29 maio 2024

Controle digital da privaticidade

Algoritmização: controle social na era da economia digital
Para além de um capitalismo de pan-óptico, essa nova formatação social e econômica é um arranjo de dependência, que se torna um eficiente arcabouço de controle
Herbert Salles/Le Monde Diplomatique

 

Estamos vivendo um novo modo de capitalismo, em que indivíduos são monitorados de forma perene através de dispositivos digitais, enquanto vetorizam dados, abastecendo bancos de informações e esvaziando a própria privacidade. A forma nuclear dessa dinâmica é o uso de algoritmos por diferentes empresas, que, por meio deles, captam, armazenam e cruzam dados de diversos grupos de pessoas. A partir dessa mecânica, empresas, como as Big Techs, podem ofertar produtos e serviços e gerar mais lucros para si e para seus investidores. Além de um capitalismo de pan-óptico (ou de vigilância), essa nova formatação social e econômica é um arranjo de dependência, que se torna um eficiente arcabouço de controle. 

É necessário, primeiramente, compreender que no capitalismo digital algoritmizado não há espaço para o poder disciplinar, pois é a compreensão de liberdade que fará o sujeito otimizar esse novo arranjo econômico. O efeito deve ser proativo, não coercivo ou repressor: o indivíduo deve se sentir motivado a entregar tudo de si para manter ativa a economia algoritmizada, sem que note a figura do repressor. É na invisibilidade que o algoritmo se constrói como um agente político, um senhor que explora seu servo sem que ele se rebele, pois o explorado está motivado a permanecer nessa condição.  

Basta observar o trabalho algoritmizado e a ideia de que é possível ser chefe de si mesmo, um empreendedor digital dono dos seus próprios meios de produção. É preciso construir tal sentimento para que o motorista de aplicativo enxergue que seu trabalho é auto gerenciado, sem que ele tenha a noção de que um algoritmo o monitora e é responsável pelos seus ganhos. Eis um pilar de dependência financeira presente na atual fase do capitalismo, a algoritmização permite um tipo de trabalho sem vínculos, instável e facilmente controlável por sistemas digitais.  

O trabalho digital está transformado para explorar conceitos mais subjetivos, utilizando a emoção como uma ferramenta política em que os trabalhadores são inseridos em ambientes “gamificados” através de um profundo sistema de recompensas para que se envolvam de tal forma, que sejam capazes de explorar a si mesmos em um ambiente lúdico e estruturado.  

A construção de espaços virtuais pode ser encarada como um arranjo extracorpóreo, em que o sujeito tem parte de sua vida, cotidiano e trabalho sob efeito direto dos algoritmos. É possível ir além, ao capitanear emoções, a algoritmização pode criar impactos diretos em afetos e nas relações sociais.  

Byung-Chul Han reflete sobre a transição do sujeito como “animal racional” para uma “criatura sensível”. Na estrutura de poder por disciplina, a anulação da emoção é algo que deve ser buscado. No atual modelo, por outro lado, o controle deve demandar uma relação emocional, pois é nela em que é possível habitar a dependência necessária para que o status quo seja mantido.  

Assim, no atual modelo de capitalismo algoritmizado, há espaço para amor, para o ódio e para o desejo – para que o sujeito possa se sentir dependente. Na algoritmização, o tempo online é uma métrica relevante e lucrativa e reflete o grau de imersão que uma pessoa está disposta a estar.  

Nota-se, então, uma mudança no paradigma capitalista de controle social, visto que enquanto o poder através da disciplina tende a deixar o sujeito inerte, subjugado e apartado, o capitalismo algoritmizado promove o oposto, fazendo com que se movimente, se sinta livre e pertencente ao sistema. Enquanto o poder disciplinar é negativo, violento e regrado, a nova formatação capitalista deve ser positiva e libertária.  

Há uma ruptura quando o indivíduo que crê ser livre vai explorar a si mesmo para que não perca aquilo que alimenta a sua dependência. A riqueza (trabalho) e o gozo (consumo) serão possíveis a partir das motivações pessoais e, principalmente, da capacidade individual de conquista.  

Como exemplo, o trabalho algoritmizado se apresenta tão atraente, pois não há mais a figura física de alguém que controla o trabalhador. Aliás, é como se esse indivíduo não se enxergasse como trabalhador e sim, quase um sócio da empresa à qual está vinculado. Há um modelo, então, de aprisionamento a partir da emoção, em que não é necessário o cárcere, basta construir uma dependência econômica, social e psicológica.   

O capitalismo algoritmizado explora o conceito de liberdade na perspectiva de uma constante experiência a partir do consumo, em que o sujeito deixa de ser entendido como cidadão e passa a ser consumidor. A política é um bem adquirido em uma prateleira e escolhe-se o político como se fosse um produto. Nesse sentido, o direito é visto como reflexo daquilo que foi comprado. É construção de dependência a partir daquilo que se pode adquirir e não do que se tem por direito. Ou, ainda, é possível tornar mercadológico aquilo que é direito, subvertendo conceitos democráticos. 
 

Um exemplo claro é como a “liberdade de expressão” foi sequestrada pela extrema direta. Percebe-se a destruição das bases éticas e de direito para a imposição de uma lógica neoliberal em que tudo pode ser dito. Constrói-se aqui uma outra estrutura de dependência, em que as redes sociais são espaços públicos para a construção de narrativas violentas capazes de engajar usuários. As redes sociais se tornam espaços de consumo de conteúdos e de interação sem regulação externa, contando apenas com a autorregulação dos usuários.  

O fetiche neoliberal sempre foi a autorregulação do mercado e isso vem sendo pavimentado no capitalismo algoritmizado, pois abarca a ideia de que o indivíduo é parte dominante e não dominada; livre e não reprimido; principalmente, parte fundamental para a engrenagem econômica e de geração de riqueza.  

Logo, percebe-se que a Economia Digital, sob a perspectiva neoliberal como base ideológica, é capaz de controlar massas com arranjos algorítmicos. No atual modelo capitalista, a narrativa de liberdade pressupõe o sujeito ativo e não mais passivo, há uma subversão do entendimento do papel individual, enquanto se vê como senhor e não servo de si. Basta ver que no cerne do trabalho algoritmizado está o conceito de “chefe de si mesmo” e não “empregado de si mesmo”, onde esconde a realidade: servo do algoritmo.  

A ausência de regulação serve como fermento para que a algoritmização cresça no forno capitalista. Diante da tal expansão, se torna ingênuo pensar se máquinas irão substituir humanos quando a realidade é que os algoritmos são controladores sociais. Torna-se mais lucrativo explorar o trabalho a partir do viés da algoritmização que criar uma legião de máquinas para realizar qualquer tipo de labor.  

É preciso ver, portanto, o capitalismo algoritmizado como uma estrutura de vigilância e controle que resulta em um arcabouço de gerenciamento coletivo a partir das premissas emocionais e econômicas. É necessário compreender o atual cenário do capitalismo para que sejam encontradas alternativas que protejam a sociedade, garantindo direitos essenciais.  

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