09 janeiro 2024

Matemática nas guerras napoleônicas

O problema matemático que intrigava Napoleão e que se aplica em IA e no carreto da sua mudança

Margarita Rodríguez/BBC

 

maior general da história, como reconhecido por muitos especialistas, foi um homem de paixões intensas. O que talvez não seja tão conhecido é que uma delas era a ciência.

“Se eu não tivesse me tornado comandante-chefe e instrumento do destino de um grande povo, (…) teria me lançado no estudo das ciências exatas. Eu teria caminhado ao lado dos Galileus e dos Newtons.

E como tive êxito constante em meus grandes empreendimentos, também teria me destacado muito no trabalho científico. Teria deixado a memória de belas descobertas. Nenhuma outra glória teria tentado a minha ambição”, disse Napoleão Bonaparte, segundo o físico francês François Arago.

Ele não apenas amava a ciência, mas percebeu que os cientistas poderiam ajudá-lo em seu ambicioso projeto político.

É o que afirma no artigo Napoléon Bonaparte and Science o destacado matemático francês Étienne Ghys, pesquisador emérito do Centro Nacional Francês de Pesquisa Científica. O imperador conquistou o apoio de grandes cientistas, como o matemático Gaspard Monge, considerado o inventor da geometria descritiva e pai da geometria diferencial.

Monge acompanhou Napoleão na campanha no Egito, que “terminou com uma derrota militar, mas com notável êxito científico”, escreveu Ghys.

“Já se tinha visto alguma vez na história um exército de invasores acompanhado por matemáticos, naturalistas, arqueólogos e filólogos?”

De volta a Paris, em 1799, Napoleão deu o golpe de estado que o levaria ao poder absoluto na França.

Sob a sua proteção, que incluía incentivos financeiros, prêmios e cargos de alta hierarquia para cientistas, a ciência francesa viveu um período verdadeiramente glorioso.

A questão matemática do "transporte ótimo"

A questão matemática do "transporte ótimo" visa encontrar a maneira mais eficiente e econômica de deslocar objetos de um lugar para outro.

Sua origem remonta ao final do século XVIII, à época da Revolução Francesa.

O problema foi formulado em 1781 pelo matemático Gaspard Monge, que percebeu a aplicação no campo militar para saber qual a melhor maneira de construir fortificações.

Ele viveu num período em que a Europa estava abalada por conflitos bélicos.

Foi com a ascensão de Napoleão ao poder que Monge conseguiu se dedicar totalmente à questão que o intrigava.

Como grande estrategista, o general foi também um divulgador da ciência aplicada à guerra.

Ele precisava urgentemente de uma resposta sobre as fortificações; não queria perder tempo, recursos ou mão de obra em suas campanhas.

Então Monge, que já era um conhecido matemático e amigo de Napoleão, viu-se no momento e no lugar perfeitos para continuar a se aprofundar no problema.

Complexidade

Em termos práticos, Monge, tal como Napoleão, queria saber onde construir fortificações para minimizar custos. Mas havia mais.

“Como cientista, Monge também estava interessado na questão teórica que estava por trás: como funciona o transporte ótimo em teoria?”, diz Alessio Figalli, professor da prestigiada Escola Politécnica Federal de Zurique.

Figalli, que conquistou reconhecimentos por suas contribuições no campo da matemática, ganhou a Medalha Fields em 2018, aos 34 anos, considerado o Prêmio Nobel de matemática.

O transporte ótimo é justamente um dos conceitos em que Figalli concentrou seu trabalho.

“Monge começou a entender o problema a partir de uma perspectiva geométrica e, para isso, fez muitos desenhos”, explica.

Imaginemos que temos duas cidades, A e B, e queremos construir uma fortificação em cada.

Se o objetivo é minimizar o transporte de materiais, é lógico que retiremos o que vamos precisar para a construção em A de um local próximo a A, e de um local próximo de B para o que vamos construir em B.

Não faria muito sentido extraí-los e enviá-los de outras partes mais distantes do país sem ser necessário.

“Se você só tem duas cidades e dois locais de extração, é muito fácil ver a solução: basta enviar o material do local mais próximo que houver”, diz Figalli, mas alerta:

“Se você começar a ter mais cidades e mais locais de extração, o problema se torna muito maior e entender o que enviar e para onde pode não ser tão óbvio.”

“Talvez a quantidade de material que extraio de um local não seja suficiente para todas as fortificações que tenho que construir naquela área e terei de trazer material de um local mais distante.”

