26 março 2024

Cláudio Carraly opina

O fenômeno da “Narcomilícia Evangélica e dos Traficantes de Deus”
Cláudio Carraly*



O Brasil enfrenta desafios complexos relacionados ao crime organizado, com destaque para o Rio de Janeiro, onde a presença desses grupos é particularmente marcante, a emergência da narcomilícia evangélica e dos traficantes de Deus representa uma evolução sinistra nesse cenário. Ao combinar elementos do tráfico de drogas, historicamente operando à margem da lei, com grupos paramilitares e influências nas redes religiosas, esses grupos se tornam uma força ainda mais abominável e insidiosa, ressalte-se que lamentavelmente esse caldo de intolerância e criminalidade vem aos poucos chegando ao restante do país.

Essa fusão de poderes cria um ambiente onde a violência e a coação são legitimadas por justificativas religiosas, minando não apenas a segurança física, mas também a ordem democrática, as comunidades afetadas muitas vezes se encontram em um estado de vulnerabilidade, sujeitas à arbitrariedade do controle que impõem suas próprias leis e punições. Além das implicações criminais, a existência desses dois grupos levanta preocupações sérias sobre intolerância religiosa e violência.

 ataques aos terreiros de candomblé são exemplos vívidos desse fenômeno. Infelizmente, tornou-se cada vez mais comum traficantes, membros de milícias e associados desses grupos criminosos perpetrarem atos de coerção e destruição desses locais de culto das religiões de matriz africana. Essas ações não apenas violam os direitos humanos fundamentais, mas também minam a rica diversidade cultural e religiosa do Brasil.

Esses episódios de intolerância religiosa não só causam danos materiais e emocionais às vítimas, mas também minam a coesão social e a confiança nas instituições, quando grupos criminosos são capazes de impor sua visão religiosa por meio da força, as liberdades de culto e de expressão ficam comprometidas, criando um ambiente de medo e silenciamento que enfraquece os pilares fundamentais da democracia e seus valores.

O narcopentecostalismo, termo que descreve a mistura de crenças neopentecostais com o narcotráfico, tem ganhado destaque no Brasil, essa fusão entre atividades criminosas e segmentos religiosos levantam questões éticas, sociais e de segurança pública. No "Complexo de Israel" nas favelas do Rio, traficantes utilizam simbologia e referências bíblicas como parte de sua identidade e operações criminosas, esses grupos não apenas se declaram evangélicos, mas também parecem ter uma vida religiosa ativa, o que inclui a participação em cultos e ativo proselitismo religioso.

Essa fenomenologia representa uma síntese perversa entre espiritualidade e criminalidade, onde a religião é cooptada para legitimar atividades ilícitas e controlar as massas, a exploração da fé e da devoção das pessoas para fins criminosos não só mina a integridade das instituições religiosas, mas também perpétua um ciclo de violência e opressão que esgarça os laços sociais e ameaça a estabilidade das comunidades sob a égide desses grupos que afrontam o poder estatal. 

O tráfico ligado aos cultos pentecostais e neopentecostais, recebeu a alcunha de "traficantes de Deus" e representam um desafio adicional para as autoridades e a sociedade civil, esses indivíduos se aproveitam da fé das pessoas para recrutar seguidores, expandir suas operações criminosas e exercer controle sobre territórios e fortalecer sua força local, essa operação não apenas corrompe as instituições religiosas, mas também mina os esforços para promover a paz, e a justiça social.

A narcomilícia evangélica simboliza uma nova faceta do crime organizado, na qual o tráfico de drogas comandado por milícias e grupo paramilitares, se mescla à religião, originando uma estrutura de poder mais complexa e insidiosa, este fenômeno é evidenciado pela fusão de grupos criminosos, que têm conexões com o aparato de segurança do Estado e são compostos, em sua maioria, por policiais e ex-policiais. Estes grupos atuam em conjunto com lideranças religiosas, que utilizam sua influência espiritual para legitimar atividades ilícitas e exercer controle sobre comunidades inteiras, tal como no exemplo anterior, o uso da fé como instrumento de manipulação e dominação.

Os fatores que impulsionam esses fenômenos são diversos, incluindo a busca por legitimidade e influência nas comunidades. A religião serve como um instrumento para justificar ações, estabelecer um código de conduta dentro do grupo e ganhar a confiança e o apoio dos residentes, especialmente daqueles que são membros das igrejas envolvidas. Adicionalmente, a conversão religiosa é frequentemente utilizada pelo crime organizado como uma maneira de minimizar a percepção negativa do tráfico de drogas perante a comunidade, apresentando-o como algo secundário em comparação com a conexão mais profunda com o transcendental, que é Deus.

A exploração da fé e da espiritualidade para obter vantagens políticas e econômicas cria um ambiente fértil para a corrupção e o abuso de poder, o uso da religião como um mecanismo de controle social não apenas consolida desigualdades econômicas e sociais, mas também compromete as instituições republicanas, corroendo a confiança do público nas autoridades e no estado democrático de direito, esses fatos têm implicações profundas em várias esferas, jurídica, política, econômica além da social. 

Juridicamente, essas questões podem exigir uma reavaliação das estratégias judicantes ao combate do crime organizado, considerando a complexidade adicional introduzida pela dimensão religiosa, esse envolvimento levanta questões delicadas sobre liberdade religiosa e a separação entre Estado e igreja, equilibrar o combate ao crime com o respeito aos direitos individuais e à diversidade religiosa é um desafio complexo que as autoridades enfrentam atualmente no Brasil.

Politicamente, o fenômeno dos traficantes de Deus e da narcomilícia evangélica ressalta a importância do envolvimento da sociedade civil na promoção da transparência, da prestação de contas e do estado de direito. É fundamental capacitar os cidadãos para monitorar e responsabilizar seus líderes religiosos e políticos, garantindo que estejam agindo no melhor interesse da comunidade, não se permitindo instrumentalizar pelo poder paralelo da criminalidade, afastando profilaticamente a política da religião.

Economicamente, o combate ao crime organizado e à corrupção é crucial para promover o desenvolvimento sustentável e reduzir as desigualdades sociais, os recursos desviados para atividades criminosas poderiam ser redirecionados para investimentos em educação, saúde e infraestrutura, beneficiando a sociedade na totalidade. Socialmente, a construção de uma cultura de paz e respeito pelos direitos humanos é essencial para combater a violência e a intolerância em todas suas nuances. Isso requer um esforço conjunto das autoridades, da sociedade civil e das instituições religiosas para promover o diálogo inter-religioso, a educação para o respeito às diversidades no geral e a religiosa especificamente.

Em suma, a abordagem para lidar com criminosos que se apresentam sob um verniz evangélico requer uma visão abrangente que enfrente as causas subjacentes de natureza econômica, política, social e cultural. Isso exige um compromisso coletivo com a promoção da justiça e do desenvolvimento sustentável, visando construir uma sociedade mais inclusiva, equitativa e pacífica para as futuras gerações, a luta contra esses fenômenos transcende a mera aplicação da lei, ela implica na construção de uma sociedade que valorize a diversidade, a inclusão e o respeito por todas as crenças religiosas, é imperativo que o Brasil, como nação, acolha, respeite e proteja todas as religiões e seus praticantes, e esta premissa deve estar gravada na consciência de cada indivíduo e de toda a sociedade.

*Advogado, ex-secretário executivo de Direitos Humanos de Pernambuco
Cotidianos sinais de vida https://bit.ly/3Ye45TD

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