29 março 2024

Algoritmos pró-mercado

Um Nobel contra as Big Techs

Joseph Stiglitz denuncia os algoritmos pró-rentismo: corporações violam acordos comerciais, impondo “livre fluxo de dados” – um mercado global trilionário e livre de impostos. Regulá-las é urgente: democracia e soberania nacional estão em risco
James Görgen, no JOTA/OutrasPalavras


Nada como um Nobel falando para dar um freio de arrumação em qualquer debate. Foi isso o que Joseph Stiglitz, laureado pela academia sueca em 2001, fez ao tratar da regulação de plataformas digitais em um artigo recente[1]. Sua análise parte da ordem executiva emitida pelo presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, em relação à segurança de dados, particularmente sobre a proibição de transferir certos tipos de dados para a China e outros países – ação provocada pelo caso Bytedance (dona do TikTok).

Em um texto primoroso, e um raciocínio que rema contra a corrente global, inclusive do Sistema ONU, Stiglitz enfatiza a importância de proteger as informações pessoais sensíveis dos cidadãos norte-americanos diante das preocupações com violações de privacidade e outros danos digitais, como desinformação e discurso de ódio. Mas ele faz isso levando o debate para o campo da economia e da soberania, algo raro no momento aqui no Brasil e um debate velado nos fóruns internacionais.

A indústria de tecnologia há muito tempo argumenta que “fluxos livres de dados” são sinônimos de liberdade de expressão e de uma Internet livre, diz o economista, o que tem encontrado oposição por parte de consumidores e de alguns países preocupados com as salvaguardas digitais. Os lobistas desta indústria, como ele classifica, tentaram contornar os processos democráticos ao pressionar por disposições comerciais obscuras para limitar as ações governamentais de proteção de dados pessoais e o não estabelecimento de barreiras tarifárias no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC).

Durante o governo Donald Trump, lembra Stiglitz, os lobistas conseguiram inserir regras nos acordos comerciais que restringiriam a regulamentação governamental dos fluxos de dados, representando ameaças à privacidade, à segurança nacional e às agências reguladoras. A decisão da administração Biden de retirar o apoio a essas propostas sinaliza uma reafirmação da autoridade governamental sobre a regulação das grandes empresas de tecnologia.

Para terminar, o Nobel defende um debate democrático robusto sobre a regulação das Big Techs, livre de restrições impostas por meio de acordos comerciais na OMC. Ele também elogia a recusa da administração Biden em priorizar as regras comerciais em detrimento da implementação de políticas domésticas, destacando a importância da tomada de decisões democráticas na formulação de políticas digitais. Mais do que isso, ele sustenta que os Estados Unidos, assim como qualquer outra Nação, deve ter o direito de discutir seu futuro digital de forma soberana.

Conjuntura mundial

Modestamente, eu gostaria de acrescentar alguns elementos ao primoroso texto de Stiglitz. Acredito que eles possam ajudar a pensar o papel do Brasil neste cenário. No momento em que o mundo atravessa uma nova revolução tecnológica, proporcionada pela comoditização de semicondutores e pela universalização do acesso à Internet, os dados de cidadãos, empresas e governos passaram a ser um ativo dos mais relevantes para a geração de riqueza nas economias globais. Estima-se que o volume de dados produzidos no mundo deve passar de 33 zetabytes em 2018 para 175 zetabytes em 2025[2], ampliando para 291 zetabytes em 2027[3].

Algumas estimativas revelam que a contribuição do fluxo de dados para o PIB global já é maior que a contribuição do fluxo de bens tradicionais[4]. Outras projeções indicam que quase 30% da Datasfera Global se dará online e em tempo real até 2025. No ano que vem, previu o IDC, cada pessoa conectada no mundo (cerca de 75% da população total) terá uma relação digital com dados mais de 4.900 vezes por dia, aproximadamente uma vez a cada 18 segundos. Em um número que impressiona: estima-se que a vida útil média de um dado será de apenas 6 horas em 2027, contra 18 meses em 2018.

Resumidamente, a monetização de dados pessoais está por trás de um modelo de negócios onde as informações coletadas a todo instante são negociadas com base em uma classificação que atribui valores diferentes a diversos tipos de dados. Essas transações ocorrem constantemente em uma camada não visível para os usuários, resultando na venda de dados a cada segundo. Durante esse processo, os dados dos usuários se transformam em commodities, com seu valor financeiro sendo avaliado e transacionado. Essa prática gerou um mercado global trilionário que ainda está por ser mensurado.

