa operação deflagrada pela Polícia Federal, Parsifal Pontes foi preso no caso da contratação das oss. O apartamento do delegado Barros e de sua mulher e o gabinete do governador foram alvos de uma operação de busca e apreensão. A Polícia Federal também apreendeu o equipamento de GI-2 na sede da Polícia Civil. Pontes e Barros perderam os cargos – mas Barros, tempos depois, acabou nomeado por Barbalho para ser secretário de Justiça e Direitos Humanos do Pará, cargo que ocupou até o início deste ano. Todos os três – Barbalho, Pontes e Barros – respondem a ação de improbidade administrativa no Tribunal de Justiça do Pará, ainda sem sentença. No âmbito penal, o inquérito da pf continua em curso.

A reportagem apurou que a perícia realizada pela Polícia Federal no equipamento de GI-2 não encontrou indícios da suposta vigilância feita contra promotores e policiais federais. A piauí perguntou à assessoria da pf se os peritos encontraram algum indício de apagamento de informações coletadas pelo GI-2, mas a assessoria não respondeu. No entanto, um especialista, ouvido pela piauí sob anonimato para não se indispor com as empresas, diz que é possível apagar informações coletadas pelo GI-2 sem deixar rastros. Sem os indícios, o equipamento foi devolvido à Polícia Civil. Indagada se o programa espião segue em uso, a assessoria de imprensa da Polícia Civil informou apenas que “o equipamento de inteligência é utilizado de acordo com as normas legais que regulame ntam as investigações criminais”.

OGI-2 tornou-se uma febre no governo Bolsonaro, mas começou a entrar no Brasil a partir de 2015. Na época, ainda na gestão de Dilma Rousseff, aprovou-se uma emenda à lei de combate às organizações criminosas permitindo a compra de equipamentos de inteligência sem licitação ou publicidade. “Abriu-se ali uma brecha legal para todo tipo de abuso, com o argumento de que o crime não pode conhecer as ferramentas do Estado para combatê-­lo”, diz Bruno Brandão, diretor executivo da Transparência Internacional no Brasil. “O argumento não cola porque esse tipo de equipamento é oferecido abertamente pelas empresas do ramo em feiras mundo afora.”

Com a nova legislação, o equipamento e respectivo programa foram adquiridos – sempre sem licitação – por sete governos estaduais: além do Pará, a compra foi feita pelos estados de Alagoas, Amazonas, Espírito Santo, Mato Grosso, São Paulo e Rio Grande do Sul. O Exército, então sob o comando do general Eduardo Villas Bôas, também está na lista. A apuração da piauí não encontrou elementos sólidos sobre o uso do GI-2 por parte do Exército. A Polícia Federal, no entanto, abriu uma investigação para apurar se os militares recorreram ao equipamento nas maquinações golpistas durante o governo Bolsonaro. O Exército não informa se fez uso do GI-2, nem mesmo se comprou o equipamento, por se tratar de “atividade de inteligência”, coberta por sigilo legal.

A Cognyte, fabricante do GI-2, soube penetrar no mundo militar. Além do lobista Caio Santos Cruz, o filho do ex-­ministro, a empresa recorreu aos trabalhos dos sócios Luiz Adolfo Sodré de Castro, general da reserva, e Hélcio Bruno de Almeida, tenente-coronel do Exército que foi acusado pela CPI da Covid de irregularidades na compra de vacinas contra o coronavírus. Dos três, o general Sodré de Castro tinha a maior influência. Ele é amigo do general Villas Bôas, comandante do Exército de 2015 a 2019 e hoje recluso devido a uma doença degenerativa. Quando assumiu, Villas Bôas criou um grupo de generais amigos, batizado de “conselho de notáveis”, que se reunia em almoços e rodas de chimarrão em Brasília. Villas Bôas e Sodré de Castro são gaúchos.

Nesses encontros, não era incomum que Sodré de Castro conversasse com Villas Bôas sobre equipamentos de inteligência da então Verint e futura Cognyte. A certa altura, Villas Bôas repassou ao vice-chefe do Estado-Maior, general Luiz Eduardo Ramos, a tarefa de abrir licitações para adquirir algumas ferramentas. Como as compras eram em dólar, optou-se por fazê-las por meio da Comissão do Exército em Washington, vinculada ao Comando do Exército em Brasília, a fim de contornar as flutuações cambiais. De acordo com um oficial próximo de Villas Bôas e de Sodré de Castro, Ramos costumava telefonar do Brasil para a comissão pedindo agilidade na burocracia para apressar as negociações.