“E se você começar a pensar em números maiores, por exemplo, 10 mil cidades e 200 pontos de extração, o problema fica mais complexo. Procure saber se existe uma teoria matemática geral que você possa usar.”

Um olhar econômico

Monge realizou análises muito interessantes e avançou no problema.

Mas Figalli pede que lembremos que no século XIX não existiam matemáticos profissionais no sentido moderno: os cientistas faziam matemática e muitas outras coisas.

Além disso, foi um período em que se deu prioridade a outras teorias matemáticas.

Foi assim que o problema do transporte ótimo caiu um pouco no esquecimento: “depois de Monge, por mais de cem anos não aconteceu muita coisa”.

Foi na década de 40 do século XX que um matemático e economista soviético resgatou a questão.

“Leonid Kantorovich realmente entendeu como atacar o problema”, diz o professor.

“Ele desenvolveu uma teoria matemática robusta para estudá-lo e, a partir disso, desenvolveu uma teoria econômica muito sólida que se poderia usar para resolver problemas muito concretos. Por exemplo, como as padarias poderiam planejar a melhor forma de enviar seus pães para os diferentes estabelecimentos da cidade.”

Em 1975, Kantorovich recebeu o Prêmio Nobel de Economia, juntamente com o holandês Tjalling C. Koopmans, pelo trabalho no campo da teoria econômica normativa, que é a teoria da alocação ótima de recursos.

Existem muitos problemas que podem ser resolvidos com o conceito de transporte ótimo.

“Pense no trajeto para o trabalho, que as pessoas fazem todos os dias. Qual a maneira mais eficiente de ser feito?”, pergunta o especialista.

“Um dos motivos que torna esse problema difícil é que não se trata de um ganho pessoal, mas coletivo: não é que se queira minimizar o tempo que você gasta no deslocamento para o trabalho, o que se busca é minimizar o tempo total de deslocamento para o trabalho em todas as cidades.”

“Isso pode significar que será preciso viajar um pouco mais, mas se pensarmos no bem-estar geral da população, a solução será a melhor possível.”

Nos fluidos

Na década de 1980, o problema tomou um rumo inesperado.

O matemático francês Yann Brenier percebeu que o conceito de transporte ótimo poderia ser usado no estudo de fluidos.

“Foi mágico”, diz Figalli. “Ninguém esperava.”

“Brenier estava estudando o movimento da água, problemas relacionados à dinâmica dos fluidos, que é um campo da matemática e também da engenharia em que você tenta entender como a água é transportada, como ela se comporta em uma tubulação, em um recipiente, mas também em situações de fenômenos físicos complexos, como um furacão.”

“Não é que Brenier tenha repentinamente feito uma nova descoberta em dinâmica de fluidos, o que foi surpreendente foi que ele fez a ligação com o conceito de transporte ótimo. As pessoas perceberam que esse problema era mais rico do que parecia.”

“E os matemáticos adoram isso, fazer conexões entre problemas.”

Surgiu uma espécie de renascimento do problema e na década de 90 houve um boom. “Foi como se tivesse virado moda, ficou super cool.”

“Os matemáticos são animais sociais. Embora exista a lenda de que ficamos em nossas cavernas trabalhando sozinhos, na realidade a matemática é uma atividade muito social em que a troca de ideias é constante.”

Na moda

O início dos anos 2000 foi a época de ouro do problema, diz o professor.

Ele era um estudante muito jovem na Scuola Normale di Pisa e também se interessou por transporte ótimo. Ele finalmente foi conquistado quando estava no último ano do mestrado. No ano seguinte (em apenas um ano) obteria o doutorado.

“Esse problema é muito complexo. São tantas variáveis, possibilidades, que é preciso construir uma nova teoria. O que foi feito até agora não é suficiente para resolvê-lo e essa é a beleza: esse problema obriga a desenvolver novas matemáticas.”

Você tem uma resposta final?, pergunto.

“Na matemática nunca há uma resposta final”, responde ele. “Num problema como este há sempre coisas novas; não é que esteja sozinho, isolado, este é um problema macro.”

E me convida a pensar no sangue que circula pelo meu corpo como um fenômeno de transporte.

“Você está interessado em fortificações? Você está interessado em sangue? Dependendo do problema, existem respostas diferentes.”

É assim que entendo o que ele quer dizer quando afirma que “nunca há uma resposta final”: embora possa haver soluções para contextos específicos e necessidades concretas, não será a resposta definitiva para tudo o que o conceito de transporte ótimo pode implicar.