No Brasil e no mundo, o que se pode determinar atualmente é o número de usuários das principais redes sociais, por onde a maior parte dos usuários passa seu tempo conectado e as que geram maior receita com dados. Quarto maior mercado de internet e de acesso móvel no mundo, o Brasil tem 70,7% de sua população conectada (181,8 milhões de pessoas) basicamente às redes sociais destas empresas-plataforma[5]. Quase a totalidade da população conectada utiliza uma ou mais de uma destas mídias. Este número não passa de 60% no restante do globo. 

Considerando-se apenas uma das fontes de receita destes conglomerados[6] – a monetização de dados pessoais –, seria possível valorar a dimensão deste mercado digital caso as empresas tivessem uma política de transparência que informasse o valor médio da venda dos dados de usuários por mês.

Este tipo de informação, prestada periodicamente às autoridades regulatórias, é muito comum, por exemplo, no setor de telecomunicações, mas é uma política ainda não disseminada no caso dos serviços digitais. Assim, estimativas como as que levam as agências que estão implementando o Digital Markets Act (DMA), aprovado no âmbito da União Europeia, a definir quais são as empresas alvo da regulação por terem controle de acesso essencial (gatekeepers) permitem apenas estimar a dimensão destes mercados a partir do número de usuários ou do faturamento agregado divulgado por elas.

Ao analisar o incipiente ambiente econômico derivado do desenvolvimento, operação e uso de sistemas de inteligência artificial (IA), mensurar a dimensão destes mercados digitais se torna tarefa ainda mais opaca e complexa. Sabe-se que para treinar seus modelos, as empresas necessitam de uma enorme quantidade das mais variadas espécies de dados, criando ferramentas de raspagem para coletar, de forma quase indiscriminada, a vasta quantidade de informações existentes em repositórios disponíveis na Internet. Se de um lado se colocam as mesmas preocupações relativas às transações financeiras envolvendo dados pessoais, aqui ainda é preciso atentar para o fato de que estas plataformas se valem também de textos, áudios, imagens e vídeos protegidos por direitos autorais e outras categorias de propriedade intelectual.

Apesar dos marcos regulatórios sobre privacidade online e proteção de dados estarem sendo atualizados em vários países tentando ordenar essas externalidades, as tentativas de regulamentação neste campo não representam obstáculos para tais transações; ao contrário, certificam a autenticidade das informações, aumentando ainda mais o valor dos dados armazenados.

Ocorre que em quase todos os casos, os usuários cedem seus dados sem conhecer o uso que será feito dos mesmos e, muito menos, que empresas lucrarão com a monetização de informações privadas, por vezes, com conteúdos sensíveis. Mais do que isso, a maior parte dos cidadãos desconhece o próprio fato de que o impulsionamento de conteúdos falsos e polêmicos tende a gerar mais engajamento nas redes, aumentando seu compartilhamento e, por consequência, seu valor de mercado. Trata-se de um círculo vicioso que acaba financiando os próprios grupos políticos e pessoas que estão por trás dos conteúdos da desinformação.

A OMC e a moratória

Entre os próprios estados-membros da OMC, o debate vem se dando de forma polarizada. Enquanto, como mostrou Stiglitz, países como os EUA defendem uma abordagem mais liberal, que priorize o livre fluxo de dados, outros sustentam uma abordagem mais restritiva, que priorize a proteção da privacidade e da segurança dos dados. Os pontos-chave das negociações têm girado em torno do acesso a mercados, onde se discute como inserir em outros países empresas que fornecem serviços digitais com a redução destas barreiras; localização de dados, marcado pelo debate sobre se os estados-membro devem ou não exigir que as empresas armazenem dados localmente e, por fim, privacidade, segurança e interoperabilidade de dados transfronteiriços.

Existem duas frentes de negociação distintas dentro do organismo relacionadas ao comércio eletrônico e à economia digital. A primeira é conhecida como “track multilateral”, estabelecida no programa de trabalho em comércio eletrônico desde 1998[7]. Sob este guarda-chuva, a questão da renovação da moratória para que não aplique barreiras tarifárias a transações eletrônicas é discutida a cada conferência ministerial da OMC. Atualmente, toda a pauta de comércio eletrônico está limitada ao debate sobre a renovação ou não da moratória, deixando de lado outras questões relevantes.

