02 janeiro 2024

Israel em guerra: perspectivas

O erro estratégico de Israel
Em 7 de outubro, Israel sofreu um grande trauma com o ataque do Hamas contra populações civis e estabelecimentos militares. Uma das causas desse evento trágico é a recusa de Tel Aviv em oferecer uma resposta política à Questão Palestina. A guerra travada atualmente em Gaza, sem nenhum outro objetivo a não ser a aniquilação do Hamas, é portadora de futuros dramas
Charles Enderlin/Le Monde Diplomatique

No dia 15 de março de 2003, nevou muito em Jerusalém, e Avi Dichter, na época chefe do Shin Bet, o serviço de inteligência interna de Israel, também conhecido como Shabak, teve de fazer parte do percurso a pé para chegar à casa de Matti Steinberg, no bairro de Beit Hakerem. Ele precisava informar a Steinberg que não queria mais seus serviços. Com isso, privou-se do melhor especialista em assuntos palestinos,1 que ao longo de décadas foi sucessivamente o principal analista do Mossad, dos serviços de inteligência militar e, posteriormente, do Shin Bet. Em oposição à política do governo, esse especialista criticou a rejeição pelo primeiro-ministro Ariel Sharon da iniciativa de paz apresentada em março de 2002 na cúpula da Liga Árabe em Beirute pelo rei Abdallah al-Saud.2 Esse plano, que ainda é a posição oficial da Liga, propõe a normalização definitiva entre Tel Aviv e seus vizinhos árabes em troca de uma retirada total de Israel dos territórios árabes ocupados em junho de 1967.

Questionando também a política de assassinatos direcionados de líderes palestinos, Steinberg está especialmente convencido de que a direção do país coloca em risco a própria existência ao considerar a situação exclusivamente de uma perspectiva de segurança. De acordo com suas análises, apenas a criação de um Estado palestino independente pode permitir que Israel permaneça um Estado judeu e democrático. Agora um acadêmico renomado, Steinberg persiste em fazer ouvir sua voz ao longo das duas últimas décadas. Em 2005, ele tentou, sem sucesso, explicar aos líderes militares e políticos que o desmantelamento unilateral dos assentamentos em Gaza, decidido por Sharon, levaria a uma catástrofe estratégica. Por que tal escolha foi feita? Na época, Dov Weissglas, advogado e conselheiro próximo do primeiro-ministro , revelou ao jornal Haaretz as verdadeiras intenções do governo: “A retirada de Gaza significa o congelamento do processo político. E, ao congelar esse processo, você impede a criação de um Estado palestino e qualquer discussão sobre refugiados, fronteiras e Jerusalém” (8 out. 2004). Na sequência dessa retirada, Tel Aviv recusou o reforço da polícia da Autoridade Palestina em Gaza e proibiu, em julho de 2007, o Exército israelense de apoiar essa mesma polícia durante o golpe de força do Hamas para tomar o controle do enclave. Do ponto de vista dos líderes israelenses, militares e políticos, a escolha do status quo levava a deixar a organização islâmica administrar seu território, ao mesmo tempo que enfraquecia a Autoridade Palestina, presidida por Mahmud Abbas em Ramallah, na Cisjordânia. Ela esqu ecia, explica Steinberg, que o Hamas, movimento fundamentalista, não limitava suas ambições ao enclave e colocava no coração do território a conquistar a mesquita de Al-Aqsa, em Jerusalém.

