Nem tão nova classe média
O conceito de “nova classe média” reforça a miopia
e a generalização ainda perpetuadas por grupos hegemônicos da academia e de
setores ditos “tradicionais” da sociedade paulistana, e afasta parte
considerável da população das perspectivas progressistas possíveis
Lucas Chiconi
Balteiro/Le Monde Diplomatique
Muitos se surpreenderam com o alcance de Marçal na Zona Leste de São Paulo, mas, quem vive por aqui, sabe muito bem que o trabalho de base do candidato foi mais expressivo do que boa parte dos candidatos de esquerda, que nem sequer tiveram agendas públicas evidentes na região. Em suma, abriram mão de disputar as classes médias em sua amplitude, o que, na maior e mais rica cidade do país, significa abrir mão de muita coisa.
Afinal, o que a
sociedade paulistana não é, nem de longe, é o cenário oito ou oitenta
encontrado no Morumbi, entre mansões e favelas. As complexidades são muito
maiores e os parlamentares eleitos deverão trabalhar para todos, ou ao menos
para a maioria, ao invés da dicotomia da esquerda que oscila entre movimentos
acadêmicos e privilegiados de Pinheiros, na Zona Oeste, instituições de classe
no Centro e movimentos sociais nas periferias. Como se nada existisse entre
esses polos confortáveis ao espectro político.
Pior ainda quando
dizem que esses lugares são os dos “pobres que comem mortadela e arrotam
caviar”. Gerações anteriores passaram por processos de ascensão social, e lugares
consolidados pelo trabalho operário vinculado à indústria e ao comércio popular
tornaram-se ambientes híbridos, onde foram proliferadas formas arquitetônicas
que reproduzem ares mais “burgueses” e diferenciados.
O ambiente se tornou
atrativo a novos negócios do setor privado. O comércio e a oferta de serviços
também se diferenciaram e se somaram às camadas populares. Não por acaso, já
que a infraestrutura pública já era implantada desde ao menos os anos 1970.
Vilas de casas, pequenos edifícios, lojas populares e feiras de rua passaram a
conviver com arranha-céus, concessionárias de carros importados, bares e
restaurantes cada vez mais sofisticados e casas que também mudaram seus espaços
internos e externos para reproduzir sua ascensão.
Estamos falando de um
movimento interno de parte significativa dos próprios moradores que pressionou
por estas transformações, ainda pouco compreendidas pela academia, sobretudo
por grupos da arquitetura e do urbanismo em suas instituições de classe que se
colocam como progressistas em termos políticos e ideológicos. Contudo, seus
olhares persistem em uma posição de exotismo e crítica, especialmente pela
região das elites “tradicionais”, na Zona Oeste e parte da Zona Sul, terem sido
pressionadas.
Por esse motivo, é
tão oportuno a utilização do termo “além-rios” pela arquiteta e urbanista
Deborah Sandes de Almeida, doutoranda na FAU/USP, ao pesquisar bairros da Zona
Norte de São Paulo. A ideia de “mesopotâmia paulistana” foi bastante enraizada
na história da cidade, que define o “entre rios” (Tamanduateí, Tietê e
Pinheiros) como o espaço principal e detentor de riqueza e infraestrutura, ao
passo que as regiões “além-rios” (Zona Norte e Zona Leste) seriam menos
qualificadas e pobres, marginalizadas. Desse modo, tem emergido uma nova
geração de pesquisadores da história urbana que busca desconstruir essas
catedrais a respeito da metrópole, por meio das histórias não contadas ou
trabalhadas apenas pela visão dos grupos hegemônicos, externos aos territórios
em questão.
Quando falamos dos
bairros-jardins paulistanos, como os famosos Jardins América e Europa, o Alto
de Pinheiros e o Pacaembu, é quase automática a lembrança da Cia City, empresa
responsável pela implantação desses bairros. Entretanto, o que Almeida
investigou é que a mesma empresa também foi responsável por bairros-jardins no
noroeste da cidade, influenciando a urbanização da região por meio de formatos
diferentes daqueles encontrados nos bairros da elite tradicional, à exemplo do
City América, no Parque São Domingos, e do City Empresarial Jaraguá. Nesses
lugares, as dinâmicas de uso e ocupação do solo tomaram outras dimensões,
sobretudo pela arquitetura produzida, pouco aceita entre os círculos sociais do
circuito “tradicional” do campo em São Paulo, como a Vila Buarque, Higienópolis
e Pinheiros.