Por outro lado, há uma frente negociadora plurilateral, composta por cerca de 90 países, incluindo a União Europeia, China, EUA e Brasil, mas excluindo Índia e África do Sul. Foi neste segundo track que o governo Biden retirou o apoio a propostas mais ofensivas em defesa do livre fluxo de dados, como mencionou Stiglitz. Aqui também a moratória está sendo discutida, representando um dos principais desafios para o Brasil, pois atualmente o artigo tem uma redação maximalista, sendo um compromisso permanente e textualmente inclusivo, em contraste com o compromisso multilateral, que é ambíguo e temporário.

Além disso, questões como localização de dados, fluxo de dados, proteção de dados e código fonte estão sendo debatidas em um âmbito plurilateral chamado Iniciativa Conjunta de Serviços (JSI), lançada em 2017. A incerteza paira sobre o que acontecerá se um acordo plurilateral em comércio eletrônico for fechado este ano e encontrar objeções para ser internalizado no acordo de Marraquexe.

Essa distinção entre os dois tracks é importante, pois países como Índia e África do Sul argumentam que a JSI em comércio eletrônico está esvaziando a capacidade negociadora multilateral da OMC. Além disso, sendo um arranjo plurilateral, o Brasil não está obrigado a permanecer nele se não encontrar uma linguagem mais flexível para as disciplinas que ainda são desafiadoras para o país.

Portanto, é crucial entender essas duas abordagens distintas dentro das negociações da OMC relacionadas ao comércio eletrônico. Mais intrincado é deixar que negociações bilaterais criem situações de fato que desautorizem quaisquer acordos multilaterais. Em termos de acordos comerciais, só de 2020 pra cá, mais de dois mil regulamentos sobre dados foram lançados mundialmente[8], aumento o risco de fragmentação do debate na OMC e em outros fóruns.

Em fevereiro deste ano, em meio aos preparativos para a 13ª Conferência Ministerial da organização (MC13), realizada em Abu Dhabi, colocou-se à prova o consenso que fazia com que uma moratória sobre tarifas aduaneiras em transmissões eletrônicas viesse sendo renovada a cada dois anos desde 1998. A pressão para que a medida continuasse, e fosse até formalizada, foi sustentada por empresas do mundo todo com a justificativa que foi a moratória que possibilitou o desenvolvimento do comércio digital, evitando a imposição de tarifas onerosas e barreiras não-tarifárias.[9]

Em meio às negociações da Conferência, a International Chamber of Commerce (ICC), uma entidade privada representativa de 45 milhões de companhias de 170 países associadas, encaminhou um documento[10] aos Ministros que possui um item dedicado à questão do comércio digital. A manifestação, cujo posicionamento também ecoa no Brasil, fazia uma defesa mais do que veemente sobre o dever de os países garantirem o livre fluxo de serviços e bens digitais com uma frase impactante: “É hora de uma proibição permanente de tarifas aduaneiras sobre transmissões eletrônicas”.

O texto era bastante enfático ao incluir a localização e o fluxo de dados nos segmentos que não deveriam sofrer quaisquer tipos de barreiras. E foi além: “Também é imperativo que as disposições se apliquem a todos os setores, incluindo serviços financeiros. Regras comuns para garantir acesso aberto e não discriminatório aos mercados digitais e digitalmente habilitados são a chave para um acordo de comércio eletrônico futuro bem-sucedido…”.

Obviamente, a posição sustentada pela ICC é defendida também por EUA e China, dois dos países que possuem as maiores empresas de serviços digitais do mundo, incluindo comércio digital e conteúdo audiovisual e de música. Posição que, como relata Stiglitz, foi estremecida nos últimos meses no caso do governo Biden no âmbito plurilateral. De outro lado, países como Indonésia, África do Sul e Índia defendem o direito à cobrança de tarifas para este fluxo de transmissões eletrônicas. Como esperado, e com quatro propostas na mesa[11], a MC13 terminou renovando a moratória[12] no dia 1º de março, o que manterá o desequilíbrio competitivo entre países em desenvolvimento e as grandes potências digitais por mais dois anos no caso dos bens e serviços do comércio digital.