Deu certo. As compras começaram em 2016, ainda no governo de Michel Temer, e só cessaram em 2020, um ano depois da saída de Villas Bôas do Comando do Exército, quando o general Ramos já era ministro-chefe da Secretaria de Governo de Bolsonaro. Nesses quatro anos, de acordo com o Portal da Transparência do governo federal, o Exército pagou 70,7 milhões de reais à empresa israelense. Como todos os contratos estão sob sigilo, não é possível afirmar quanto desse dinheiro foi destinado à compra do GI-2. Mas a piauí teve acesso a uma proposta comercial da ex-Verint, na qual a empresa israelense oferecia o GI-2 à Comissão do Exército em Washington, em 2019. A proposta ocupava apenas uma página e oferecia a ferramenta por 4,5 milhões de dólares. A reportagem apurou com fontes na pf que, de fato, o produto foi adq uirido pelo Exército.

piauí também consultou os sete governos estaduais que compraram o GI-2 para saber em que tipo de investigação o produto é usado e se sua aplicação se dá mediante autorização judicial. Além do Pará, as assessorias das Polícias Civis de Mato Grosso, Rio Grande do Sul e São Paulo responderam, ainda que parcialmente. Em Mato Grosso, a polícia disse que usa a ferramenta na “localização de indivíduos alvos de mandado judicial”. A polícia gaúcha disse que a ferramenta ainda não está em atividade e só será usada com ordem da Justiça. Em São Paulo, a polícia confirmou a compra do GI-2, mas não falou sobre seu uso. Os demais estados não se manifestaram, mas é no Amazonas que se tem o caso mais repulsivo. Ali, aconteceu o uso mais brutal do GI-2 de que se tem notícia até agora.

Tão logo assumiu o poder, em janeiro de 2018, o governador do Amazonas, Wilson Lima (na época do PSC e hoje filiado ao União Brasil), anunciou o nome do novo secretário de Segurança Pública: Louismar Bonates, um coronel da reserva da Polícia Militar. Os especialistas e estudiosos na área de segurança chegaram a pensar que se tratava de uma brincadeira de mau gosto. Afinal, Bonates tinha um currículo demoníaco. Já fora investigado por envolvimento em um grupo de extermínio formado por policiais militares em Manaus – o corpo de uma vítima fora enterrado no sítio de Bonates depois de ser obrigado a cavar a própria sepultura. Além disso, era próximo de Wallace Souza, o apresentador de tevê suspeito de mandar matar pessoas para aumentar a audiência de seu programa Canal livre, exibido na antiga TV Rio Negro. O caso de Wallace Souz a, que morreu em 2010, apareceu no documentário Bandidos na TV, da Netflix.

Bonates tinha outra nódoa grave no currículo. Em 2015, quando exercia o cargo de secretário de Administração Penitenciária, ele fez uma reunião na biblioteca de um presídio em Manaus com o líder da facção criminosa conhecida como Família do Norte (FDN). Na reunião, combinou-se uma trégua. A FDN reduziria os homicídios na sua disputa com a facção rival, o Primeiro Comando da Capital (PCC), e em troca receberia tratamento privilegiado na prisão. Para a Polícia Federal, esse acordo fortaleceu tanto a FDN que resultou, em janeiro de 2017, em uma das maiores chacinas penitenciárias da história nacional: 56 mortos.

Quando tomou posse como secretário de Segurança Pública, Bonates passou a ter acesso a um equipamento de espionagem que o órgão havia comprado em 2016 por 6,7 milhões de reais – o GI-2. Dois anos depois de sua posse, chegou ao Ministério Público do Amazonas a informação de que agentes da Secretaria de Segurança estavam extorquindo comerciantes de ouro depois de monitorá-los com o GI-2 e outro programa, conhecido como Guardião. “Na investigação, muitos desses comerciantes de ouro relatavam que os policiais tinham informações muito precisas dos contatos e das rotinas deles”, diz um dos membros do Ministério Público ouvido pela piauí sob a condição de manter sua identidade em sigilo.

