09 novembro 2024

Cláudio Carraly opina

Como ser comunista no século XXI?
Cláudio Carraly*  

Ser comunista nesse século é um exercício de reinterpretar e adaptar os princípios clássicos de igualdade e justiça social a um mundo globalizado e digitalizado, marcado por novas formas de exploração, alienação e desafios ambientais. Em um cenário diferente daquele que inspirou Karl Marx e Friedrich Engels, o comunismo contemporâneo requer uma análise crítica das inúmeras transformações do capitalismo e um engajamento com problemas globais. Hoje, entender esse fenômeno implica não só revisitar o pensamento clássico, mas dialogar com teóricos que recontextualizam esses, observando os desafios do nosso tempo, enquanto analisamos experiências que vem dando certo.

Desde suas origens, a essência do comunismo, como apresentada no Manifesto Comunista (1848), é a crítica ao capitalismo, que se baseia na exploração da força de trabalho. Marx, em O Capital (1867), explica que o capitalismo depende da extração da mais-valia, ou seja, da apropriação do valor excedente gerado pelo trabalho e conservação nas mãos da burguesia dos modos de produção. Esse processo de exploração gera alienação, pois o trabalhador é separado do produto de seu esforço e das decisões sobre o excedente da produção. Embora esses conceitos permaneçam centrais, o mundo mudou profundamente desde o século XIX, e os desafios enfrentados atualmente são mais complexos e multifacetados, exigindo adaptações, na prática, sem logicamente perder a essência.

A partir da segunda metade do século XX, o capitalismo globalizou suas engrenagens e intensificou a financeirização. David Harvey, em O Enigma do Capital (2010), enfatiza que o capital atual é transnacional e permeia quase todos os aspectos da vida. Essa complexidade exige que as práticas da esquerda em geral atualizem suas formas de resistência e organização política. Além disso, o sistema financeiro agora circula em fluxos globais, fragmentando lutas e dificultando resistências locais. Aqui, um caminho promissor são as alianças globais de trabalhadores e sindicatos internacionais, como o Sindicato Internacional de Trabalhadores da Amazon, que unificam a luta em setores globais.

A tecnologia transformou profundamente a relação entre trabalho e exploração, hoje o capital não apenas explora o trabalho físico, mas também se apropria das capacidades criativas e intelectuais dos trabalhadores. Antonio Negri e Michael Hardt, em Império (2000), discutem o conceito de "trabalho imaterial" – a produção de conhecimento, serviços e cultura – que reflete uma nova forma de alienação. Plataformas como iFood, Uber e redes sociais mostram como trabalhadores estão presos a um ciclo de precarização e isolamento, sem o apoio dos modelos tradicionais de organização trabalhista. Aqui, o comunismo atual precisa defender políticas como o direito de sindicalização digital e garantias trabalhistas específicas para esses freelancers, que hoje são iludidos com a propaganda de que são empreendedores individuais e que trabalham para si, quando, na verdade, são o novo exército de reserva do capitalismo moderno. Cabe assim aos comunistas explicitar essa nova forma de exploração, e cooperar com a criação de cooperativas digitais, oferecendo uma alternativa de trabalho digital justo e colaborativo.

No capitalismo digital, a alienação atinge a esfera imaterial, com trabalhadores monetizando seu "eu" nas redes sociais e aplicativos, sem segurança ou direitos assegurados. A precarização leva a problemas de saúde mental e física, como o aumento de depressão e ansiedade, além da falta de apoio para aqueles que trabalham como motoristas de aplicativo ou de entrega de comida, quando sofrem acidentes no desempenho de seu trabalho. Entre os trabalhadores de setores instáveis, o comunismo contemporâneo pode defender uma carga de trabalho reduzida, uma renda básica universal e investimentos em saúde e um seguro em caso de acidentes. Tais políticas ajudariam a mitigar os impactos da alienação moderna, oferecendo qualidade de vida a indivíduos em um sistema mais humano e sustentável.

Outro desafio central é a fragmentação da classe trabalhadora, enquanto no século XIX os trabalhadores eram principalmente operários fabris, hoje incluem trabalhadores precarizados, informais e terceirizados. Pierre Bourdieu, em A Miséria do Mundo (1993), aborda a emergência do "precariado", uma classe sujeita à instabilidade e a nenhum direito. Essa fragmentação exige que se encontrem formas de organização política que consigam reunir uma classe dispersa. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Brasil, que organiza trabalhadores rurais em uma estrutura democrática, representa um exemplo inspirador de como é possível integrar diversos grupos em uma luta coesa, promovendo modelos horizontais de organização.