A nova commodity

O impacto negativo deste modelo e de sua não regulação, como lembra Stiglitz, é conhecido e pode ser sentido diariamente no ecossistema de integridade da informação, com efeitos nocivos na veracidade e qualidade do conteúdo gerado nas redes e na própria corrosão do tecido social como tratado na nota conceitual do Digital Economy Working Group do G-20. Derivados da forma de exploração econômica deste modelo de negócios, estão os impactos negativos nas liberdades de expressão e de imprensa com efeitos deletérios sobre o sistema democrático mundial.

Depois de mais de 20 anos, essa realidade começou a ser abordada por iniciativas diversas, que vão desde o G20 até cúpulas da Unesco e do Global Digital Compact GDC), da ONU. Ocorre que mesmo esforços da União Europeia com o Digital Markets Act (DMA) ou o Data Act se propõem a coibir o avanço destas empresas no ambiente doméstico, abstendo-se de atacar a principal questão, que o Nobel nos ajuda a refletir. Sem garantir que os Países tenham direitos a tratar suas economias digitais da forma que melhor lhes aprouver, continuarão imperando a tese e as regras de acordos comerciais, que asseguram, enquanto perdurar a moratória para não aplicação de barreiras tarifárias sobre o comércio digital na OMC, o livre fluxo de dados.

Fluxo que, na verdade, é praticamente uma via de mão-única. Cabe destacar que o protagonismo do Sul Global nesta nova economia baseada em dados é quase inexistente. Assim como na agricultura ou no extrativismo mineral, os chamados países em desenvolvimento estão se tornando meros exportadores destas “commodities” para importá-las, depois de serem tratadas, classificadas e empacotadas por empresas estrangeiras, sob a forma de soluções digitais.

É o caso principalmente de poucas redes sociais e plataformas de serviços de busca que operam na maioria destas nações. Elas são ao mesmo tempo coletoras, distribuidoras e revendedoras desta informação, operando como uma fazenda agrícola ou uma companhia de petróleo de séculos passados. Mas ao contrário destes conglomerados, que exploravam recursos naturais como o solo e a água, e por isso podiam ser submetidos a regulações estatais a partir de contratos de concessão ou outros mecanismos de controle público, os oligopólios atuais acessam recursos privados produzidos pelos seres humanos e as empresas com frouxas amarras regulatórias.

Tentando mediar esta relação, no último dia 22 de março o Escritório Nacional de Informações da Internet da China, que estabelece regulamentações para promover e padronizar o fluxo transfronteiriço de dados, aprovou uma resolução[13] que demonstra como o tema não está pacificado no mundo. Depois de seis meses de debate no governo, a decisão chinesa definiu regras como:

  1. Identificação e declaração de dados importantes serão obrigatórias.
  2. Certas atividades que envolvem a coleta e geração de dados para o exterior estarão isentas de avaliação de segurança de exportação de dados, desde que não incluam informações pessoais ou dados relevantes.
  3. Se os dados coletados e processados no exterior não incluírem informações pessoais ou dados relevantes durante a transferência para o país, não é necessário realizar avaliação de segurança de exportação de dados.
  4. Certas condições isentam a necessidade de avaliação de segurança de exportação de dados, como transações comerciais transfronteiriças e situações de emergência para proteger a vida e a segurança das pessoas.
  5. As zonas-piloto de livre comércio podem criar listas negativas de dados que precisam ser incluídos na avaliação de segurança de exportação de dados, e certas atividades fora dessas listas estão isentas da avaliação.
  6. Regras específicas são estabelecidas para operadores de infraestrutura de informações críticas e outros processadores de dados, dependendo da quantidade de dados pessoais que eles exportam.
  7. A resolução ainda inclui: a validade dos resultados da avaliação de segurança de exportação de dados, obrigações dos processadores de dados ao fornecer informações pessoais para o exterior, medidas de segurança de dados e supervisão governamental.

Caminhos possíveis

Tentando avançar na solução para a atual situação, uma proposta que começa a ganhar visibilidade no mundo, e que ainda se fala pouco por aqui, é dar maior transparência para este mercado, empoderando os usuários para que se envolvam ativamente nas operações relacionadas aos seus dados pessoais, inclusive podendo obter ganhos financeiros e conhecimento para evitar o mau uso das informações geradas por eles próprios a cada interação digital. E regulamentar os sistemas de IA para que as empresas passem a remunerar os produtores de obras artísticas e outros conteúdos de caráter autoral, como notícias jornalísticas por exemplo.

