A “fraternidade” do grande inquisidor
Flávio Brayner*
Em “Os irmãos Karamazov” (Dostoievsky), Ivan fala de um projeto de poema com seu irmão, Aliocha, sobre o Segundo Advento de Jesus, que deu o azar de cair na Sevilha do século XVI e é preso pelo Cardeal Grande Inquisidor, nonagenário que, na véspera mesmo desse encontro, mandara queimar um lote de 70 homens na fogueira. Reproduzirei, aqui, apenas um extrato do diálogo inventado por Ivan (sob protesto de seu irmão!):
- “És tu? És tu?
Não respondas, cala-Te. E o que poderias Tu dizer? Sei muito bem o que Tu dirias. Não tens o direito de acrescentar nada ao que já disseste outrora. Por que vieste nos perturbar? Pois vieste para isso, para perturbar. (...) Amanhã condenar-Te-ei queimar na fogueira como o pior dos hereges. (...) O Inquisidor enfim se cala, aguarda a resposta do prisioneiro. Mas o silêncio é opressor. Em silêncio Ele se aproxima e beija os lábios pálidos no nonagenário. Esta é toda a Sua resposta.
- “Vai e não volta mais...não volta... nunca mais!”.
* * *
Meu amigo, o Irmão Beneditino Marcelo Barros, foi convidado, há alguns dias, para ir a Fortaleza apresentar e discutir num seminário teológico daquela cidade, sua obra (já na terceira edição) “Não deixe cair a profecia. A herança de Dom Hélder Câmara para a humanidade de hoje”, sobre a vida, a obra e a missão espiritual e social de Dom Hélder, convite realizado no interior das comemorações na Campanha da Fraternidade 2024. Mas, ocorreu o inesperado (embora Marcelo tenha me confessado que já passara por situação semelhante no passado!): alguns grupos religiosos se opuseram à apresentação e discussão das ideias de Dom Hélder (1909-1999), sob o pretexto de trata-se de um subversivo, o velho e batido clichê do “Bispo Vermelho”, o que levou o Instituto a cancelar (!) o encontro. Marcelo tomou essa decisão como aceitável, “- Faz parte da caminhada!”, disse-me ao telefone. Mas a coisa se complicou quando soube que quem mandara cancelar o encontro fora ninguém menos que o Arcebispo de Fortaleza, Dom Gregório Paixão, sob o argumento de “evitar divisões dentro da Igreja!”. E tudo isto já no início da Campanha da...Fraternidade! Ora, ora!
Não sou religioso, não pertenço a nenhuma instituição religiosa (nem do Partido Comunista eu fui!), não tenho nenhuma obrigação de obedecer a qualquer “silêncio obsequioso” e nunca entendi a ideia de Fraternidade apenas como chamamento ao “Somos todos irmãos!”. Minhas convicções republicanas me conduzem, antes, para o tríptico revolucionário “LIBERDADE, IGUALDADE, FRATERNIDADE”, no sentido atribuído por Desmoulins e Robespierre: “L´ Egalité est donc la réciprocité de la Liberté. Quant à la Fraternité, elle est l´expression de cette réciprocité, ele est la réciprocité mise em ac t. Ce que dit la Fraternité c´est donc qu´il ne peut pas y avoir de liberte sans égalité” (“A Igualdade é pois a reciprocidade da Liberdade. Quanto à fraternidade ela é a expressão desta reciprocidade. Ela é a reciprocidade em ato. O que diz a Fraternidade é pois que não pode existir Liberdade sem Igualdade”. Assim, não acredito numa suposta “irmandade” do social: a sociedade não é uma grande família! Mas acredito que aquelas três exigências republicanas são inseparáveis e recíprocas.
O nome daquele egrégio Arcebispo. – Gregório Paixão - faz lembrar o momento fundador do Cristianismo (a “paixão”, o sofrimento do Cristo) e o Papa Gregório Magno (Papa entre 590 e 604) e que instituiu o belíssimo Canto Gregoriano. E no entanto, quando o espírito e a sensibilidade social, moral e espiritual de Hélder Câmara é chamada de volta, num “novo advento”, reaparece, como sempre um Grande Inquisidor impedindo a discussão de suas ideias. Inacreditável numa sociedade fraturada politicamente e que teve na Igreja progressista e na Teologia da Libertação essas práticas hoje ensejadas pelo Papa Francisco I, a meu ver, maior autoridade moral do mundo contemporâneo e o único chefe de Estado em quem eu ainda deposito alguma confiança e admiração, e que teve ali, repito, um sopro de renovação contra a tradição tridentina, clerical, hierárquica e estamental da Igreja institucional.
Peçamos, pois, desculpas à alma de Dom Hélder por este verdadeiro acinte à ideia de Fraternidade, mas parece que Ivan Karamazov sabia do que estava falando!
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Quando os Nazistas começaram a praticar os autos-da-fé, a queima pública de livros condenados (1934), Freud disse, com a ironia dos desesperados algo assim: - “Antes eles queimavam os autores. Agora queimam só as obras. Já é um progresso!”. Meu prezado Sigmund, o “progresso” continua: primeiro os autores, depois as obras e, agora, a proibição de lê-las e discuti-las!
Ó tempora! Ó mores!
*Professor Emérito da UFPE e Visitante da UFRPE
O mundo gira. Saiba mais https://bit.ly/3Ye45TD
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