Em 25 de janeiro de 2021, um dos empresários, Raimundo José da Cruz Júnior, contou ao 10º Distrito Integrado de Polícia em Manaus que seu motorista transportava 38,5 kg de ouro de origem legal quando foi abordado por dezesseis policiais civis armados. Levado para a Secretaria de Segurança Pública, o motorista foi obrigado a assinar um recibo de restituição do ouro. Era falso. Os policiais civis ficaram com a mercadoria e, dias depois, devolveram apenas 9 kg a Cruz Júnior. Ficaram com 25 kg de ouro, avaliados em 11 milhões de reais.

Ao investigar o caso, o Ministério Público descobriu outra extorsão, dessa vez contra o garimpeiro Wagner Flexa Saita, também monitorado com o GI-2. Em 22 de fevereiro de 2021, apenas um mês depois do achaque ao comerciante Cruz Júnior, o garimpeiro taxiava um avião fretado no Aeroclube de Manaus quando quatro policiais civis armados invadiram a pista e impediram a decolagem, alegando que havia suspeita da presença de drogas na aeronave. A bordo, encontram 7 kg de ouro – de origem legal – e ficaram com 2,2 kg. O garimpeiro denunciou o caso ao Departamento de Repressão ao Crime Organizado da própria Polícia Civil – e logo foi chamado para uma reunião incomum. Bonates e o subsecretário, o delegado Samir Garzedim Freire, queriam conversar com o garimpeiro. Não se sabe o que disseram, mas o fato é que o garimpeiro mudou sua versão, dizendo que havia achado o ouro no avião e que tudo não passara de “um mal-entendido”. Garzedim Freire e mais três policiais são réus em ação penal, acusados de associação criminosa, extorsão e fraude processual. O processo não foi julgado. Bonates não chegou a ser denunciado no caso, mas, desgastado com o episódio, pediu demissão da secretaria.

Segundo suspeitas do Ministério Público, Bonates e Garzedim Freire também usaram o GI-2 para espionar políticos de oposição ao governo. Entre eles, o deputado estadual Péricles Rodrigues do Nascimento, do PL, conhecido como Delegado Péricles. Em 2021, o parlamentar foi relator da CPI da Covid na Assembleia Legislativa que investigou o alto índice de mortes nos hospitais do estado no início daquele ano, em razão da pandemia. “Fui informado por fontes na polícia que eu fui monitorado com o GI-2”, disse Nascimento à piauí. Ele é delegado aposentado e hoje integra a base de apoio ao governador Lima.

Mas as coisas ainda ficariam piores.

Depois de passar vinte dias preso, Garzedim Freire voltou a ser ouvido pelo Ministério Público. A certa altura, deu uma informação gravíssima. Disse que, durante a gestão de Bonates, a Secretaria de Segurança Pública do Amazonas usara o GI-2 para localizar – e depois torturar e assassinar – ribeirinhos ao longo do Rio Abacaxis. A história começou quando o secretário executivo do Fundo de Promoção Social do Amazonas, Saulo Moysés Rezende Costa, fazia pesca esportiva no Abacaxis, uma atividade ilegal na região, e foi hostilizado por indígenas e ribeirinhos. No entrevero, o secretário acabou levando um tiro de raspão. Dez dias depois, dez policiais militares à paisana, encapuzados e armados com fuzis, apareceram na comunidade em busca do autor do tiro. Foram recebidos a bala. Dois policiais morreram e dois ficaram feridos. A vingança veio dois dias depois, na forma de um massacre.

A Secretaria de Segurança mobilizou 130 policiais militares para caçar Valdelice Dias da Silva, o Bacurau, apontado como autor do tiro de raspão. E fez toda a operação com o uso do GI-2, segundo Garzedim Freire. Como prova, entregou o termo de retirada da maleta do equipamento pela PM. O aparato localizou os ribeirinhos e monitorou seus movimentos. Durante dez dias, de 4 a 14 de agosto de 2020, os policiais, usando balaclavas e sem identificação nas fardas, percorreram as comunidades ribeirinhas aterrorizando os moradores: dezenas de homens e mulheres torturados (alguns foram sufocados com sacos plásticos na cabeça, outros foram ameaçados com fogo depois de terem o corpo embebido em gasolina), crianças foram trancafiadas por vários minutos dentro de freezers, três casas foram incendiadas em aldeia indígena e oito pessoas foram assassinadas – dois corpos seguem desaparecidos. Em r azão da barbárie, a Polícia Federal indiciou Bonates e o comandante da PM na ocasião, coronel Ayrton Norte, por homicídio, tortura, associação criminosa, cárcere privado e obstrução de Justiça. Até o fim de novembro, Bacurau seguia foragido.