Indo por este caminho de empoderar os cidadãos sobre o uso que será feito dos seus dados, permitindo o consentimento informado caso a caso e até tentando viabilizar que cada pessoa seja remunerada por isso, foi desenvolvido o Solid (Social Linked Data)[14], uma iniciativa idealizada no MIT por Tim Berns-Lee, criador da World Wide Web em 1989.

A ideia é re-descentralizar a Internet, possibilitando que os usuários retomem o controle de seus dados, armazenando-os em “pods” (repositórios pessoais de dados) passíveis de serem acessados por diferentes aplicativos mediante consentimento esclarecido. Dessa forma, os usuários podem controlar quem tem acesso e definir como os dados serão utilizados. O Solid já vem sendo usado em uma abrangente inciativa de política pública na região de Flandres, na Bélgica, processo acompanhado de perto pelo Centro de Políticas e Regulação de Comunicações (CCOM), da Universidade de Brasília (UnB), em contato com pesquisadores da Universidade de Ghent.

Outro modelo que vem se afirmando é o de data spaces. Trata-se de infraestrutura de armazenamento que viabiliza a integração de dados para além das fronteiras setoriais, organizacionais e geográficas. Esses espaços desempenham um papel crucial na estrutura da economia digital global emergente, onde processos, produtos e serviços são impulsionados por dados inovadores. Eles se configuram como ecossistemas federados nos quais diversos parceiros confiáveis adotam padrões e regulamentos rigorosos para o armazenamento e compartilhamento de dados.

Ao contrário de uma abordagem centralizada, os dados nestes “espaços” são distribuídos em suas fontes originais e compartilhados apenas quando necessário, garantindo assim um controle autodeterminado sobre o uso dos dados. Este modelo implica que organizações e indivíduos detêm a autoridade para conceder acesso e direitos de uso aos dados que produzem. A União Europeia avançou muito neste sentido e o Brasil começa a discutir o tema entre empresas que se utilizam de Internet das Coisas com a criação do primeiro hub nacional para a implementação de data spaces.

Algoritmos rentistas

Em 2020, o pesquisador Ricardo Cappra, em um texto para MIT Technology Review[15], já alertava para o risco representado pela falta de políticas públicas na economia de dados e apontava caminhos: 

As empresas que antes eram avaliadas exclusivamente pelo seu potencial de faturamento passaram a ter seu valor definido pela quantidade e qualidade dos dados que armazenam, especialmente sobre consumidores e usuários. O efeito big data modificou a forma como o valor dos negócios é determinado, informações deixaram de ser registros esquecidos nos bancos de dados das empresas e estão sendo usados como moeda de troca em transações financeiras, isso ocorre também na captação de capital através de fundos de investimento por exemplo. Se você olhar para a lista das empresas mais valiosas do mundo, vai logo perceber que várias delas possuem como ativo principal essa moeda dados pessoais. Um movimento silencioso que finalmente chega até os geradores desses dados. A regulamentação desse mercado vai despertar o interesse da sociedade nesses dados, afinal compreender essa din& acirc;mica e administrar seus próprios dados poderão se tornar fonte de renda adicional. (Cappra, 2020)

Na mesma linha, artigo recente dos pesquisadores Mariana Mazzucato e Ilan Strauss[16] advoga que este modelo de negócios baseado em algoritmos e dados pessoais que garantem o engajamento permanente – através do fenômeno da rolagem infinita – dos usuários nas plataformas digitais tem gerado inúmeras externalidades negativas e precisa ser revisto.

Para eles, as grandes empresas de tecnologia empregam algoritmos projetados para maximizar o engajamento dos usuários como forma de aumentar o valor para os acionistas, muitas vezes priorizando isso em detrimento de objetivos comerciais de longo prazo e do bem-estar social. Isso resulta em práticas que incentivam os usuários a permanecerem conectados às plataformas por períodos prolongados, frequentemente por meio da exposição a conteúdo nocivo e viciante.

