25 fevereiro 2024

Raul Córdula opina

José Carlos Viana e a Guaianases
Raul Córdula*


Existem artistas que não se limitam à própria obra. Artistas que, apesar do excepcional talento têm uma consciência de cidadão o levam a interagir com a sociedade de forma direta, prática e atuante. José Carlos Viana foi um desses.

Teve uma carreira exemplar não apenas como artista, mas como servidor público na área da cultura. Foi fundador e presidente da Oficina Guaianases de Gravura e, como tal, foi exemplar como o foi nas outras funções que exerceu na vida pública. Sua atuação nesta área, inclusive, o levou a se pós-graduar em litogravura na USP, em 1985.

Foi presidente da Fundação Cultural Cidade do Recife nas duas gestões do prefeito Jarbas Vasconcelos e, em Olinda, Diretor do Museu de Arte Contemporânea de Pernambuco. Durante sua gestão ele implantou oficinas de desenho e pintura de onde saíram artistas de primeira linha como, por exemplo, Roberto Ploeg e Antônio Mendes, por exemplo.

Como pintor, entre outros aprimoramentos ele estudou na América do Norte, em Washington DC, na Corcoran School of Art.

Seu falecimento em 2019 comoveu a comunidade de artistas pernambucanos. Oficialmente, no âmbito de seu prestígio nas artes visuais, ele se tornou o Patrono da Oficina de Desenho do Centro Cultural Eufrásio Barbosa que o homenageia agora com esta exposição sobre o seu conjunto de gravuras editadas pela Oficina Guaianases realizadas durante vários anos em que ele esteve à sua frente.

No âmbito das artes gráficas ele se tornou um desenhista de grandes recursos e, na oportunidade em que João Câmara lhe convidou para integrar a Guaianases, com a mesma diligência se tornou lito-gravador.

No catálogo da exposição “Zoo Lógicos”, realizada em julho de 2009 no Centro Cultural Correios do Recife, o escritor Raimundo Carrero, uma das maiores expressões da literatura contemporânea de Pernambuco, coloca assim sua análise da figuração fragmentada das imagens pintadas por ele:

“Não é por acaso que de repente somos, na obra de Viana, e em nossas vidas, triturados pelas rodas de um trem em marcha dilacerando cabeças, mãos e braços, e que animais sejam destruídos, violentados, quebrados. É dessa extinção que falo: dos homens e da natureza. Do momento histórico que duvidamos de nós mesmos e que deixamos o trem passar, como no título do romance de Georges Simenon”.

As imagens analisadas por Carrero mostram o exemplar conhecedor da imagística pictórica dos artistas pernambucanos. Suas palavras são um perfeito caminho para se entender o universo da pintura de figura realizada no Recife pela geração de onde vem José Carlos Viana. Mas em sua análise Carrero também toca em um ponto crucial para a pintura atual, o dos conceitos sobre a beleza, quando diz:

“E se estamos diante da beleza, não custa lembrar que toda beleza é terrível, parafraseando Rilke: “Todo Anjo é terrível”. Porque essa é também a função da beleza, com sua carga emocional de maravilha e de dor, contraditoriamente”.

Conhecida como Figuração Pernambucana, o período entre as décadas de 1960 e 1980 caracterizou-se por uma investida na arte figurativa após os aprendizados europeus do expressionismo e cubismo, muito citados esteticamente naquele momento, mas também contando com a memória de artistas como Vicente do Rego Monteiro, Cícero Dias e Lula Cardoso Ayres, principalmente. Um artista em especial, João Câmara, pela força e técnica de sua obra, parece ter despertado nos jovens artistas seus amigos, aquela fragmentação da figura que marcou o período. Não se trata de grupo ou coletivo, são artistas em parte próximos dos cursos livres da antiga Escola de Belas Artes do Recife que tiveram orientação de Reynaldo Fonseca, Laerte Baldini, Ypiranga Filho, entre outros. Entre estes artistas está Zé Carlos Viana, ao lado de Delano, José de Moura, Ismael Caldas, Humberto Magno, Rodolfo Mesquita, Jairo Arcoverde, entre tantos. Consideramos que este recorte da pequena (grande) história de nossa arte, que abrange as décadas de 1970 e 1980, merece uma pesquisa crítica aprofundada.

Como desenhista sua obra ultrapassou os limites do suporte da pintura, é um meio de expressão autônomo e primordial. O desenho de Zé Carlos abaliza a ideia da excelência do desenho praticado em Pernambuco, não apenas os desenhistas limitados a este fazer, mas pintores e desenhistas que trabalham normalmente nos dois territórios, como  Maria Carmem, Guita Charifker, Luciano Pinheiro, Cicero Dias, Ana Lisboa, Fernando Peres, Renato Vale, Dantas Suassuna, Flávio Emanuel, Gil Vicente, Kilian Glasner, Márcio Almeida, Rinaldo Silva e Sebastião Pedrosa, por exemplo, que conciliaram a pulsão de desenhar diferenciando grafismo e pintura como obras distintas. A litogravura de Zé Carlos é um grande exemplo desse mister, pois a estampa litográfica é o melhor veículo para a multiplicação do desenho e da aquarela em razão da possibilidade de estampar o traço, o plano, a mancha e a aquarelada.

Ao apoiar a criação da Oficina Guaianases de Gravura, certamente a mais importante oficina de litogravura do Brasil entre as décadas de 1970/1980, ao lado de outros artistas como Delano, Liliane Dardot, Luciano Pinheiro, José de Moura, Tereza Costa Rego e tantos outros, ele facilitou a produção de estampas litográficas criadas por um grupo de mais cem sócios artistas que tiveram em Olinda o espaço equipado  para esta pratica fundamental nas artes plásticas.

