14 setembro 2024

Cláudio Carraly opina

Reordenamento dos velhos centros das cidades: revitalização, qualificação e sustentabilidade econômica
Cláudio Carraly* 

Os centros das capitais brasileiras, em grande parte edificados durante as décadas de 1960 e 1970, refletem hoje um paradoxo urbano, projetados para atender às necessidades de uma época marcada pelo crescimento acelerado e pela modernização das cidades, esses espaços, que já foram o epicentro do comércio, da vida cultural e do cotidiano urbano, hoje enfrentam desafios complexos como degradação física, obsolescência da infraestrutura, esvaziamento populacional e migração de empresas para outras áreas da cidade. Para transformar os centros das cidades brasileiras em áreas revitalizadas, qualificadas e economicamente sustentáveis, é necessário adotar uma abordagem inovadora e integrada que vá além das soluções tradicionais. 

Os centros das capitais brasileiras passaram por um processo de expansão e verticalização no passado, em um período de intensas transformações urbanas marcadas pelo desenvolvimentismo e pela industrialização. Porém, essas áreas, que inicialmente concentravam serviços, comércios e atividades culturais, começaram a enfrentar um processo de degradação e esvaziamento a partir das décadas seguintes, a expansão das cidades em direção às periferias, o aumento do uso de automóveis particulares, a construção de shoppings, mudanças de hábitos de consumo afastaram a população dos antigos centros.

Hoje, muitos centros urbanos encontram-se subutilizados, com imóveis vazios ou em mau estado de conservação, ruas desertas após o horário comercial e uma sensação generalizada de insegurança, a queda do valor imobiliário, a falta de infraestrutura adequada, estacionamentos, e a ausência de uma estratégia clara de revitalização têm contribuído para o agravamento desse cenário. Para reverter essa situação, é necessário um novo olhar que valorize a diversidade, a inclusão e a sustentabilidade, adaptando as soluções às características específicas de cada capital brasileira.

Uma das chaves para revitalizar os centros urbanos é promover a densificação inteligente e o uso misto dos espaços. Isso significa criar cidades mais compactas, onde diferentes usos — como habitação, comércio, lazer e serviços — coexistam de forma harmônica. Essa abordagem torna os centros mais vibrantes e reduz a necessidade de longos deslocamentos, promovendo uma vida urbana mais integrada e sustentável. Os centros das capitais brasileiras possuem uma grande quantidade de edifícios antigos e subutilizados, muitos dos quais poderiam ser transformados para novas funções.

Incentivos fiscais, financiamentos facilitados e parcerias público-privadas são fundamentais para viabilizar a reforma desses imóveis, convertendo-os em habitações acessíveis, escritórios modernos, escritórios compartilhados ou espaços culturais. Para revitalizar os centros, é essencial atrair uma população diversificada que viva, trabalhe e consuma nesses espaços, políticas de incentivo à moradia no centro, com foco em habitação de interesse social e preços diferenciados, podem atrair jovens, estudantes, profissionais e famílias, fomentando uma nova dinâmica urbana, programas como o "Minha Casa, Minha Vida Urbano” poderiam ser adaptados para focar na requalificação de edifícios centrais, associando subsídios à ocupação sustentável dos centros, e financiamento focado em imóveis usados.

Os espaços públicos são o coração de qualquer cidade vibrante, praças, parques, ruas e calçadas desempenham um papel central na vida urbana, oferecendo locais para encontros, lazer e atividades comunitárias. Investir na requalificação de praças, parques e áreas públicas é essencial para reavivar os centros, isso inclui não apenas melhorias estéticas, como paisagismo e mobiliário urbano, mas também a implementação de infraestrutura que promova a acessibilidade universal, como rampas, calçadas amplas, áreas de convivência e espaços para atividades culturais e esportivas. O exemplo da Praça Mauá, no Rio de Janeiro, que foi revitalizada como parte do projeto Porto Maravilha, demonstra o potencial de transformação de áreas centrais degradadas em espaços vibrantes e atrativos.

A sensação de insegurança é um dos maiores obstáculos para a revitalização dos centros das cidades brasileiras, melhorar a iluminação pública, aumentar o policiamento comunitário e adotar tecnologias de vigilância inteligente, como câmeras conectadas a centros de monitoramento, são medidas que podem tornar esses espaços mais seguros e acolhedores. Além disso, a presença constante de pessoas nas ruas, seja por meio de eventos culturais ou pela promoção da economia noturna, contribui significativamente para a segurança pública, a população tomando de volta a rua como sua, demonstrando seu pertencimento é sempre a melhor forma de segurança, mas isso não é possível sem ação inicial e direta do poder publico.