É nessa mesma região
de onde vem a advogada, apresentadora e comentarista Gabriela Prioli, mais
precisamente da Vila Mangalot. Há dois anos, foi entrevistada no PODDELAS,
quando pôde contar sua história ainda muito distorcida entre o público que
observa uma mulher branca, loira e de físico padrão. Prioli é filha de
trabalhadores, um contador e uma fonoaudióloga, da Vila Mangalot, pequeno
bairro às margens da Rodovia Anhanguera, muito perto dos limites com o
município de Osasco. Durante a entrevista, definiu o bairro enquanto
“periferia”, mas demonstrou esclarecimento sobre a complexidade que acomete sua
família e sua história, já que foi bolsista em colégio particular e era tida
como da parte “pobre” da família. Enquanto isso, para colegas de bairro, era
vista como “rica&rd quo; por morar em um edifício com apartamentos de 50
metros quadrados. Essa espécie de não-lugar é uma realidade para uma grande
parcela da população paulistana, já que uma das heranças da metrópole industrial
foi justamente a consolidação de estratos sólidos e variados de classes médias
que detém de regiões intermediárias entre a área central e as periferias de
fato.
Não é a primeira vez
que o mapa das eleições gera preocupação e surpresa na esquerda, visto que o
mesmo aconteceu com a eleição do ex-presidente Jair Bolsonaro. Entretanto, há
uma novidade no mapa de 2024: Marçal evidenciou o avanço da fronteira entre os
bairros privilegiados e os bairros periféricos, já que regiões como Ermelino
Matarazzo, Itaquera e Sapopemba votaram, majoritariamente, em Pablo Marçal,
diferente do extremo leste que foi em sua maioria de Guilherme Boulos. Em
maioria, não em totalidade, é importante frisar.
Como demonstrou o
LabCidade da FAU/USP, existem complexidades pouco reveladas nos mapas do
resultado eleitoral. Apesar disso, ainda se faz necessário disputar o
conhecimento acadêmico a respeito da metrópole e suas regiões, sobretudo das
classes médias. Não foram poucas as evidências de mudanças de cunho cultural e
político na Zona Leste nas últimas décadas que ainda reverberam no presente:
nos últimos anos, houve a demolição da sede do Sindicato dos Metroviários de
São Paulo, no Tatuapé, em meio a uma disputa por seu tombamento como patrimônio
cultural do município. Era um espaço de recepção e organização de eventos de
esquerda, o que demonstrava outro sinal relevante de combate à esquerda nesses
territórios.
Alguns anos antes, na
mesma porção do Tatuapé, a Vila Operária João Migliari protagonizou a mesma
situação de transformação de um passado operário de trabalho que remete aos
tempos fabris da metrópole e que apresentam uma crise de identidade entre
passado e presente, por meio das divisões sociais do trabalho e o sentido de
transformar e preservar na metrópole. No mesmo período, empresários e
comerciantes da Penha chegaram a contestar o tombamento (instrumento de
preservação) do Centro do bairro, onde existe um conjunto importante de espaços
construídos para a história de São Paulo, inclusive por parte da comunidade
negra local em torno do Largo do Rosário.
Há tempos que bairros
como Mooca, Belém e Tatuapé mudaram seu perfil social predominante, assim como
Água Rasa, Vila Formosa, Vila Prudente, Vila Carrão, Vila Matilde, Penha,
Aricanduva e Parque São Lucas seguiram o mesmo caminho entre aquela cidade
industrial de outrora e a metrópole dos serviços que viria a emergir nos finais
do século XX.
É notória a
consolidação das classes médias paulistanas frente ao agigantamento da região
metropolitana, que também abriga processos socioespaciais similares, como no
ABC Paulista, Guarulhos, Mairiporã, Osasco, Barueri, Suzano e Mogi das Cruzes.
Na Zona Norte, bairros como Santana, Tucuruvi, Vila Maria, Vila Medeiros, Casa
Verde, Freguesia do Ó, Pirituba e Parque São Domingos fazem parte dessa
história.
O centro desse
processo na Zona Leste é o Tatuapé e seu entorno, sobretudo o Jardim Anália
Franco, oficialmente Vila Regente Feijó. Os edifícios de alto padrão e as novas
tipologias de casas já existem desde os anos 1980 e 1990, muito antes do que se
convencionou chamar de “nova classe média”. É onde está a maior concentração de
imóveis e serviços caros da Zona Leste, motivado pela ascensão de famílias de
diferentes bairros da região que desejaram permanecer por aqui, em movimento
contrário ao que cunhou a hegemonia como as Zonas Oeste e Sul sendo os lugares
exclusivos 9dos ricos) em São Paulo.
Leia sobre fissuras na extrema direita https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/05/extrema-direita-fissurada.html
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