A Polícia Federal apreendeu o GI-2 e encaminhou para o Instituto Nacional de Criminalística, em Brasília. A perícia confirmou que o GI-2 consegue captar conversas telefônicas e encontrou registros de uso do equipamento de 2015 até julho de 2021, mas não obteve dados de quais telefones foram interceptados. As ferramentas, então, foram devolvidas à Secretaria de Segurança e continuam sob uso da corporação policial. Em julho de 2022, a Polícia Civil fez outro negócio com a Cognyte: comprou, por 6 milhões de reais, uma maleta capaz de monitorar telefones satelitais, muito comuns na Amazônia devido à escassa cobertura de sinal dos celulares convencionais. A ferramenta é semelhante ao GI-2 e, segundo a proposta comercial da empresa enviada ao governo amazonense, intercepta chamadas de voz e de SMS.

Procurados pela piauí, nem Garzedim Freire, nem Bonates, nem a Secretaria de Segurança Pública do Amazonas se manifestaram.

Em 1996, dois jovens engenheiros catarinenses abriram uma loja de produtos de informática em Florianópolis. Vendiam computadores e impressoras. Chamava-se Suntech Informática Ltda. Na década seguinte, a loja passou a desenvolver e a vender dispositivos de monitoramento telefônico e telemático, como o Vigia. É um programa não intrusivo que faz apenas a interface entre as operadoras de telefonia e a polícia ou o Ministério Público no monitoramento de suspeitos com ordem judicial. Em 2011, porém, a Suntech mudou de status: tornou-se a representante oficial no Brasil da empresa israelense Verint Systems Inc., mais tarde chamada de Cognyte.

Depois desse movimento, começou a surgir a desconfiança de que a Suntech deixara de ser uma inocente loja de informática e passara a vender equipamentos de escuta ilegal. Em maio de 2016, a suspeita ganhou novos contornos. O delegado aposentado Diógenes Duarte Barros de Medeiros, que acabara de ser nomeado procurador-geral da Assembleia Legislativa de Santa Catarina, compareceu à PF em Brasília para fazer uma denúncia. Contou que a Assembleia estava montando um tal de “núcleo de informações estratégicas de caráter público”. Era uma iniciativa invasiva e estranha à rotina do Parlamento, pois previa “operações de investigação” e “quebras de sigilo”, em parceria com o Ministério Público. No cumprimento dessa tarefa, Barros de Medeiros recebia representantes de equipamentos de espionagem. Numa ocasião, re cebeu José Augusto Alves, que se apresentou como representante da Suntech. A certa altura da conversa, Alves lhe ofereceu uma maleta de interceptação telefônica “à pronta entrega”. O delegado recusou a oferta e resolveu denunciar o caso à PF na capital federal.

Seis meses mais tarde, em 9 de novembro de 2016, um grupo de agentes da PF em Florianópolis confirmou que a Suntech vendia aparato de espionagem. Em visita à empresa – na qual não ficou claro se os agentes se identificaram como policiais federais –, um funcionário, Fabio Shimizu, demonstrou o funcionamento dos equipamentos que vendia. Entre eles, estavam o GI-2, o programa SkyLock, muito semelhante ao FirstMile, e o WI2, que finge ser uma rede wi-fi já conhecida pelo aparelho celular e o leva a registrar-se nesta rede automaticamente. A partir disso, o programa permite capturar dados, como contas e senhas de e-mail e redes sociais. Em relatório da visita, ao qual a piauí teve acesso, os agentes federais informam que a Suntech garantiu que usava redes de operadoras de telefonia “de fora do país”, de modo que não havia interação “com as operadoras nacionais”.