A ativação dos espaços públicos por meio de programas culturais e eventos é sempre uma estratégia eficaz para atrair pessoas de volta aos centros urbanos, um roteiro conhecido de festivais, feiras, exposições de arte, shows e outros eventos podem transformar praças e ruas em pontos de encontro vibrantes, estimulando a economia local e criando um senso de comunidade. Cidades como São Paulo têm mostrado como eventos como a Virada Cultural podem atrair milhares de pessoas para o centro, revitalizando o comércio e os serviços locais, mas além de grande festivais pontuais, atividades permanentes durante todo ano também são necessárias.

A mobilidade é um dos fatores críticos para a reordenação dos centros urbanos. Facilitar o acesso e a circulação dentro desses espaços é fundamental para atrair moradores, trabalhadores e visitantes. Investir em sistemas de transporte público eficientes, integrados e sustentáveis é essencial para revitalizar os velhos centros. Modelos como a qualificação e expansão das linhas do dos metrôs, BRT (Bus Rapid Transit), VLT (Veículo Leve sobre Trilhos) e corredores exclusivos para ônibus são exemplos de como o transporte público pode ser modernizado para atender às necessidades contemporâneas, o sistema de transporte integrado tem sido um modelo bem utilizado no mundo, demonstrando como um bom planejamento pode reduzir o uso de automóveis particulares e melhorar a qualidade de vida urbana.

Priorizar o pedestre e o ciclista é uma estratégia que vai ao encontro das tendências globais de mobilidade urbana sustentável, isso inclui a ampliação de calçadas, a criação de ciclovias seguras e a redução do espaço destinado aos automóveis particulares. A cidade de Bogotá, na Colômbia, é um exemplo inspirador de como a priorização da mobilidade ativa pode transformar a dinâmica urbana e promover uma convivência mais saudável e sustentável e como esse tipo de modal de transporte e mais eficiente, limpo e democrático do que muitos gestores imaginam.

A economia criativa e a inovação tecnológica são motores poderosos para a revitalização urbana, ao atrair empresas de tecnologia, startups, espaços de coworking e hubs de inovação para os centros urbanos, é possível criar um ambiente dinâmico que estimula o empreendedorismo e a criatividade. Transformar edifícios subutilizados em espaços para inovação e empreendedorismo pode atrair jovens talentos e empresas criativas para o centro.

Cidades como Lisboa, em Portugal, têm apostado na criação de hubs de inovação que reúnem startups, incubadoras e aceleradoras, revitalizando áreas antes degradadas e impulsionando a economia local, no Brasil, iniciativas como o Porto Digital em Recife demonstram como é possível transformar áreas centrais em polos de inovação e tecnologia, no caso do Recife o Porto Digital pelo seu potencial, poderia se espraiar e tomar pra si parte significativa do centro da cidade, hoje subutilizado.

A cultura é um dos maiores ativos dos centros urbanos, preservar e valorizar o patrimônio histórico, transformando edifícios antigos em museus, centros culturais, galerias de arte e espaços de convivência, é uma forma de conectar o passado ao presente e atrair tanto moradores quanto turistas, os centros históricos podem ser exemplos de como a valorização do patrimônio pode impulsionar o turismo e a economia local. Também a promoção de uma economia noturna vibrante, com bares, restaurantes, teatros e outros espaços de lazer abertos até tarde e fundamental para dar vida aos centros, a economia noturna não apenas diversifica as opções de lazer, mas também aumenta a sensação de segurança, já que a presença de pessoas nas ruas contribui para esse fenômeno.

A sustentabilidade deve estar no cerne de qualquer estratégia de reordenação urbana, a adoção de práticas sustentáveis não só melhora a qualidade de vida nos centros urbanos, mas também os torna mais resilientes às mudanças climáticas e aos desafios ambientais. Integrar infraestrutura verde, como telhados verdes, jardins verticais, parques lineares e sistemas de drenagem sustentável, é uma forma de mitigar os efeitos das ilhas de calor, melhorar a qualidade do ar e aumentar a resiliência urbana. A revitalização do rio Cheonggyecheon em Seul, Coreia do Sul, é um exemplo marcante de como a integração de soluções baseadas na natureza pode transformar áreas urbanas densas em espaços mais habitáveis. O projeto não só restaurou o rio que havia sido coberto por uma rodovia, mas também criou um parque linear que se tornou um dos principais pontos de encontro da cidade, e uma atração turística, melhorando o microclima e proporcionando um espaço verde no coração da capital.