A vingança não é uma política

Voltando a governar em 2009, Benjamin Netanyahu continuou essa estratégia de manter o Hamas no poder em Gaza, autorizando, por exemplo, o Catar a financiá-lo. Em 2019, ele explicava aos deputados do Likud que qualquer pessoa que quisesse impedir a criação de um Estado palestino deveria apoiar o fortalecimento e a transferência de fundos para o Hamas.3 Formando, em dezembro de 2022, o governo mais anexionista da história de Israel, o primeiro-ministro deu as chaves da colonização a Bezalel Smotrich, nomeando-o ministro das Finanças e ministro delegado da Defesa – e, nessa qualidade, responsável pela administração civil da Cisjordânia. Em 2017, esse colono messiânico havia publicado um plano destinado, segundo ele, a garantir a vitória de Israel. Na realidade, tratava-se de uma verdadeira declaração de guerra ao movimento palestino. O plano oferec ia aos “árabes da Judeia-Samaria”, ou seja, da Cisjordânia, a escolha de “ficar e viver como indivíduos no Estado judeu” sob a seguinte condição: “Aquele que não quer ou não pode renunciar a suas ambições nacionais receberá ajuda para emigrar para um dos muitos Estados árabes”.4

Enquanto se dedica às suas atividades acadêmicas, Steinberg acompanha de perto e com preocupação as reações palestinas a esses desenvolvimentos. Nos sites do Hamas na internet, ele observa uma explosão de discursos escatológicos. Se o xeque Ahmed Yassin (1937-2004), fundador da organização, tinha anunciado que “a entidade sionista” desapareceria em 2027, o ex-analista do Shabak nota que os teólogos do Hamas parecem decididos a antecipar a profecia. Em 25 de agosto, Salah al-Arouri, vice-presidente do Gabinete Político do Hamas e cofundador de seu ramo armado, as brigadas Izz al-Din al-Qassam, declarou num canal de televisão libanês próximo do Hezbollah: “Bezalel Smotrich quer um grande conflito que lhe permita deslocar os palestinos da Cisjordânia e dos territórios palestinos ocupados em 1948. Vejo diante de nós uma etapa iminente em que trav aremos uma batalha intensa, mas cujo resultado terá um impacto importante na situação na Palestina e na região”.5 Nessa entrevista, Al-Arouri evoca apenas a Cisjordânia, sem dizer uma palavra sobre Gaza. Essa omissão – deliberada? – pode ter contribuído para desviar a atenção de Tel Aviv do que estava sendo preparado no enclave… mas que não escapou a Steinberg.

No dia 7 de outubro, bem cedo pela manhã, Israel sofreu a maior derrota militar de sua história. Milhares de milicianos armados atravessaram a barreira de segurança construída em torno de Gaza, investiram sobre as bases militares vizinhas e as dominaram. Por ocasião da Simha Torah, a festa da Torá, o Estado-Maior das Forças Armadas as havia desguarnecido para garantir a segurança dos colonos da Cisjordânia. Depois de terem matado e feito prisioneiros dezenas de militares, homens e mulheres, os agressores penetraram em 22 localidades israelenses para massacrar moradores e raptar civis de todas as idades. Em 20 de dezembro, o último balanço desse ataque cita, do lado israelita, 859 civis, 278 militares e 44 policiais mortos, sem esquecer 255 reféns levados para Gaza (118 foram libertados durante a trégua de novembro). Cerca de mil agressores foram mortos. O Exército levaria quatro dias p ara recuperar o controle total da fronteira.

Pela primeira vez desde 1973, Tel Aviv decretou mobilização geral e chamou 360 mil reservistas. Israel passou à ofensiva, com o objetivo de destruir as capacidades militares e políticas do Hamas, bem como a libertação dos reféns detidos em Gaza. Após uma intensa campanha de bombardeios aéreos, uma vasta operação terrestre começou, apoiada pela administração norte-americana e por vários países ocidentais. Uma enorme ponte aérea abasteceu o Exército israelense com mísseis e munições dos arsenais dos Estados Unidos. Em 9 de dezembro, em Gaza, segundo o Ministério da Saúde, controlado pelo Hamas, o balanço era de mais de 17.700 palestinos mortos, entre os quais 7 mil crianças.6 Segundo a ONU, 18% das habitações estão danificadas ou destruídas. Após várias semanas de apoio ativo, o presidente norte-americano acabou por elevar o tom em 12 de dezembro: “Esses bombardeios cegos fazem Israel perder apoio internacional”, avisou Joe Biden, “e Benjamin Netanyahu deve mudar seu governo, o mais conservador da história de Israel, que reúne [o ministro da Segurança Nacional Itamar] Ben-Gvir e companhia. Eles não querem nada que os aproxime perto ou longe de uma solução de dois Estados. Querem não só vingar-se do que o Hamas fez, mas também de todos os palestinos. Não querem uma solução de dois Estados”.

