28 janeiro 2024

Sonho digital

E se criássemos um YouTube e um Spotify públicos?

Grandes gravadoras foram engolidas por corporações. Elas controlam acervos musicais brasileiros e impõe o que ver e ouvir, a partir de lógicas do mercado. Estado precisa criar alternativa: patrimônio cultural não ser tutelado pelas Big Techs
Augusto Diniz, na CartaCapitalOutrasPalavras


 

Estudioso há mais de 20 anos das transformações da indústria da música, Leonardo De Marchi costuma dizer que a decisão das gravadoras de caminhar de mãos dadas com o streaming foi política.

“No final do século XX, teve um processo de digitalização da distribuição da música digital. Isso não foi feito pelas empresas que dominavam o mercado fonográfico, ou seja, as grandes gravadoras, mas por pequenas empresas – as startups – de tecnologia”, conta.

“Aquele período, que era de compartilhamento de arquivos, com os peer-to-per (P2P), teve um momento de abertura de outra indústria fonográfica. Desde a criação dessas empresas, do Napster para frente, teve uma longa batalha para que se encontrasse um meio termo, não necessariamente técnico, mas sobretudo político, sobre como distribuir a música digital.”

De Marchi explica que essas startups fizeram aquilo que era a única atividade ainda anacrônica e não digitalizada da indústria: a distribuição. Com isso, as empresas começaram a buscar uma solução para manter o controle do fluxo de arquivos de música, já que o P2P fazia isso sem intermediários, de forma eficiente e muito barata.

“Isso era insuportável para a indústria fonográfica e até para alguns grandes artistas, porque eles não tinham controle”, afirma. “Era difícil monetizar esse fluxo de arquivos a partir do momento em que os próprios usuários podiam escolher o que fazer.”

“O streaming vai se desenvolvendo junto aos interesses das grandes gravadoras. Tem-se uma solução política, aparentemente, para os atores daquele mercado.”

Leonardo De Marchi é professor da Escola de Comunicação da UFRJ e autor do livro A Destruição Criadora da Indústria Fonográfica: 1999-2009, publicado a partir de sua tese de doutorado. Agora, ele lança um livro atualizado sobre o tema, com o título de A Indústria Fonográfica Digital: Formação, Lógica e Tendências (editora Mauad X).

Outro aspecto tratado na nova obra envolve os sistemas automáticos de recomendação de música, que trabalham com informações captadas do ouvinte, mas também são capazes de direcionar a audiência – e isso tem muito a ver com a manipulação dos chamados algoritmos das redes sociais.

“Basicamente, são sistemas de inteligência artificial em que os algoritmos leem uma série de base de dados, os metadados dos arquivos de música e os rastros que os usuários deixam”, explica o pesquisador.

Para De Marchi, aqui está o negócio do streaming: em meio a milhões de músicas disponibilizadas, os usuários não têm condições de ouvir todas elas e precisam de ajuda permanente para encontrar aquilo que interessa.

“Eles, na verdade, cobram pelo serviço de curadoria da música feita sobretudo por uma inteligência artificial”, diz. “O problema é que o acesso que temos a esses arquivos, artistas e memória cultural de um país depende de como esses algoritmos são programados. Como ela é uma tecnologia de uma empresa privada, ela é programada de acordo com valores desse mercado”.

O estudioso vê um grande paradoxo nessa questão. O ouvinte tem a promessa dessas plataformas de uma infinidade de músicas, mas ele depende do conjunto de regras que essas empresas estabelecem para que, de fato, tenha acesso a elas – por meio, por exemplo, de playlists.

Essa construção de listas de músicas remete aos chamados jabás, quando gravadoras e produtoras pagavam (e ainda pagam) aos meios de comunicação tradicionais para executar um determinado artista.

“O jabá vinha da lógica de que o rádio e a televisão não tinham tempo para tocar todas as músicas disponíveis no mercado. Logo, as empresas pagavam para que as pessoas escutassem um determinado artista. No mundo digital, isso não deveria acontecer (devido a sua amplitude infinita). Isso é uma prova da dependência dos sistemas de recomendação musical, que não são mais vistos como uma prática ilegal.”

O pesquisador avalia que a indústria da música está umbilicalmente ligada à indústria da tecnologia da informação, com sistemas complexos e exigente em investimento e profissionalismo.

Por causa dessa mudança de processo, Leonardo De Marchi vê a necessidade de repensar a política cultural na era das plataformas digitais.

“Política cultural apenas de incentivo à produção já não basta. Você está lidando com empresas globais e virtuais”, ressalta. “Como você garante ao Estado que sua população vai ter acesso à música de seu país via plataformas?”

O estudioso afirma ser premente que a política cultural incentive startups locais para desenvolver um modelo de execução de música e defende a construção de plataformas digitais públicas, para que “elas funcionem como uma lógica de serviço público e que seus algoritmos sejam programados dentro dessa lógica, e não de uma empresa privada”.

“O grande problema que se tem hoje, com a organização do mercado de cultura a partir de plataformas digitais, é que se dá poder demais para empresas que não são brasileiras e não têm concorrência. Elas são um oligopólio que tem tendência a virar um duopólio ou um monopólio.”

De Marchi vê também a necessidade urgente de regulação do setor, principalmente com a entrada em maior escala da inteligência artificial. “Essas empresas detêm um poder muito maior do que as empresas de comunicação tradicionais ou mesmo as gravadoras, e nós estamos dando a elas um nível de produção local inimaginável”, alerta. “Elas têm sido colocadas como guardiões da nossa memória, desse acervo musical.”

Luzes na ribalta https://bit.ly/3Ye45TD

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