Diante disso, sustentam os autores, seria fundamental estabelecer novas regras e estruturas de governança para proteger o público, incluindo a exigência de transparência nos relatórios anuais das empresas sobre os objetivos dos algoritmos e sua forma de monetizar seus negócios a partir dos dados, pessoais ou não, de seus usuários. Como alternativas, Mazzucato e Strauss propõem medidas como a portabilidade e interoperabilidade de dados entre serviços digitais, reformas na governança corporativa e uma maior influência e controle dos usuários sobre os algoritmos.

Além disso, os autores destacam a importância da ciência de dados para avaliar os efeitos a longo prazo das decisões algorítmicas e defendem a implementação, por exemplo, de uma IA pública para avaliar a qualidade dos resultados dos algoritmos. Por fim, concluem que é fundamental evitar que os algoritmos sejam subordinados ao desejo de ganhos imediatos dos acionistas, e enfatizam que criar um ambiente digital que recompense a inovação e puna a extração rentista de valor é o principal desafio econômico do nosso tempo.

Mais do que isso, do ponto-de-vista econômico, medidas como estas visam também assegurar mercados digitais de mais fácil acesso para atores de países interessados na construção de ecossistemas descentralizados. Ao se propor estabelecer um mercado comum de dados na região, por exemplo, a União Europeia vem conduzindo a implementação do Data Act[17] que tem entre seus objetivos:

  • Facilitar o compartilhamento de dados entre empresas e demais setores, impulsionando a inovação e a competitividade;
  • Empoderar os cidadãos sobre seus dados garantindo o controle sobre seus dados pessoais, aumentando a confiança e a transparência;
  • Estabelecer regras claras para o uso de dados, protegendo a concorrência e a inovação.

O movimento do bloco europeu reconheceu o valor dos dados como um ativo crucial para a economia e se propõe a assegurar a confiança dos cidadãos e das empresas no uso de tais informações facilitando o compartilhamento e a interoperabilidade entre diferentes sistemas e plataformas a fim de evitar o favorecimento de tecnologias específicas e garantir a liberdade de escolha.[18] Mais do que isso, propõe-se a garantir a soberania dos países da região frente ao uso dos diferentes tipos de dados.

O papel do Brasil

Por aqui, existem algumas iniciativas públicas e privadas que caminham no sentido de se criar um ecossistema nacional para o desenvolvimento de uma economia baseada em dados. Ainda dispersos, os projetos dialogam com os movimentos mundiais em torno do tema. Sem ser exaustivo, podemos listar algumas existentes e suas oportunidades:

  • O Banco Central está conduzindo estudos para criar sua proposta de um sistema de monetização de dados pessoais vinculado ao projeto de Open Banking, que permita que os clientes autorizem o compartilhamento de seus dados financeiros entre diferentes instituições.[19]
  • A Associação Brasileira de Internet das Coisas (Abinc), em parceria com a International Data Spaces Association (IDSA), está lançando um hub para apoiar a criação de espaços de dados para indústrias brasileiras.
  • A DrumWave[20], fundada por um brasileiro e com sede nos Estados Unidos, se propõe a ser uma empresa que presta serviços aos cidadãos e a empresas no sentido de proteger os ativos digitais dos usuários da Internet.
  • O deputado Arlindo Chinaglia apresentou o PLP 234/2023, que visa constituir a Lei Geral de Empoderamento de Dados, instituindo o Ecossistema Brasileiro de Monetização de Dados.
  • Em paralelo a isso, pelo menos duas proposições no Congresso Nacional deveriam incorporar políticas de dados por um viés econômico e dialogar com este PLP. Trata-se dos PLs 2338/23, que disciplina o desenvolvimento e uso da IA no Brasil, e o 2768/22, que se propõe a ser o DMA tupiniquim estabelecendo regras para as plataformas digitais com uma proposta de regulação ex-ante. Infelizmente, ambos projetos tramitam separadamente, um no Senado Federal e outro na Câmara dos Deputados, e sequer seus relatores sentaram-se para tratar do tema, muito menos discuti-lo à luz do PLP 234/23. Some-se a isso o PL 2630/20, que estabelece a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, outro sem uma ponte com os três primeiros, e constata-se que estamos perdendo a oportunidade preciosa de ordenar o mercado de dados no País. Seja por desconhecimento ou por falta de coor denação política.

