11 fevereiro 2024

Uma crônica de Urariano Mota

Clarice Lispector e o carnaval do Recife
Esse era o carnaval do Recife que vi no tempo de menino. Já o carnaval de Clarice é uma festa do mundo que se abre para ela.
Urariano Mota*/Vermelho


 

Acompanhem estas linhas que associam o carnaval do Recife a trechos de Restos do Carnaval, um belo texto de Clarice Lispector.  

“E quando a festa já ia se aproximando, como explicar a agitação que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu”, fala Clarice.

Lembro que as crianças de subúrbio no Recife também possuíam o mesmo sentimento.

Em frente ao Cinema Império, em Água Fria, passavam, reuniam-se meninos, homens, piratas, colombinas, vedetes, palhaços, toureiros, zorros, ursos, lança-perfumes, bisnagas, perfumes, mulheres, promessas de corpos nus que não podíamos pegar. Havia um suor bom onde se colavam os confetes, umas peles abrasadas, uns sovacos mal raspados que eram em si mesmos fetiches do sexo nus, todos comprimidos, esbarrando-se num fogo que desejava a tudo queimar, arder até a alma pobre da gente. Toquem o frevo mais alto. Uma explosão de braços e pernas na dança, uma multidão revolta, uma humanidade negra, mulata, branca, revoltada, que se anunciava, e não sabíamos: atenção, menino, atenção, infância: “nós passaremos”. Toquem o frevo mais alto!

Esse era o carnaval do Recife que vi no tempo de menino. Já o carnaval de Clarice é uma festa do mundo que se abre para ela. Abre e fecha, porque na sua crônica há um carnaval do qual ela não participava, embora muito o desejasse:

“No entanto, na realidade, eu dele pouco participava. Nunca tinha ido a um baile infantil, nunca me haviam fantasiado. Em compensação deixavam-me ficar até umas 11 horas da noite à porta do pé de escada do sobrado onde morávamos, olhando ávida os outros se divertirem”.

Aqui uma pausa. Eu morei nesse sobrado. Morar, modo de dizer. Que diferença entre o vivido por mim e o narrado por ela. Eu me pergunto se já na frase de Clarice, “sobrado onde morávamos”, se não há um exagero, uma dignificação, uma elipse, que se não mente, omite. Explico. Se o sobrado inteiro era da sua família, então ela não era tão pobre quanto aparece no relato e na biografia de Benjamin Moser. O mais razoável é supor que ela e família ocupassem no sobrado apenas uns três cômodos, como chamamos no Recife à divisão de espaço cuja unidade é a medida de um quarto simples. Bem sei, de viva morada, quando morei no “sobrado da infância de Clarice Lispector”. Em 1978, o sobrado era pensão, um pardieiro de paredes úmidas e muitos quartos. Em 78 eu não sabia que ali havia sido a casa da infância de Clarice Lispector. Para mim, até hoje, ele é soturno e irrespirável. Entrar nele, lembro bem, era entrar como os condenados que depois de um dia fora voltam à prisão. O lugar era segregador e irrespirável.

Nas fotos da internet, o “sobrado da infância de Clarice Lispector” aparece pintadinho e recuperado para ser a casa da escritora. Nas imagens, perdeu seu aspecto medonho de pensão de reclusos, virou casa agradável, como pode ser visto em muitos sítios da web. Mas aqui, mais uma vez, nas fotos há um cenário pintado. Para escrever estas linhas, ontem voltei ao sobrado de número 387, na praça Maciel Pinheiro. A placa, onde seria lido algo como “aqui viveu a escritora Clarice Lispector na infância”, está escura, com letras apagadas, quase ilegíveis. Um dos mendigos que dormem na calçada, ao me ver em dificuldade para ler a inscrição no alto, gritou:

– É 387!

Na entrada do que foi a pensão e a casa de Clarice, que ficava ao lado, na Travessa do Veras,  por onde eu entrava furtivo, agora está bloqueada por espessa parede com cimento exposto. Mas voltemos à crônica de Clarice.