A partir daí, começaram movimentos estranhos. A PF pediu a quebra do sigilo bancário, fiscal e telefônico de José Augusto Alves e cinco diretores da Suntech. (Um funcionário da empresa, Luciano Teixeira, respondia a processo na Justiça Federal por contrabando de bloqueadores de sinal de celular do Paraguai.) No entanto, o MPF e a juíza do caso não atenderam ao pedido, dizendo que configuraria “verdadeira devassa nos negócios de uma empresa que aparentemente opera legalmente no mercado”. Diante dessa negativa, a investigação da PF mudou completamente de foco. A Suntech não apenas sumiu do inquérito como passou a ser elogiada pelo delegado da investigação, enquanto as atenções se voltaram para as suspeitas de que José Augusto Alves teria informantes entre policiais civis e federais de Santa Catarina. Alves e outros seis investigados, incluin do dois delegados, um da Polícia Civil e outro da Polícia Federal, respondem a ação penal por organização criminosa, ainda não julgada.

Até hoje não se sabe por que a Polícia Federal começou a investigar a Suntech e, pouco depois, o delegado da investigação, Érico Barboza Alves, passou a considerá-la uma empresa de primeira linha. A Assembleia Legislativa, por sua vez, também não explica por que queria montar uma central de monitoramento dentro do próprio Parlamento. O então presidente da Casa, Gelson Merisio, e o delegado Barros de Medeiros não quiseram falar. A assessoria de imprensa da Assembleia informou que o tal “núcleo de informações estratégicas de caráter público” não foi constituído, sem dar detalhes. A assessoria do Ministério Público de Santa Catarina não se manifestou.

Em 2021, quando a Verint finalmente passou a chamar-se Cognyte Software Ltd., a Suntech adotou o nome Cognyte Brasil S.A. Sua sede ocupa quatro andares de um moderno edifício no Centro de Florianópolis e dispõe de um rigoroso sistema de segurança. A empresa já assinou pelo menos trinta contratos com o poder público, cujos valores somados chegam perto de 100 milhões de reais. (É possível que o número de contratos e os valores sejam superiores, considerando que, nos portais de transparência e diários oficiais, não aparecem os contratos considerados sigilosos.)

Entre os contratos públicos, sete referem-se à compra do polêmico GI-2. Uma unidade de elite da Polícia Civil de São Paulo comprou o equipamento por 5,9 milhões de reais. (O governo paulista, acionado pela piauí por meio da Lei de Acesso à Informação, negou-se a revelar a íntegra do contrato.) O responsável pela compra, Osvaldo Nico Gonçalves, é hoje o número dois da Secretaria de Segurança Pública da gestão do governador Tarcísio de Freitas. Em março passado, a Polícia Militar paulista reservou 9 milhões de reais no orçamento para adquirir um “sistema de radiofrequência portátil”. A piauí perguntou se a verba se destinava à compra do GI-2, mas a assessoria de imprensa da PM não se manifestou.

No início de novembro, a piauí procurou a Cognyte em Florianópolis para, entre outros pontos, entender a posição da empresa sobre as características intrusivas dos produtos que oferece. Uma funcionária orientou a revista a deixar telefone e e-mail para um futuro contato, que nunca ocorreu. A reportagem também enviou mensagens via Whats­App para três dos quatro diretores da empresa. Nenhum deles respondeu.

“A opacidade das polícias é enorme e o controle externo da atividade policial é muito precário, para não dizer inexistente”, critica Pedro Amaral, pesquisador do IP.rec, instituto de pesquisa em direito e tecnologia do Recife. Em Mato Grosso, a falta de transparência e controle da atuação policial eram de tal ordem que resultaram no escândalo que ficou conhecido como “grampolândia pantaneira”. Um grupo de policiais militares montou uma central clandestina de monitoramento telefônico em Cuiabá para bisbilhotar ilegalmente deputados, juízes e jornalistas. Segundo a Polícia Civil, oitenta números de telefone foram grampeados ilegalmente.

