Faria Lima e as
contas públicas: entre a sinfonia e o cancan
Aí, esse país de patos ouve a trombeta de Josué: se a relação dívida/PIB
aumentou, tem que aumentar os juros
Luis Nassif/Jornal GGN
Como seria a Sinfonia das Contas Públicas pela Faria Lima, se o autor fosse Dmitri Shostakovich e suas sinfonias pessimistas e pesadas?
Acompanhe a parte do bom conteúdo da reportagem “Economistas falam
em ‘matemágica fiscal’, ‘gosto amargo’ e ‘baixa sensibilidade’ do governo em
revisão das contas públicas”, do Valor Econômico, com o
subtítulo “Atualização para baixo no contingenciamento surpreendeu
negativamente e pode piorar reação do mercado”
Primeiro movimento
– Allegro (rápido
Chama-se Allegro porque é apenas rápido. Mas, para a Faria
Lima, é aberta com tragédia, como uma 8a Sinfonia de Beethoven, porque é o que
vai ficar na memória dos leitores que lêem jornais com a profundidade
com que leem gibis: absorvem a manchete, e olhe lá.
Aliás, se submetidos ao teste das palavras (fala uma palavra, diga o que
lhe vem à cabeça) o resultado geral seria o mesmo, na alegria e na tristeza, na
chuva ou no sol.
Palavra– Militares.
Resposta – Mal-estar
Palavra– mercado
Resposta – Desconforto;
Prossegue o texto:
Argumento fatalista 1 – “Economistas falam em
‘matemágica fiscal’, ‘gosto amargo’ e ‘baixa sensibilidade’ do governo em
revisão das contas públicas”
Argumento fatalista 2 – A revisão bimestral do
orçamento para 2024 apresentada ontem pelo governo surpreendeu negativamente
economistas e deve pressionar os ativos domésticos no início da próxima
semana.
Fim do primeiro ato, detalhando o rabo e os chifres do diabo:
“Houve avanços na estimação de algumas receitas e certas despesas e o
cumprimento da meta de resultado primário deste ano ainda está “ao alcance da
mão”.
Mas…
“mas o governo perdeu a oportunidade de realizar um bloqueio maior de
despesas que tornasse a projeção de gastos mais crível, o que deixou uma
impressão de piora entre analistas e deve exigir um bloqueio mais forte no
último relatório do ano, previsto para 22 de novembro.
Fim do primeiro ato.
Segundo ato –
Andante
A sinfonia prossegue apresentando, agora em segundo plano,
pontos positivos do pacote (fale baixo que alguém pode ouvir).
Ruim ma non troppo – vai exigir um bloqueio
mais forte no último relatório, apenas isso. Como são analistas estáticos, que
vivem intensamente o hoje, mas apanham para entender as consequências de hoje
sobre amanhã, admitem que o PIB virá melhor mas não ousam projeções sobre os
efeitos do PIB mas sobre as receitas. Afinal, já fizeram suas previsões e não
será um PIB qualquer que irá atrapalhá-lo. Quando for divulgado o PIB maior,
todos corrigirão suas estimativas ao mesmo tempo, e o erro será
diluído.
Se deixo o ajuste maior para o fim, significa que o ajuste menor agora
terá um efeito maior sobre o PIB. Logo o ajuste no fim será menor. Mas
significaria complicar a mensagem a ser passada ao jornalismo-sela – o que se
deixa cavalgar.
Minueto ou
Scherzo
Aí resolve botar um pouco de números para a discussão ficar menos vaga e
o minueto permitir mais pessoas entrarem na dança. E descobre-se que todo o
escarcéu (o desconforto) foi provocado porque o contingenciamento fiscal
para 2024 foi afrouxado para R$ 1,7 bilhão, contra uma expectativa de US$ 5 a
US$ 10 bilhões do mercado.
Como o mercado ficou frustrado, para melhorar seu ânimo o Copom aumentou
a Selic em 0,25 ponto a Selic. Esse 0,25 ponto representa um aumento de R$ 9,5
bilhões na dívida pública. Mas o aumento vai para o bolso da Faria Lima,
aumentando a dívida pública mas reduzindo o desconforto
Ou seja, para punir um afrouxamento de R$ 1,7 bilhão nos gatos públicos,
aumenta-se a dívida pública em R$ 9,5 bilhões. Por enquanto, se não vierem mais
aumentos.
É o chamado princípio de Sísifo – o gigante condenado
eternamente a empurrar uma pedra em uma montanha para a pedra cair e
ele iniciar novamente seu trabalho.