Netanyahu reagiu no mesmo dia, reiterando sua recusa de um Estado palestino. Aceitar a instalação da Autoridade Palestina em Gaza está fora de questão. “Não permitirei que Israel repita o erro dos Acordos de Oslo. Não permitirei a entrada em Gaza daqueles que educam, apoiam e financiam o terrorismo… Gaza não será o Hamastão nem o Fatahstão.”

Qual seria a reação da população israelita em caso de crise com os Estados Unidos? Numa recente pesquisa, o Israel Democracy Institute fez a seguinte questão: “Deverá Israel aceitar o princípio da solução de dois Estados para continuar a receber a ajuda norte-americana?”. Apenas 35% dos judeus entrevistados responderam afirmativamente; 52% recusaram tal opção.7 Os israelenses não estão particularmente abalados pelas destruições em Gaza porque a opinião pública é inflamada”, estima a professora Tamar Hermann, que codirigiu essa enquete. “Todos os dias sabemos que os reféns foram mortos; além disso, nossos soldados morrem em combate. Em minha opinião, teria sido preferível que o Exército utilizasse meios mais sofisticados e menos destrutivos, a fim de zelar pela ética do combate de Israel. Mas duvido que isso tenha mudado a opinião internacional sobre o país.”

Por seu lado, Steinberg revela-se muito crítico da estratégia governamental. “Para além das considerações morais e jurídicas, é preciso dizer que, na ausência de uma estratégia, a vingança não pode ser uma política. Deixar as rédeas no pescoço do Exército perante a população civil de Gaza representa um perigo para Israel. Ao empurrarem seu principal inimigo para reagir de forma excessiva, as organizações terroristas procuram deslegitimar a opinião pública internacional. Isso, por sua vez, lhes dá alguma forma de legitimidade. Se Israel não se retirar de Gaza, enfrentará uma forma de guerrilha onipresente, cujo objetivo será atolá-lo numa situação idêntica à que conheceu no sul do Líbano. Isso representaria uma ameaça para as relações com o Egi to e a Jordânia, podendo mesmo colocar em questão os tratados de paz com esses países. O Hamas sairá reforçado.”

Enquanto os funerais de militares mortos em combate em Gaza ocorrem diariamente, essas considerações são pouco compartilhadas por uma opinião pública traumatizada pelos acontecimentos de 7 de outubro. Todos os sábados à noite, mais de 100 mil pessoas reúnem-se diante da esplanada do Museu de Artes de Tel Aviv, batizada de “Praça dos Sequestrados”. Manifestam apoio às famílias dos reféns que, muitas vezes à beira do desespero, exigem do governo que faça da libertação de seus familiares sua prioridade absoluta. Diante do Parlamento (Knesset), várias famílias cujos parentes foram assassinados pelo Hamas se instalaram em uma tenda e juram permanecer lá enquanto o governo de Netanyahu não se demitir. Yaacov Godo, de 74 anos, pai enlutado, tomou a iniciativa. Seu filho Tom, 52 anos, foi morto em 8 de outubro pelos agressores em sua casa no kibutz Kissoufim, protegendo a esposa e as três filhas, que foram salvas. Militante da organização Looking the Occupation in the Eye [Olhando nos olhos da ocupação], Godo participava regularmente na proteção dos pastores palestinos atacados por colonos no vale do Jordão. “Essa guerra é inútil”, afirma. “Deveria ter terminado há muito tempo. Não tem um objetivo definido. Há a terrível destruição em Gaza, com o número de civis inocentes mortos que ultrapassa a compreensão. Nossos soldados também caem em combate. Trazer de volta os reféns é, evidentemente, o objetivo supremo, mas não vejo como esse governo e aquele que está à sua frente poderiam fazer isso.”

