08 outubro 2024

Uma crônica de Abraham B. Sicsú

Reminiscências
Abraham B. Sicsú/Vermelho  

Filhos fazem sua vida. Amigos vão se afastando. Alguns, até já se vão ou se foram. A idade vai avançando, celeremente. Há necessidade de dar significado à vida.

Vive-se de lembranças, de memória. Tudo chama algo vivido, algo que teve sentido. Aliás, procurar dar sentido a uma existência, motivo para continuar, para dizer eu estive aqui, fiz algo e vivi momentos importantes, pelo menos para os meus.

Santa Isabel, teatro icônico. Lá acontecem os espetáculos que dão luzes, que ficam na recordação. Grandes artistas, shows inesquecíveis, orquestras famosas, peças comoventes. É um espaço que faço questão de freqüentar.

Afastando a tristeza, a ele vou. Um espetáculo, ou melhor, uma aula espetáculo. De etnomúsica, a busca na música da cultura e da essência de um grupo étnico.

Uma senhora idosa. Canadense de Quebec. Judith Cohen. Simpática e cativante. Estudiosa da música ibérica de séculos passados, da música sefaradi, que no mundo se espalhou. Muitos instrumentos, uma viola romançal, muita percussão, um público receptivo e participativo. Dançarina de músicas árabes sobe ao palco, sem ser convidada, para se agregar à apresentação cativante. Dança muito bem.

Acho que era o único judeu marroquino na platéia. Parece que a apresentação foi preparada para mim. Acompanhei com interesse muito veio à memória, inclusive o que não vivi, mas ouvi.

“Viva Rachel Lastimosa”, minha mulher chama minha atenção. “Seu pai cantava, eu me lembro”. Sim, era música comum em casa. No Marrocos, nos casamentos se cantava. Rachel Chorosa, filha do Governador. O estribilho motiva, faz o público participar. “Aued, aued”. Em livre tradução, “Gostaria, gostaria”.

Fez-me lembrar a mesa de jacarandá enorme na sala. Meu pai na ponta, minha mãe, minhas tias, no lado esquerdo, os irmãos, cantando trechos de música, desta em particular, só o primeiro refrão que repetíamos inúmeras vezes. Acho que, no show, foi a primeira vez que a escutei inteira.

Meu pai era sempre sério, mas nessas horas se divertia. Sabia poucas músicas, esta inclusive. E mais quatro ou cinco que sempre repetia.

Havia, também, a seção de piadas. Acho que ele só sabia duas, as quais repito até hoje, falo para meus netos. Dávamos muita risada.

Uma delas, um fiscal da Sunab, órgão fiscalizador, chega num bar de um português que está abaixado. Apresenta-se. Como o dono do bar não o escuta direito e não o vê, responde: Deixe duas caixas de Seven up, uma bebida da época, sem nota. Sem graça, mas adorávamos.

Minha mãe completava com uma de uma senhora que levou um escorregão na rua e mostrou as calcinhas e um senhor francês disse: “Se la vi”. Logo um espanhol completou com “Yo también”.

O show continuou. Uma música medieval é cantada. Mexe com minha memória. Fala-se de Gerineldo, uma figura popular da época colonial no Marrocos, o qual se deita com a princesa. O rei descobre, mas como não quer matá-los, pois é um bom serviçal e gosta muito da filha, exige que se casem. Não havendo alternativa, passa a viver no castelo, com uma vida de luxo e riqueza.

Até hoje, os poucos que ainda falam haketia, dialeto dos judeus que vieram da Espanha para o Norte da África, na época da Sefarad, dizem: “buen Mazal de Gerineldo!”, boa sorte a de Gerineldo.

Minha tia Délia sempre repetia e nos contava como Gerineldo era esperto e como Joha, outro personagem, um abestalhado trapalhão, sempre colocava os pés pelas mãos, nada conseguia.

Saí do Marrocos com cinco anos, poucas imagens tenho dos lugares que vivia, que conhecia. Voltei em 1998 e a lembrança foi pouco avivada.

 Meus irmãos tiveram mais sorte. Descobriram as casa e sinagogas que freqüentávamos. As fotos são as imagens mais concretas que tenho. Nada muito presente.

As músicas de Judith, as historinhas que contou, os instrumentos que tocou, me fizeram muito presente. Como se tivesse saído a poucos dias de lá. Como se aquela cultura, tão diferente, fosse minha também, fosse meu espaço de reencontro. Muito agradeço.

Foto: Teatro de Santa Isabel, no Recife | Andréa Rêgo Barros

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