Aí, esse país de patos ouve a trombeta de Josué: se a relação
dívida/PIB aumentou, tem que aumentar os juros.
Depois de desenhar o Brasil liquidado, a reportagem coloca alguns
contrapontos otimistas, para evitar que ocorra um suicídio coletivo
de leitores:
Daí o grande pensadora Andrea Damico, CEO da Buydebrazil,
sentencia: “Tem alguns pontos mais construtivos, mas, no geral, liquidamente,
a surpresa foi um pouco pior”. De véspera de fim de mundo chegou-se a um quadro
em que os pontos negativos foram apenas um pouco pior do que os
otimistas,
Contenção orçamentária – A contenção orçamentária total
(bloqueio e contingenciamento) caiu de R$ 15 bilhões anunciados em julho para
R$ 13,3 bilhões agora. O fiscal aumentou as contas em U$ 1,7 bilhão.
0,25% de aumento da Selic pressionou a dívida em US$ 9,5 bilhão.
No entanto, com a sensibilidade de um general israelense, a economista Debora
Nogueira, da Tenax Capital, mostra as virtudes do bombardeio para
contar a guerra: “Reverter o contingenciamento em um momento em que as despesas
ainda não estão devidamente ajustadas e a economia se mostra forte, enquanto o
ciclo de ajuste de juros está apenas começando, revela uma baixa sensibilidade
do planejador diante de uma economia desequilibrada. O fiscal continua
expansionista, enquanto a política monetária tenta contrair”.
Itali França, do Santander, explicando que, apesar de todas as 7 pragas do
Egito da Faria Lima, o tal do mundo não vai se acabar:
“No geral, foi uma surpresa negativa no resultado [do relatório
bimestral de setembro]. Embora ainda vejamos uma chance considerável de atingir
a meta neste ano, temos mais despesas não sujeitas ao limite de gastos, menor
espaço para surpresas negativas e dependência de receitas
extraordinárias”.
Ou seja, vê uma chance considerável de atingir a meta este ano.
Entenderam alguma coisa? Nem os jornalistas-papagaios. O que vale é o tom de
fim de mundo.
Finale
Aí a Damico, depois de prever o fim do mundo, colocou uma “pequena”
ressalva salvadora:
“A receita, de fato, tem um crescimento endógeno, justificado pela
atividade econômica mais resiliente. A projeção de PIB para 2024 chegou a ser
de 2% e já está em 3% em pouquíssimo tempo. A arrecadação precisa refletir
isso, isso é uma melhora genuína”.
O PIB maior amortece a queda de R$ 26 bilhões nas receitas administradas
esperadas, nota Leal de Barros, da ARX. “O imposto inflacionário também ajuda a
amortecer o recuo, via maior IPCA”, diz, em referência à projeção de inflação
do governo, que foi de 3,9% para 4,25%.
A estimativa de arrecadação com o Carf, por sua vez, foi cortada de
R$ 37 bilhões para apenas R$ 800 milhões, o que economistas consideraram que é
uma projeção bem mais realista.
Chicoli, da Citrino, reconhece uma melhora na composição dos números.
“Na parte de receita, praticamente zeraram o Carf, mas a parte de
concessões ainda me parece alta, apesar de terem reduzido também”, afirma.
“Entraram algumas receitas da compensação da folha, que tenho dúvida do
potencial arrecadatório, mas que, de qualquer forma, são mais factíveis do que
o Carf.”
Do outro lado, a despesa total aumentou em R$ 11,8 bilhões, com os
gastos previdenciários subindo em R$ 8,3 bilhões. “Ainda me parece
insuficiente, mas houve uma melhora nessa conta”, diz Chicoli.
“Ao final, me parece que ainda temos receitas superestimadas, mas houve
uma melhora na composição, e as despesas obrigatórias também continuam
subestimadas, mas também houve um avanço”, conclui Chicoli.
Conclusão
O título é a parte mais importante da matéria, mostra a
grande conclusão, o que receberá maior leitura e ajudará a formar a opinião dos
gados de jornais– que existem e são muitos.
A Sinfonia no 5 de Beethoven é considerada apenas pelo 1o
Movimento.
Suponha que o Valor se baseasse na última parte
para manchetar:
“Mercado elogia a melhora na composição das despesas
obrigatórias”.
“Mercado estima que previsão de contas públicas melhoraram”.
“O crescimento do PIB trará uma melhora genuina na arrecadação,
estima mercado”.
Grande encerramento
Ilustração: Toulouse-Lautrec
Leia: https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/09/minha-opiniao-favor-de-quem.html
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