Apoiados por numerosos israelenses, os manifestantes, entre os quais se conta também David Agmon, general da brigada da reserva, que foi o primeiro chefe de gabinete de Netanyahu, em 1996, sofrem insultos e ameaças de militantes do Likud, que os chamam de “traidores esquerdistas”. Um apoiador do primeiro-ministro até tentou incendiar uma tenda antes de ser preso pela polícia. Ataques semelhantes por parte de apoiadores de direita e de extrema direita também têm como alvo a organização de famílias de reféns. Os sionistas messiânicos veem a guerra como um sinal da iminência da redenção. O professor Yoel Ellitzour publicou, no Srugim, um site do sionismo religioso, um artigo explicando que o massacre de 7 de outubro era parte de um plano divino para punir os israelenses “que renunciaram à vastidão do país e às cidades de nossos antepassados e es colheram valores vãos, entregando-se a abominações sexuais”. Na sequência das fortes reações provocadas por esse texto, teve de retirá-lo. No entanto, nesse ambiente, a ideia de relançar a colonização em Gaza está avançando. Tomer Persico, pesquisador do Instituto Shalom Hartman, teme, para o pós-guerra, um reforço da direita nacionalista e da religiosidade. “O conflito atual levará a um processo político regional”, explica. “Israel enveredará pela via da reabilitação se aceitá-la; caso contrário, permanecerá na engrenagem infernal dos anos de Netanyahu. Isso significará isolamento e colapso econômico e social.”

*Charles Enderlin é jornalista em Jerusalém. Autor de Israël. L’agonie d’une démocratie [Israel. A agonia de uma democracia], Seuil, Paris, 2023.

1 Matti Steinberg publicou principalmente “La Nakba comme Traumatisme. Deux approches palestiniennes et leurs répercussions politiques [A Nakba como trauma. Duas abordagens palestinas e suas repercussões políticas], Le Débat, Paris, 2017; assim como In Search of Modern Palestinian Nationhood [Em busca da nação palestina moderna], Moshe Dayan Center e Tel Aviv University Press, Tel Aviv, 2016.

2 Ler Ignacio Ramonet “La paix maintenant” [A paz agora], Le Monde Diplomatique, abr. 2002.

3 Cf. Tal Scheider, “For years, Netanyahu propped up Hamas. Now it’s blown up in our faces” [Durante anos, Netanyahu apoiou o Hamas. Agora isso explodiu em nossa cara], The Times of Israel, Jerusalém, 8 out. 2023.

4 Jonathan Ofir, “Israeli rightist Smotrich lays out the vision for apartheid” [O direitista israelita Smotrich delineia a visão do apartheid], 14 set. 2017. Disponível em: https://mondoweiss.net.

5 A rede de televisão libanesa Al-Mayadeen, ligada ao Hezbollah, divulgou uma longa entrevista: “Al-Arouri: ‘Estamos prontos para uma batalha global e venceremos Israel de uma maneira sem precedentes’” (em árabe), 25 ago. 2023. Disponível em: https//palinfo.com/news/2023/08/25/847974.

6 “Death toll in Gaza from Israeli attacks rises to 17,700 – Health Ministry in Gaza” [Número de mortos em Gaza por ataques israelenses sobe para 17.700 – Ministério da Saúde de Gaza], Reuters, 9 dez. 2023.

7 Tamar Hermann e Or Anabi, “Israelis Sharply Divided on the Question of a Two-State Solution in Return for US Assistance” [Israelenses profundamente divididos sobre a questão de uma solução de dois Estados em troca da assistência dos Estados Unidos], The Israel Democracy Institute, 5 dez. 2023.

[Ilustração: João Bacelar]

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