E suas aplicações parecem tão vastas quanto o próprio céu.

Entre nuvens

E assim, sem ir muito longe, Figalli me conta sobre as aplicações na meteorologia.

“Do ponto de vista teórico, o movimento das nuvens pode ser entendido como um problema de transporte ótimo: as nuvens são feitas de partículas de água que se movem à medida que elas o fazem.”

As técnicas que foram desenvolvidas no estudo do transporte ótimo podem ajudar a analisar a evolução das nuvens.

“Como fazer a ligação entre essas pequenas partículas de água que se movem com essas grandes nuvens? Como deduzir a pressão, a velocidade com que viajam? Como você conecta esta descrição microscópica com esta descrição macroscópica? Como você pode traçar a rota? Essa é uma questão matemática.”

E há um princípio básico: “A natureza quer ser eficiente: gastar o mínimo de energia para fazer o que tem de fazer e, por essa razão, o transporte ótimo e a natureza funcionam bem juntos”.

Mas também funciona bem em outros contextos. Pensemos em tecnologia: em vez de partículas de água, imagine pixels, e, em vez de nuvens, pense em fotos.

Nos computadores

No aprendizado de máquina, ramo da inteligência artificial, o objetivo é treinar programas de computador para executar tarefas específicas. Uma delas é o reconhecimento de imagens.

Imagine que no seu computador você tem uma coleção de fotos de animais – há cachorros, gatos, elefantes, vacas – e recebe uma nova imagem de um animal que você não sabe o que é.

“Preciso comparar imagens, como posso fazer isso? O transporte ótimo pode fazer isso por você”, diz Figalli.

“Quero transportar os pixels, ou o que compõe aquela nova foto, para outra imagem e ver quanto custa esse processo. Se for muito pouco é porque a imagem em questão é semelhante à de referência. É muito provável que a minha foto seja de um cachorro, porque é muito parecida com a que já existe de um cachorro.”

“Mas se o transporte custa muito, significa que a imagem era muito diferente da imagem de um cachorro. Portanto, deve representar algo diferente.”

“O metaprincípio é que o transporte ótimo é uma maneira muito boa de comparar imagens, objetos e, uma vez feito isso, pode ser usado para treinar uma rede de inteligência artificial.”

E voltamos ao ponto da beleza.

“Você vê?”, o professor me diz com um sorriso.

“A matemática não se importa se o que você transporta é um objeto concreto ou abstrato. Pode ser material de construção, pão, pessoas indo trabalhar, uma imagem, um pixel. É sempre um objeto a partir do qual tiramos modelos, fazemos fórmulas, vira abstrato e você faz o que quiser. Você sempre tem novas aplicações.”

Na sua vida

É assim que o problema cuja formulação remonta ao século XVIII está presente em nossas vidas.

Pense por um momento em quando você se muda, diz Matteo Bonforte, professor da Universidade Autônoma de Madrid e membro do Instituto de Ciências Matemáticas da Espanha.

“Você tem que mudar as coisas de uma casa para outra e tem uma van ou um caminhão. Como colocar os seus pertences no caminhão da melhor forma, para que custe o mínimo possível: menos viagens, menos esforço para os encarregados?”

Para Bonforte, é fundamental continuar investigando problemas como o transporte ótimo.

“Alessio Figalli é uma dessas mentes maravilhosas das quais existe uma por geração.”

“É muito importante que matemáticos da primeira fila como ele, os top-top-top, dediquem-se a esses problemas, porque eles conseguem ver coisas que ‘os mortais comuns não vêem’, criam conexões entre coisas que parecem muito diferentes, mas que, com as lentes apropriadas, no fim, observa-se que o mecanismo subjacente, o princípio básico, é o mesmo e os une.”

Ele destaca que Figalli tem conseguido resolver problemas que estavam em aberto há muitos anos, o que faz com que a teoria desenvolvida seja aplicável a “problemas da vida real”.

“É fundamental que essas grandes figuras da matemática lidem com esses problemas porque eles também dão um impulso a toda a comunidade: muitos pesquisadores ‘entram na onda’, o problema vira ‘moda’ e isso gera um avanço no conhecimento espetacular, sempre pelo motivo de sermos animais sociais.”

[Ilustração: Napoleão em 1810 (parte de um quadro de Joseph Chabord]

A paz como subproduto da guerra  https://bit.ly/3Ye45TD

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