Em abril de 2022, a seis meses das eleições, a Secretaria de Segurança Pública de Mato Grosso comprou o GI-2 da Cognyte por 4,67 milhão de reais. Entre as justificativas para a compra está o “combate de fake news, através da localização de aparelhos celulares suspeitos de criar ou disseminar [notícias falsas]”. É uma justificativa exótica. Renato Sérgio de Lima, presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, comenta: “É estranho, do ponto de vista estritamente policial, usar uma ferramenta tão cara e poderosa para investigar crimes contra a honra, cujas penas são muito baixas. Esse argumento de combate a fake news, para mim, tangencia a política eleitoral.” Procurada pela piauí, a Polícia Civil mato-grossense enviou uma nota em que faz diversos comentários, mas não se manifesta sobre o uso do GI-2 contra fake news.

As explicações oficiais para o uso de equipamentos de espionagem vêm gerando desconfianças. A Secretaria da Ressocialização e Inclusão Social de Alagoas, por exemplo, abriu processo para a compra do GI-2 em outubro de 2019. A justificativa: monitorar os cerca de 5 mil detentos das oito unidades do complexo penitenciário de Maceió, considerando que boa parte deles pertence ao Primeiro Comando da Capital e ao Comando Vermelho. Os equipamentos do tipo IMSI-catcher, de fato, têm sido usados para monitorar celulares nos presídios. O diretor de inteligência do Departamento Penitenciário Nacional, Sandro Abel Sousa Barradas, informa que existem hoje dez maletas do tipo no Brasil. Todas são antigas, com mais de cinco anos de uso, e não têm o módulo que ativa interceptação de conversa.

Quando encomendou a compra do GI-2, o governo de Alagoas disse que o monitoramento só seria feito “com mandados judiciais que serão solicitados à Vara de Execuções Penais”. No entanto, três anos depois da compra do equipamento, a 16ª Vara Criminal da Capital, que cuida das execuções penais no estado, ao ser indagada pela piauí sobre o número de pedidos de mandado judicial que recebeu, informou que “não dispõe dessa informação”. O presidente do Sindicato dos Policiais Penais de Alagoas, Vitor Leite da Silva, nem sabia que o GI-2 fora comprado. “A Secretaria não nos informou sobre isso, estou sabendo agora por você”, disse. “Quem garante que há autorização judicial no uso desse equipamento? Policiais penais também podem estar sendo monitorados ilegalmente”, disse. Em n ota, a Secretaria da Ressocialização e Inclusão Social limitou-se a dizer que o equipamento não é mais utilizado, sem fornecer mais detalhes.

OInstituto Nupef, no Rio de Janeiro, mantém programas de segurança digital voltados para ajudar ativistas ambientais e de direitos humanos no Brasil a contornar as tentativas de espionagem. Os programas envolvem a criação de data centers desvinculados das nuvens de dados do Google ou da Apple, e a construção de sistemas de comunicação fora da internet. Nos últimos seis anos, o Nupef criou 35 redes desse tipo pelo país. Atualmente, a entidade estuda o desenvolvimento de ferramentas tecnológicas para detectar a presença de programas espiões individualmente em cada celular, nos moldes do que fazem organizações voltadas ao tema na América do Norte e na Europa, como o Citizen Lab, da Universidade de Toronto, Canadá. Diz Oona Castro, diretora de Desenvolvimento Institucional do Nupef: “De fato, os ambientalistas e os defensores de direitos human os carecem de uma organização de referência para atendimento individual. Mas as ameaças são muitas e nós somos uma organização pequena.”

As perspectivas não são muito animadoras. No ano passado, a Abin, depois de negar ter comprado o Pegasus, estava avaliando a compra de um equipamento do tipo IMSI-catcher. Queria adquirir o GI-2 ou o PixCell para “contramedidas de vigilância”. Ou seja: verificar, por exemplo, se uma determinada área tem escuta ambiental instalada – nada mais. É uma ferramenta comum nas atividades de um órgão de inteligência, mas, como mostram os casos relatados nesta reportagem, um IMSI-catcher pode ser altamente invasivo e tem sido usado à margem da lei. Indagada se comprou o GI-2 ou o Pix­Cell, a Abin – a mesma agência que está sendo investigada por mais de 30 mil rastreamentos ilegais – não quis informar nem se comprou essas ferramentas.

Esse conteúdo foi publicado originalmente na piauí_207 com o título “Os espiões estão aí”.

A realidade é furta-cor https://bit.ly/3Ye45TD

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