Borboleta e avestruz*
Luciano Siqueira
Ambas amedrontadas aos primeiros sinais da decolagem. A do assento da janela, menos. A do meio, ao meu lado, pupilas dilatadas, voz trêmula:
- Morro de medo quando o avião faz esse barulho para levantar voo!
- Ah, querida, também tinha medo assim, hoje menos. Faço terapia...
- Ajuda?
- Muito. A minha terapeuta é que me fez descobrir que o meu pavor tinha tudo a ver com a borboleta preta.
- Borboleta!?
- Sim. Quando eu era menina, lá no meu Bodocó, minha mãe dizia que borboleta preta era sinal de morte. Meu medo de avião vem daí.
- Então seu medo continua?
- Só um tiquinho assim. Agora estou me acostumando. Até me sinto como uma bela borbota colorida, uma verdadeira mariposa olhando pela janela a imensidão do mundo entre nuvens e o azul do céu.
- Pois eu queria ser um avestruz.
- !?
- Pra enfiar a cabeça debaixo do assento e seguir assim até São Paulo, sem ver nada, nem escutar esse barulho do motor.
Foi aí que entrei na conversa, metido a veterano dos ares:
- Tenham medo não, se houver algum desastre a gente nem sente. Em 10 segundos de despressurização se perde a consciência. Se morrer, nem fica sabendo...
Desastrosa intervenção, reconheço agora. Falar em desastre, morte e perda dos sentidos para as duas amedrontadas passageiras foi que nem botar lenha seca em incêndio.
As duas quase que abraçadas me olharam com severa reprovação. Incontinenti a que se acha borboleta passou a entoar (desentoada) uma melosa canção de Roberto Carlos.
A que sonha em ser avestruz a acompanhou, emitindo uma sonoridade nervosa.
Eu que não sei cantar, sequer pude participar do coro para limpar a minha barra.
Salvou-me a troca da canção por uma boa conversa sobre poesia. A que se sente borboleta é poeta de alto coturno, a que anseia ser avestruz gosta de poesia... E como também sou consumidor de menestréis, pude me entrosar facilmente.
Daí seguimos a viagem com relativa tranquilidade, na medida em que outros assuntos vieram à baila e até penso que as amedrontadas esqueceram minhas palavras iniciais aterrorizantes.
Voo ameno, sem turbulências.
Conversa agradável.
E assim chegamos ao nosso destino, sãos e salvos.
E eu pude anotar no meu diário, pela primeira vez em tantos anos de viagens aéreas, que um dia tive o prazer de me fazer acompanhar num voo da Avianca Recife-São Paulo por uma borboleta e um avestruz.
Aliás, bons palpites para quem joga no bicho.
[*Publicada no portal Vermelho e reproduzida aqui no blog em 10 de março de 2016]
A realidade é furta-cor https://bit.ly/3Ye45TD
Estou aqui, no aeroporto de Brasília, que você tanto conhece, me esgueirando pra rir, sem gargalhar. Preciso de um copo d'água. Seu texto é delicioso.
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