06 setembro 2024

George Câmara opina

A cidade não é uma mercadoria
O desafio da gestão pública integrada nas regiões metropolitanas contrapõe a cidade como espaço de convivência ao seu uso mercadológico, afetando a qualidade de vida urbana.
George Câmara*/Vermelho  

 

As cidades maiores, sobretudo as situadas em regiões metropolitanas, se deparam atualmente com a tarefa desafiadora de cuidar da gestão pública no seu próprio território urbano, bem como enfrentar os problemas comuns a mais de um município, cujas soluções demandam ações integradas.

O fenômeno da conurbação, ou mesmo do transbordamento, provoca o crescimento da mancha urbana de um município e extrapola o seu limite físico-territorial, adentrando a área de um ou mais municípios limítrofes.

Pode-se ter ainda um outro fenômeno, o chamado movimento pendular, com o deslocamento de pessoas em diferentes horários de ida e volta no percurso casa-trabalho-casa, quando, por exemplo, alguém trabalha em um município e mora em outro próximo, tornando este uma cidade-dormitório, como se fosse um bairro da cidade vizinha.

Nesses casos, tal como as pessoas que moram nos bairros mais afastados da cidade núcleo da região metropolitana, as que moram nas periferias de municípios vizinhos também demandam os serviços públicos básicos, como o acesso universalizado a educação, saúde, assistência social, trabalho, habitação, saneamento básico, segurança pública, transporte coletivo, cultura, esporte e lazer, entre outros direitos.

Ao poder público, tanto no território urbano como no metropolitano, cabe garantir o bem-estar de todas as pessoas, conforme prevê, respectivamente, o Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001) e o Estatuto da Metrópole (Lei 13.089/2015). Cuidar das funções públicas de interesse comum, de forma integrada entre o Estado e os Municípios envolvidos.

Para se enfrentar problemas comuns, respeitada a jurisdição de cada município, não há outro caminho senão a cooperação. A própria Constituição Federal estabelece em seu artigo 25, inciso III, a competência estadual para instituir e organizar a gestão compartilhada – a governança interfederativa – em regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões.

Entretanto, ao invés de trilhar o desafiador caminho da cooperação, tendo como foco o atendimento aos direitos básicos da população, alguns  gestores preferem adotar uma outra escolha: a competição entre cidades e a sua transformação em uma mercadoria a ser vendida.

Mas como vender uma mercadoria, num mercado extremamente competitivo, onde outras cidades também “estão à venda”? Daí, o chamado marketing urbano voltado para o processo de planejamento e gestão de cidades, como se estas fossem empresas.

Assim, talvez se consiga entender o comportamento de muitos prefeitos que, ao invés de dirigentes políticos, mais parecem vendedores ambulantes, numa verdadeira corrida para “vender a cidade”, como se esta fosse um produto à venda, e não o espaço público da vida em sociedade.

O Professor Carlos Vainer(*) oferece um contraponto à visão da cidade como mercadoria, comparando os dois modelos de cidade:

“De um lado, a city, impondo-se à cidade como espaço e objeto e sujeito de negócios; de outro lado, a polis, afirmando a possibilidade de uma cidade como espaço do encontro e confronto entre cidadãos” (VAINER,1999. p.101).

Até mesmo os seus mais convictos vendedores – tais prefeitos e seus neoliberais planejadores urbanos – reconhecem que a cidade é a mais complexa de todas as mercadorias. Mas, afinal de contas, o que se vende quando se põe à venda uma cidade? Depende do comprador que se tem em vista. Entre outros, o capital imobiliário especulativo.

Não por coincidência estão eclodindo, assustadoramente, iniciativas de mudanças nos Planos Diretores de Desenvolvimento Urbano em muitas cidades brasileiras, eliminando a legislação protetora de uso e ocupação do solo urbano, tornando as cidades um território “sem lei”, como forma de atrair o capital especulativo e predador, com sérios prejuízos às pessoas, à qualidade de vida e ao meio ambiente urbano.

A cidade não é uma mercadoria, a serviço do capital. É o espaço da convivência, interação e exercício de direitos das pessoas.

(*) VAINER, Carlos B. Pátria, empresa e mercadoria: notas sobre a estratégia discursiva do planejamento estratégico urbano. VII Encontro Nacional da ANPPUR, Porto Alegre, 1999, p. 75-101.

*Ex-vereador pelo PCdoB em Natal-RN 

Leia também: https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/08/drama-habitacional.html

Nenhum comentário:

Postar um comentário