Diante deste contexto e conjuntura, parece fundamental enfrentar esse tema de uma forma sistêmica e global no âmbito do G-20, da OMC e em outros fóruns e organismos do sistema multilateral internacional. É preciso que os Países do Sul Global não sejam relegados a atuar como meros coadjuvantes da geração de riqueza advinda de uma economia baseada em dados e de sua apropriação por economias de outras regiões. E isso não pode ser feito de forma estanque, separando de um lado a economia e, de outro, os esforços para manter o bem-estar social e a democracia. É fundamental a criação de medidas objetivas e alinhadas para negociar medidas internacionais que incidam sobre este fenômeno. Curiosamente, propostas de resolução e posicionamentos globais no sistema ONU sobre IA e plataformas sequer tocam nas questões econômicas globais das política s de dados. Todas se resumem a afirmações necessárias, mas não suficientes, sobre ética, proteção de direitos dos cidadãos e liberdade de expressão.

No caso do Brasil, as ações devem ter como metas a proteção de direitos e dos valores democráticos, a promoção da inovação, o aumento da competitividade das empresas brasileiras e a geração de oportunidades de crescimento sustentável para todos os setores da sociedade. Para isso, é essencial que o governo trabalhe em parceria com o setor privado e entidades da sociedade civil organizada a fim de desenvolver políticas públicas que garantam a proteção dos dados dos cidadãos, a segurança cibernética, a transparência no uso das informações, a interoperabilidade e um mercado de economia digital que consiga retirar valor dessa massa de dados produzida diariamente antes que ela continue indo parar em algum data center estrangeiro.

Além disso, é preciso investir em infraestrutura digital, capacitação de profissionais e incentivos fiscais para estimular a inovação e o empreendedorismo no país. Dessa forma, o Brasil poderá se posicionar estrategicamente como um líder nos mercados digitais globais e garantir o desenvolvimento sustentável e inclusivo para todos.

Trabalhar por uma agenda robusta e um plano de medidas concretas para estabelecer um mercado digital de dados ajudará o Brasil a avançar na criação de um ecossistema de economia digital nacional e soberano. Em todos os espaços possíveis, torna-se necessário desnudar o que está em jogo e afirmar que regular o modelo de negócios das plataformas digitais e dos sistemas de IA não é apenas uma forma de ordenar economicamente o fluxo internacional dos ativos digitais, representados por dados pessoais, corporativos e públicos. É, acima de tudo, criar barreiras para evitar que os modelos vigentes sejam usados para ampliar o impacto negativo da monetização de dados sobre a produção e a livre circulação de informações, bens e serviços em escala mundial como forma de preservar as soberanias nacionais e o próprio sistema democrático internacional.

James Görgen é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental e coordenador de Mercados Digitais no Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC)


Referências

[1] Disponível em: https://www.project-syndicate.org/commentary/big-tech-how-it-blocks-democratic-processes-to-serve-itself-by-joseph-e-stiglitz-2024-03?barrier=accesspay

[2] Disponível em: https://www.forbes.com/sites/tomcoughlin/2018/11/27/175-zettabytes-by-2025/?sh=6b8925a85459

[3] Disponível em: https://www.idc.com/getdoc.jsp?containerId=US50554523

[4] Disponível em: https://www.mckinsey.com/capabilities/mckinsey-digital/our-insights/digital-globalization-the-new-era-of-global-flows

[5] No caso brasileiro, a maior parte destes internautas utilizam principalmente três serviços digitais do grupo Meta. O desempenho da companhia é resultado também da prática de zero rating pelas operadoras de telecomunicações, que permitiam a continuidade do uso gratuito da rede móvel para acesso a estes três serviços quando o pacote contratado tivesse sua franquia de dados consumida. Pesquisas mostram que este é o caso de quase a totalidade dos usuários de telefonia móvel, cujas franquias se encerram já nos primeiros dias de cada mês.

[6] O faturamento total inclui as seguintes fontes: Publicidade: A publicidade é uma das principais fontes de receita para plataformas como Facebook, Instagram, Twitter e YouTube. Essas plataformas vendem espaço publicitário com base no número de usuários e no engajamento com o conteúdo.

Dados de Usuários: Algumas redes sociais também monetizam os dados dos usuários, vendendo informações demográficas e comportamentais para empresas de marketing e anunciantes.

Assinaturas Premium: Oferecer recursos premium pagos para os usuários é outra fonte de receita. Por exemplo, o LinkedIn tem uma versão premium para profissionais.

