14 janeiro 2024

Uma crônica de Cacá Diegues

Criação de um cinema nacional
Minha geração não queria mais falar de um Brasil que conhecíamos, mas abrir o horizonte para falar de um Brasil que ninguém conhecia
Cacá Diegues/O Globo

O cinema brasileiro de qualidade nunca se impôs no próprio país, a não ser no final do século XX, durante o curto período em que os filmes eram feitos pela geração do Cinema Novo, produzidos e distribuídos pela Embrafilme, a empresa do Estado então comandada por Roberto Farias, um cineasta daquela geração.

O Cinema Novo cria uma “linguagem nova para dar expressão a um realismo crítico da situação nacional e à revelação de uma poesia até agora escondida. Essa síntese é a nova arte cinematográfica brasileira, manifestação do mesmo idealismo combativo que hoje se insurge contra a infame opressão estrangeira e contra o apoio a essa opressão dentro do país”, como escreveu Otto Maria Carpeaux na época.

É difícil dizer quando isso começou, mas podemos lembrar de filmes que se impuseram com qualidade, além de valor cultural, histórico ou político, como foi o caso de “Assalto ao trem pagador”, realizado pelo mesmo Farias anos antes de ele se tornar uma “estrela” de nosso cinema, com a participação na produção de gente como Glauber Rocha e Luiz Carlos Barreto.

Mesmo antes do “Assalto” tínhamos em nossa produção filmes como “Rio, 40 graus”, de Nelson Pereira dos Santos, ou, mais antigo ainda, o famoso “Ganga Bruta” de 1933, dirigido pelo mítico Humberto Mauro. Isso tudo era o nosso cinema nacional, representava um cinema nacional cujas características já tinham sido exploradas por outros filmes mundo afora.

Na verdade, minha geração não queria mais falar de um Brasil que nós conhecíamos através de uma cultura formal (poesia, música e audiovisual, sobretudo), mas tentar abrir o horizonte para falar de um Brasil que ninguém conhecia, iniciando um papo com o pobre do espectador, trocando ideias com ele que estava absolutamente prisioneiro de uma visão sobre nós estabelecida por filmes e realizadores que não tinham nada a ver conosco.

Em vez de falar de um país mitológico, de um povo que muito provavelmente jamais existiu, tínhamos resolvido falar de nossa decepção com tudo o que o Brasil já tinha representado para nós.

Num certo sentido, passávamos a crer mais nesse herói cotidiano do que no herói acima de todas as coisas, como eu vinha tratando, por exemplo, o Zumbi dos Palmares, modelo do heroísmo popular que eu, mesmo sem ter muita consciência disso, estava tentando demonstrar nas histórias que tinha contado até ali, nos filmes que havia feito para revelar a capacidade que nós tínhamos de sermos aqueles cavaleiros que mudavam nossa história.

Eu tinha que me contentar com a observação do que se passava e de como se comportam nossos heróis de verdade no seio dessa sociedade que existia de fato, com todos os defeitos deles no coração dessa engrenagem social que denunciava nosso fracasso como povo.

Quanto a mim, estava muito mais próximo de um debate com as favelas e com os eventuais heróis de momentos dolorosos vividos nelas, do que de heróis que se tornam heróis por nada. Era isso o que eu pretendia botar nos filmes que ia fazer a partir dali: minha contribuição ao que se passava tinha que conter uma espécie de alvorada com um sol mais poderoso, porque afinal de contas era o único que tínhamos ao alcance de nossas mãos cinematográficas.

E isso só seria possível se conseguíssemos completar o outro lado da figura bendita que havia de nos conceder esse direito. Só poderíamos inventar e assegurar esse momento do nosso cinema se fôssemos capazes de construir um novo cinema para o Brasil. Só teríamos capacidade para isso se houvesse um retorno à ideia capaz de consagrar uma economia nacional em que coubesse o cinema.

Os filmes estavam ficando cada vez melhores, era preciso construir então a economia nacional que os iria expandir. E essa economia, como hoje, não poderia existir sem uma participação decisiva do Estado.

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