24 outubro 2024

Uma crônica de Cícero Belmar

Cachorros choram sem lágrimas
Cícero Belmar*   

A única pessoa que desconhecia que os cachorros choram, com certeza, era eu. Os amigos a quem revelei essa ignorância me olharam com reprovação. A diferença é que choram sem lágrimas, disse-me Márcia Ramos. Com essa explicação, entendi por que eu não dava o nome de “choro” aos uivos dos pets. Eu associava choro ao pranto.

Hoje, sei. Chorar é uma expressão, é atitude. É mais do que deixar os olhos marejados. O homem, portanto, não é o único animal que chora. Os cachorros também, da mesma forma que têm a capacidade de sorrir. Ainda bem que Márcia me deu uma “aula” necessária.

Quem cria cães como ela vira especialista em comportamento canino. Tanto é que me contou que sabe quando o seu cachorro está chorando ou sorrindo. Os pets, segundo ela, expressam felicidade e dor no olhar, mas o choro também é vocalizado. No choro, os cachorros uivam como fossem lobos. Ou gente.

Cachorros choram porque se afeiçoam demais. Comecei a ouvir, logo cedo, nas primeiras horas da manhã, aquele som que mais adiante eu soube se tratar de um choro. Era quase um lamento, ou sei lá, um gemido alto, intermitente, que chamava a atenção. Parei e fiquei ouvindo e aquilo, como se diz, era de partir o coração. Fiquei tentando identificar de onde vinha.

Não era um gemido de dor física, mas um som rouco. Som estranho, não parecia ser de uma pessoa. Mas os lamentos, até o dos humanos, denunciam perda e mágoa. Vinha de algum apartamento próximo ao meu. Peguei o elevador, desci, e quando cheguei à portaria me informaram que o “choro” era de um dos cachorrinhos dos meus vizinhos que moram num apartamento do andar abaixo do meu.

Todo choro tem uma história: no apartamento, pai e filho moravam com dois cachorros. Todas as manhãs, cedinho, os bichos eram levados para umas voltinhas nas ruas próximas do prédio. Aquilo era uma festa para os animais. Mas o filho passou num concurso e precisou se mudar para outra cidade, levando um dos dois cães. Tão logo o filho viajou, o pai contraiu uma virose e ficou sem condições de sair para passear com o pet que tomava conta. Os choros começaram.

Repetiram-se nos dias seguintes. Cada vez mais pungente. Foi então que Márcia Ramos que, além de amiga, mora no mesmo prédio, entrou na história. Ela conhece bem a linguagem dos sentimentos dos cães, ficou condoída com a situação e se dispôs a fazer passeios matinais com o bichinho.

Na minha santa ignorância eu imaginava que, na irracionalidade, os pets apesar de se tornarem amigos uns dos outros, construíam apenas laços superficiais. Márcia disse que ele sentia falta do companheiro. O cachorro foi retomando a alegria com os passeios que Márcia passou a levá-lo, nas proximidades do condomínio.

Não duvido que ele sentia saudade do companheiro. Mas também é certo que os cachorros gostam de amor e diversão e os passeios pela manhã têm esse sentido da alegria e da novidade em movimento. Todos os dias quando saio para caminhar e encontro Márcia com o cachorro, me convenço: um dos serviços que nos cabe, aqui, é ser anjo da guarda dos pets.

*Jornalista, escritor, membro da Academia Pernambucana de Letras

Leia sobre o "ideal impossível" https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/04/minha-opiniao_29.html

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