Comércio Eletrônico: Plataformas como Instagram e Pinterest permitem que os usuários comprem produtos diretamente por meio de suas postagens.

Parcerias e Licenciamento: Algumas redes sociais compartilham receitas de publicidade ou licenciam conteúdo em parceria com empresas de mídia e criadores.

[7]Disponível em: https://docs.wto.org/dol2fe/Pages/SS/directdoc.aspx?filename=q:/WT/L/274.pdf&Open=True

[8] Disponível em: https://digitalpolicyalert.org/report/fragmentation-risk-in-g20-data-governance-regulation

[9] Detalhes da queda-de-braço na OMC sobre a moratória podem ser conhecidos aqui: https://www.diplomacy.edu/blog/13th-wto-ministerial-conference-what-is-at-stake-for-digital-trade/ e https://www.japantimes.co.jp/business/2024/02/22/companies/streaming-movie-abroad-taxes/

[10] Disponível em: https://www.wto.org/english/news_e/news24_e/bus_28feb24_e.pdf

[11] Eram elas:

  1. Proposta coordenada pela Suíça e pelo Canadá (WT/GC/W/909.Rev3), que busca capturar o progresso alcançado no Programa de Trabalho desde a MC12 e propõe a continuação do trabalho sob o Programa. Também pede uma extensão da moratória sobre o comércio eletrônico até a MC14.
  2. Proposta da África do Sul (WT/GC/W/911), que propõe passos práticos a serem seguidos sob o Programa de Trabalho, como o estabelecimento de um fundo que poderia fornecer apoio direcionado a economias em desenvolvimento, incluindo os membros menos desenvolvidos, para enfrentar a divisão digital. A proposta também pede o fim da moratória sobre o comércio eletrônico e a revitalização do Programa de Trabalho com foco em questões de desenvolvimento.
  3. Proposta apresentada por Samoa em nome do Grupo África, Caribe e Pacífico (WT/GC/W/916), que observa os esforços para revitalizar o Programa de Trabalho de 1998. Instrui os membros a aumentarem ainda mais o engajamento sob o Programa, com um foco contínuo na dimensão do desenvolvimento. Também propõe estender a moratória até a MC14 e realizar mais discussões sobre o escopo, definição e impacto da moratória.
  4. Proposta da Índia (WT/GC/W/922) que não faz referência à moratória e se concentra na continuação do Programa de Trabalho e na apresentação periódica de relatórios sobre ele ao Conselho Geral e às reuniões ministeriais.

[12] Disponível em: https://www.wto.org/english/thewto_e/minist_e/mc13_e/briefing_notes_e/ecommerce_e.htm#:~:text=Members%20also%20agreed%20to%20continue,All%20MC13%20briefing%20notes

[13] Disponível em: https://www.cac.gov.cn/2024-03/22/c_1712776611775634.htm

[14] Disponível em: https://solid.mit.edu/

[15] Disponível em https://mittechreview.com.br/o-mercado-dos-dados-pessoais/

[16] Disponível em: https://ladiaria.com.uy/economia/articulo/2024/3/el-algoritmo-y-sus-descontentos/

[17] Para mais informações, ver a proposta do Data Act: https://digital-strategy.ec.europa.eu/en/policies/data-act

[18] Entre os princípios do Data Act estão:

– Livre circulação de dados: Remover barreiras ao compartilhamento de dados dentro da UE.

– Acessibilidade justa e aberta aos dados: Garantir que todos tenham acesso aos dados de forma justa e não discriminatória.

– Interoperabilidade: Garantir que os dados possam ser facilmente compartilhados e utilizados entre diferentes sistemas.

– Reutilização: Incentivar a reutilização de dados para fins inovadores e de pesquisa.

– Responsabilidade: Assegurar que as empresas sejam responsáveis pelo uso ético e legal dos dados.

Segurança: Proteger os dados contra acessos não autorizados, uso indevido e violações.

– Propriedade e governança de dados: Definir regras claras sobre a propriedade e a governança de dados.

Ética e proteção de dados: Garantir que os dados sejam usados de forma ética e em conformidade com a legislação de proteção de dados.

[19] Saiba mais em https://www.poder360.com.br/economia/campos-neto-diz-que-cliente-podera-monetizar-dados-financeiros/

[20] Disponível em https://drumwave.com/

A mãe, o menino e eu https://tinyurl.com/wh92e7zc

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