“No entanto, na realidade, eu dele pouco participava. Nunca tinha ido a um baile infantil, nunca me haviam fantasiado. Em compensação deixavam-me ficar até umas 11 horas da noite à porta do pé de escada do sobrado onde morávamos, olhando ávida os outros se divertirem”.

Repito o trecho para observar que o carnaval onde os outros se divertiam, quando passavam pelos olhos de Clarice, era o da multidão,  da gente possuída pelo frevo com o diabo no couro. A realidade humana que era, que foi, que é, ganha perenidade na música e na história.

Imaginem uma multidão, seis, oito, dez mil pessoas, imaginem toda essa gente comprimida em um espaço estreito. Imaginem agora que de repente toda essa gente enlouquece, e quer correr, mas não sai do lugar, porque está cercada por todos os lados. Imaginem que essa gente, cada homem, cada mulher, cada menino, todos querem ainda assim abrir espaço à sua volta, e todos querem isto a um só tempo. Imaginem essa gente estimulada, embriagada de álcool e alegria. Imaginem agora essa gente excitada por uma música que não se ouve só com os ouvidos, porque ela se ouve com os braços, as mãos, a boca, os pés. Imaginem, portanto, uma grande massa em fúria. Raiva, alegria e libertação sob ritmo. Isso é o passo, ao som de Vassourinhas em Pernambuco.

Essa era a gente antes do estouro do frevo que passava em frente à porta do sobrado onde a menina Clarice vivia e morava.

“Duas coisas preciosas eu ganhava então e economizava-as com avareza para durarem os três dias: um lança-perfume e um saco de confete. Ah, está se tornando difícil escrever. Porque sinto como ficarei de coração escuro ao constatar que, mesmo me agregando tão pouco à alegria, eu era de tal modo sedenta que um quase nada já me tornava uma menina feliz. E as máscaras? Eu tinha medo, mas era um medo vital e necessário porque vinha de encontro à minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma espécie de máscara. À porta do meu pé de escada, se um mascarado falava comigo, eu de súbito entrava no contato indispensável com o meu mundo interior, que não era feito só de duendes e príncipes encantados, mas de pessoas com o seu mistério. Até meu susto com os mascarados, pois, era essencial para mim”.

O texto é uma crônica bela, cuja beleza não se extrai do mundo externo, mas do que a escritora traduz da sua exclusão desse mundo, que gira em febre violenta nos três dias de carnaval. Na biografia Clarice, de Benjamin Moser, assim aparece a última vez em que Clarice Lispector voltou ao Recife da sua infância:

“Em 30 de maio de 1976, Clarice e Olga chegaram ao Recife… Ela se hospedou no Hotel São Domingos, na mesma praça Maciel Pinheiro, a pletzele (pracinha) onde passara a infância. A velha casa, em cuja sacada a paralisada Mania (mãe de Clarice) contemplava o mundo em seus últimos dias, e que a família tivera de abandonar por temor de que desmoronasse, seguia desafiando a gravidade. ‘O sobrado só mudou a cor’, disse Clarice. Ela se sentou nos bancos da praça e ficou ouvindo, arrebatada, o dialeto pernambucano característico dos vendedores de frutas”.

Como relacionar agora, nesse clima de Chopin, o carnaval de Clarice com a felicidade do carnaval do Recife? Se o leitor permite um recurso do gênero deus ex machina, ligo as duas pontas de Clarice a este parágrafo final:

Nestes dias, estamos todos bestas, cantarolando com aparência de idiotas, “você diz que ela é bela, ela é bela, sim, senhor. Porém poderia ser mais bela, se ela tivesse meu amor. Bela é toda a natureza, bela é tudo que é belo”. Bela é tudo que é belo, como na canção de Capiba. E Clarice Lispector é bela.

[Ilustração: Passista em 1958 no Centro do Recife. Imagem exposta no Museu da Cidade do Recife, em 2020. Foto: Mario de Carvalho]

*Jornalista, escritor

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