30 abril 2024

Minha opinião

O médico e o folião

Luciano Siqueira

 

Médico sério, competente, respeitado e admirado pela dedicação aos pobres, José Ivo Cavalcanti – nosso tio Zezé – marcou tanto a cidade de Natal nos idos de quarenta e cinquenta do século passado que virou nome de rua e seu túmulo foi muito visitado, por mais de uma década, por pessoas simples que ali depositavam ex-votos por conta de curas alcançadas, supostamente milagrosas a ele atribuídas depois do morto.

Em meu olhar de criança, o tinha como um ser superior, capaz de em poucos minutos de conversa tirar a vovó Neném da pior crise de não-sei-o-quê que a deixava prostrada, rezando alto e desesperada por causa de temida morte iminente.

Certamente muitas vezes usou placebos para acalmar a paciente.

Até que um dia, num sábado de carnaval, eis que ele surge, para surpresa geral, porta-estandarte de uma improvisada troça intitulada “A cobra que mordeu o belo”.

O estandarte, uma cobra coral posta no formol, contida num frasco de vidro transparente, dependurado numa vara. Tinha até hino, uma espécie de marchinha que falava qualquer coisa de um belo homem despertado para os prazeres da vida por uma dama encantadora e traiçoeira.

Era a cobra que havia mordido o belo.

Passada a fuzarca, tio Zezé retornou ao seu terno de linho e à seriedade quase solene com que atendia seus pacientes, inclusive os sobrinhos menores aos quais aplicava como terapia um jejum severo de sete dias, quebrado apenas por uma canja de carne de sol, torradas e chá.

Aos nossos olhos de criança, uma frustração. Bem que gostaríamos de manter a imagem do folião, muito mais simpática do que a do médico.

Poema de Paulo Freire com ilustração de Pablo Picasso https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/04/palavra-de-poeta-paulo-freire.html

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