A questão ambiental também é essencial para o nosso comunismo contemporâneo, Naomi Klein, em Isso Muda Tudo: Capitalismo vs. Clima (2014), argumenta que a crise climática é um subproduto do capitalismo, que esse opera com uma lógica de crescimento infinito. O ecossocialismo, resgata as contradições ecológicas do capitalismo, defendendo uma reorganização radical da economia global. Exemplos de políticas verdes, como as de países nórdicos que almejam neutralidade de carbono, mostram que uma economia sustentável é possível. Além disso, o Green New Deal, promovido por Alexandria Ocasio-Cortez nos EUA, oferece uma visão de transição para uma economia mais sustentável. Essas propostas nascidas em várias vertentes da esquerda alinham-se com os princípios do comunismo ao priorizar o bem-estar humano e ambiental.

Para ser efetivo, o comunismo do século XXI também precisa integrar as diferentes dimensões das lutas sociais em uma estratégia coesa. Ao contrário do comunismo clássico, focado unicamente na divisão de classes, o comunismo atual deve reconhecer e combater as opressões interligadas de gênero, raça e sexualidade. Angela Davis, em Mulheres, Raça e Classe (1981), e Silvia Federici, em O Patriarcado do Salário (1975), mostram como o capitalismo explora mulheres e minorias, relegando-as a trabalhos invisíveis e não remunerados. A luta comunista contemporânea, ao abraçar essa diversidade de opressões, constrói um projeto social que combate todas as formas de discriminação.

Movimentos como Black Lives Matter e Me Too representam respostas atuais à fragmentação da classe, engajando uma nova geração de ativistas que resistem a múltiplas opressões. Ao reconhecer a diversidade dessas lutas, o comunismo do século XXI precisa integrar as questões de raça, gênero e sexualidade à luta de classes. Essa inclusão permite uma visão mais abrangente de “classe trabalhadora” e incorpora experiências de opressão que vão além da exploração econômica, criando um movimento social que combate todas as formas de injustiça.

Não podendo cair na armadilha propagada por parcela da própria esquerda que o “identitarismo” estaria afastando à esquerda do conjunto da população, que ao priorizar o retorno a questão de classes, simplesmente, tudo mais estaria resolvido, a história provou que não. Concordo que questões menores indenitárias e perfumarias semânticas podem atrapalhar o debate confundindo o cidadão médio, por isso devemos manter o foco no principal, para não embotar o que é fundamental, e esse, é a defesa inegociável de todas as minorias.

Além disso, teóricos como Nick Srnicek e Alex Williams, em Inventando o Futuro (2015), propõem o "aceleracionismo de esquerda", defendendo o uso da tecnologia e automação para criar uma sociedade sem trabalho compulsório. A renda básica universal e a automação, sob controle democrático, podem garantir que todos tenham acesso a uma vida digna. Esse futuro exige uma intervenção democrática forte, capaz de regulamentar o uso da tecnologia em favor do bem comum, promovendo uma sociedade onde o trabalho compulsório seja minimizado e o lazer priorizado.

Finalmente, enfrentamos o desafio de construir uma nova hegemonia que seja atrativa para as novas gerações. Exemplos como sistemas de saúde e educação gratuitos, nos países social-democratas e socialistas, já demonstram que políticas inspiradas nos avanços dos comunistas podem melhorar a qualidade de vida e reduzir desigualdades. Assim, aceitar o desafio de adaptar um ideal centenário a um mundo em transformação. Isso exige uma prática inclusiva, interseccional e coletiva, capaz de integrar demandas de justiça econômica, climática, digital, e velocidade de lidar com o que mais surgir.

O comunismo contemporâneo enfrenta o desafio essencial de reinterpretar seus princípios fundamentais para um mundo drasticamente alterado desde o século XIX. Mais do que uma crítica ao capitalismo, ele deve ser uma alternativa que resgate a dignidade do trabalho e da vida humana, colocando-as acima da lógica do lucro. A realidade atual – marcada pela exploração digital, precarização do trabalho imaterial, fragmentação das classes, luta pelas minorias e crise climática – exige que o comunismo atualize suas práticas, priorizando a interseccionalidade e a sustentabilidade.

Nesse cenário, é necessário abraçar uma abordagem que considere as múltiplas formas de opressão e ofereça alternativas concretas e coletivas, promovendo uma visão de futuro onde o bem-estar e a qualidade de vida superem os imperativos de mercado. Construir essa nova hegemonia exige inovação e articulação global. Para voltar a ser relevante, o comunismo precisa unir trabalhadores e setores marginalizados em torno de um projeto que não apenas reivindique igualdade, mas ofereça esperança concreta. Esse é o grande desafio e, ao mesmo tempo, a promessa do sonho socialista contemporâneo: ser um movimento capaz de criar um mundo mais justo, sustentável e inclusivo para as próximas gerações.

 

“Os trabalhadores não têm nada a perder em uma revolução comunista, a não ser suas correntes.”

(Engels e Marx)

 

*advogado, ex-Secretário Executivo de Direitos Humanos de Pernambuco

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