A Oficina Guaianases preservou não apenas o equipamento fundamental e raro para esta prática, como pedras litográficas, prensas e outras ferramentas indispensáveis, mas também a técnica da produção de imagens, seus materiais específicos e as técnicas de gravação que são, sem dúvida, um patrimônio imaterial importantíssimo. Além do mais o acervo de gravuras acumulado pela Guaianases criadas por seus mais de cem artistas, hoje pertencente ao Centro de Artes da UFPE, é uma das grandes coleções de gravuras do Brasil, de excelente qualidade artística e técnica. A Guaianases preservou também a profissão dos impressores litográficos, nas pessoas dos mestres Alberto e Hélio Soares, este ainda em plena força de trabalho imprimindo e orientando alunos do departamento de Artes Visuais de Centro de Artes.

A promoção do colecionismo foi uma das funções preponderantes da Guaianases no seu período olindense por dois motivos. O primeiro foi a criação do seu Clube de Gravura, onde o público pagava uma taxa mensal e recebia quatro gravuras por ano sendo pagos também os direitos dos autores, sócios do Clube. O segundo foi a manutenção das feiras espontâneas de gravuras que aconteciam aos sábados na sua Galeria – por concessão da Prefeitura de Olinda a Guaianases funcionava no subsolo (oficina) e no salão de exposições (galeria) do Mercado da Ribeira. Estes dois movimentos de mercado não apenas remuneravam os artistas como patrocinavam a contratação dos três funcionários da casa.

Trata-se, portanto, da existência de uma cadeia produtiva que nascia na criação, pelos artistas, das obras de arte que eram gravadas e impressas pelos impressores e auxiliares nas pedras litográficas, chanceladas pela diretoria e entregues aos artistas que, por sua vez, as distribuíam no crescente mercado de gravuras existente na época, que também contribuía pra a formação de coleções, especialmente no público menos aquinhoado de dinheiro, porque a gravura é uma obra de arte mais barata, por ser uma arte múltipla – é importante citar a condição da gravura não como uma cópia, mas como um “múltiplo” que é impresso em sequência, numerado e assinado pelos artista.

Por várias razões, mas principalmente por conta do fechamento do Sítio Histórico de Olinda nos anos de 1980, que dificultou a presença dos sócios e inviabilizou as vendas de gravuras aos sábados, a Guaianases precisou fechar suas portas. A solução encontrada foi a doação dos equipamentos, pedras e acervo para o Centro de Artes da UFPE. A atuação de José Carlos Viana e com a anuência de outros proprietários de prensas e pedras, como o próprio João Câmara como fundador da Oficina, Giuseppe Baccaro e Francisco Brennand, foi exemplar para que se tenha hoje preservado este patrimônio imaterial e a mão de obra especializadíssima dos impressores e auxiliares.

Importante é dizer que a Oficina foi o re4sultado da oficina particular de João Câmara que comprou uma grande quantidade de pedras litográficas das gráficas antigas que a tinham sem utilidade depois da implementação do Off Set no Recife. João, depois da série de mais de cem litogravuras para o acervo e o livro intitulados “Cenas da Vida Brasileira, reuniu seus amigos e propôs a criação da oficina, que teve o apoio da Prefeitura de Olinda na pessoa do arquiteto e artista Antenor Vieira de Mello.

Vemos, portanto, que em Olinda tivemos movimentos e instituições da maior importância desde os anos de 1930 quando foi criado por Francisco Julião, o deputado que esteve à frete das Ligas Camponesas, o Centro Cultural Humberto de Campos, que funcionou também como ateliê e curso de desenho de seu irmão Hugo Da Paula, um dos mais importantes artistas gráficos e ilustradores brasileiros, atuando nas revistas O Cruzeiro e Cigarra;  na década de 1950, com o funcionamento do ateliê coletivo de Montez Magno, Anchises Azevedo e Adão Pinheiro, na década de 1960, com a criação da Cooperativa de Artes e Ofícios da Ribeira, embrião do Movimento da Ribeira e da Oficina 154, com o grupo Mais 10, liderado por João Câmara; com a implantação do Museu de Arte Contemporânea de Pernambuco, que fez parte da Campanha Nacional de Museus Regionais instituída pelo jornalista Assis Chateaubriand; e com o apoio do Prefeito Eufrásio Barbosa, com a criação do Atelier Coletivo de Olinda no mesmo Movimento da ribeira que culminou  a implantação da Oficina Guaianases de Gravura; e finalmente com a implantação do festival Olinda, Arte Em Toda Parte que teve 11 versões, entre outros movimentos locais que conservam essa vocação de Olinda para as artes visuais.

A criação do Centro Cultural Mercado Eufrásio Barbosa de certa forma evoca esses movimentos e nos faz pensar que todos eles poderiam ressurgir. Ressurgir não apenas como continuidade, mas como atualidade e permanência da vida artística da cidade que passa a dispor de oficinas de arte como desenho, pintura, entalhe em madeira, modelagem e escultura, cerâmica e gravura nas suas principais técnicas – litogravura, xilogravura, gravura em metal, programas de exposições antológicas, individuais e coletivas, círculos de palestras que abrangessem as mais diversas manifestações da arte brasileira, e uma importante ação de formação através de orientação técnica de nível avançado para os artesãos que formam hoje uma verdadeira população integrada à cultura popular.

Ilustração: Acrílico sobre tela, 1 x 1,80 m, 1996/ PINTURA JOSÉ CARLOS VIANA

*Artista plástico, curador e crítico de arte

Poema de Pablo Neruda com ilustração de Ramon Casas http://tinyurl.com/bdeyjn4b

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