Promover a eficiência energética nos edifícios dos centros urbanos é essencial para reduzir o impacto ambiental e melhorar a qualidade de vida, isso pode incluir o uso de tecnologias como painéis solares, sistemas de reaproveitamento de água, isolamento térmico e iluminação eficiente. Incentivar a certificação ambiental de edifícios, como o selo LEED (Leadership in Energy and Environmental Design), é uma maneira de garantir que novas construções e reformas sigam padrões elevados de sustentabilidade, políticas rigorosas de eficiência energética têm levado à construção de edifícios que não apenas consomem menos energia, mas também oferecem ambientes internos mais saudáveis para os ocupantes, abrir linhas de créditos para que edifícios antigos se modernizem nesse sentido é fundamental.

A gestão adequada de resíduos e a promoção da reciclagem são componentes críticos para a sustentabilidade dos centros urbanos. Implementar sistemas eficientes de coleta seletiva, reciclagem e compostagem, além de incentivar a redução do uso de materiais descartáveis, pode ajudar a reduzir a pressão sobre aterros sanitários e promover uma economia circular, iniciativas como as “eco-ilhas”, que são pontos de coleta automatizados para diferentes tipos de resíduos, mostram como a tecnologia pode facilitar a gestão ambiental em áreas densamente povoadas.

Para que as estratégias de reordenação dos centros urbanos sejam bem-sucedidas, é fundamental envolver a comunidade local em todas as etapas do processo, a participação cidadã garante que as intervenções urbanas atendam às necessidades reais dos moradores e fortaleçam o senso de pertencimento e responsabilidade coletiva sobre o espaço urbano. Utilizar plataformas online para consultas públicas, enquetes e reuniões virtuais pode ampliar o alcance do engajamento comunitário, permitindo que mais pessoas contribuam com ideias e feedbacks, facilitando o acesso para que a sociedade participe ativamente na tomada de decisões sobre projetos urbanos, assegurando que as vozes da comunidade sejam ouvidas e realmente consideradas.

Programas de educação ambiental que envolvam escolas, comunidades e organizações locais são essenciais para construir uma consciência coletiva sobre a importância da sustentabilidade e do cuidado com o espaço urbano. Promover projetos colaborativos, como hortas urbanas, feiras comunitárias, pode reforçar os laços sociais e transformar espaços subutilizados em áreas vivas e produtivas ajudando na transformação urbana, levando a resultados positivos, como a redução da violência e o aumento da coesão social e sentimento de pertencimento.

A revitalização dos centros das capitais brasileiras é um desafio complexo, mas repleto de oportunidades, ao adotar uma abordagem integrada que valorize a densificação inteligente, a mobilidade sustentável, a economia criativa, a sustentabilidade ambiental e o engajamento comunitário, é possível transformar esses espaços em áreas vibrantes, inclusivas e economicamente sustentáveis, devolvendo a vida aos nossos antigos centros. Os exemplos mostram que é possível a revitalização com sucesso, desde que haja um planejamento estratégico e uma articulação eficaz entre governo, setor privado e sociedade civil.

Com uma visão clara e ações coordenadas, os centros urbanos podem se tornar novamente o coração pulsante das cidades, promovendo qualidade de vida, inclusão social e prosperidade econômica para todos os seus habitantes. Essa transformação não é apenas uma questão de infraestrutura, mas de repensar a cidade como um espaço para todos, onde a diversidade e a sustentabilidade são as bases para um futuro mais justo e resiliente, com olhar direcionado para as pessoas. Ao final, o futuro dos centros das capitais brasileiras depende de um compromisso coletivo com a inovação e a sustentabilidade, construindo cidades que não apenas atendam às necessidades apenas de hoje, mas que estejam preparadas para os desafios do amanhã.

*Avogado, ex-secretário executivo de Direitos Humanos de Pernambuco

 Veja o debate em vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=PKNV8ccMvbA  

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