10 dezembro 2024

Abraham Sicsú opina

Ainda se conversa?
“Seria ótimo se este voltasse a ser o perfil das relações humanas, principalmente no meio acadêmico.”
Abraham B. Sicsú*/Vermelho 

Evitar dialogar sobre assuntos polêmicos passou a ser prática usual. Principalmente no meio acadêmico que teria como obrigação essa discussão. Ninguém quer se expor, ninguém quer antagonizar com aqueles que têm uma visão de mundo no pólo oposto em relação ao que eles pensam. Um mundo em que pouco se evolui e faz com que as pessoas se fechem em seus conceitos, eu diria preconceitos. 

Não é novo, sempre houve ambientes em que isso se fez presente. Um mundo segmentado e fracionado, espaços em que não há conversa, evita-se a interação. Impossível adentrar de uma maneira aberta e franca.

Entrei, como professor, na Universidade em 1979. No Departamento de Economia. Que era apontado como uma área de excelência, em que se concentravam cabeças pensantes respeitadas pelas instituições congêneres. Uma área em que é fundamental entender caminhos e tendências muito incertos. Que vive do debate de ideias e busca de caminhos mais adequados para superar as dificuldades que as complexas economias apresentam. Infelizmente, o Departamento estava fracionado. Não havia diálogo.

Existiam os que chamávamos de “neoclássicos” e os que eram denominados “marxistas”. Direita e esquerda. Não se falavam. Não havia hipótese de articulação. Queria-se a destruição dos opostos. Se, por qualquer circunstância podia-se prejudicar o outro grupo, se fazia com gosto. Um verdadeiro horror, um ambiente tóxico que, pouco a pouco, foi contaminado a excelência da instituição e fez com que se perdesse, por muitos anos, a liderança acadêmica que apresentava no Norte e Nordeste do País.

Pois bem, isso pouco ajudava. Mas, mentes brilhantes existiam. Mentes que conseguiam sair do censo comum e apresentar pontos de vista inovadores e interessantes para enfrentar a realidade de uma maneira bem propositiva.

Não deixava de ser de um dos grupos, o de esquerda, mas admirava poucos do outro grupo que eu classificava como mentes inovadoras. Seus textos eram instigantes e levavam a pensar em saídas alternativas para os principais problemas econômicos, com ênfase nos do Nordeste brasileiro. As questões do desenvolvimento regional tinham contribuições que não podiam, mas eram, ser ignoradas.

Um desses economistas tinha uma escrita compreensível e direta. Estudou a fundo a problemática do Sertão e também da Zona da Mata, espaço de origem de sua família. Sabia o que dizia. Tanto que foi convidado e exerceu cargos importantes em instituições públicas federais e estaduais. Sempre que me era dado a ler algo de sua lavra não perdia a oportunidade. Aprendia e me aprofundava.

Faz alguns anos, um ex-aluno nosso foi nomeado secretário municipal e nos convidou para assessorá-lo. Por cerca de um mês tivemos o prazer de conviver e trocar algumas ideias. Como surgiu uma oportunidade de presidir um órgão em área em que me sentia mais a vontade, mais dentro de meus interesses de atuação, agradeci o honroso convite e, infelizmente, tivemos que nos afastar.

Mais recentemente, mesmo com a polarização da sociedade brasileira tendo ficado nítida, tive oportunidade de reencontrá-lo. Sabedor dos textos que escrevo, semanalmente, pediu para que o incluísse na lista dos recebedores. Acreditei ser um afago protocolar, mas não deixei de atender a seu pedido.

Passados poucos meses, recebi um convite para uma conversa em que pudéssemos dialogar sobre o que tem motivado os textos, os meus e os dele, como temos visto o país, a região e o mundo. Evidentemente, começa o convite alertando das visões irreconciliáveis que tínhamos na teoria e que sabia que seriam um impeditivo para um clima de concordância plena.

Fiquei feliz. Uma pessoa que admiro e acredito que ainda tem muito a contribuir, disposto a passar uma tarde inteira discutindo ideias e visões que não são, em princípio, as dele, raríssimo hoje em dia.  Vou ao encontro sem nenhuma ideia preconcebida ou com qualquer intenção de querer convencê-lo de qualquer coisa ou ponto de vista.

Um cafezinho, bolachinhas de castanhas do norte do país e muito bom papo.

Seu ponto de partida é que vê o capitalismo como o melhor sistema para poder haver mudanças profundas e que já trouxe melhorias significativas para a vida da sociedade. Parte da ideia de que a concorrência e o desejo de lucrar levam à busca de maior produtividade, único meio possível, na opinião dele, de trazer meios para uma transformação social estrutural.

Tentei mostrar que as disparidades sociais eram inadmissíveis e que mesmo o regime do bem estar social, que mostrou alguns avanços significativos, teve limitações profundas na sanha exploradora do capital, sem preocupações com o retorno social. Era inadmissível deixar os frutos do progresso nas mãos de poucos e não haver políticas efetivas de enfrentamento das desigualdades. Via o Estado como um agente fundamental para o direcionamento da economia.

Numa visão de mundo, concordamos que o retorno de Trump, do protecionismo, trazia muita instabilidade para os países em desenvolvimento. Mas, também, oportunidades poderiam surgir, como o fortalecimento ou surgimento de novos blocos econômicos, inclusive o do MERCOSUL e União Européia e a Rota da Seda liderada pela China. Uma posição de ponte entre esses Blocos e a economia americana poderia dar um papel estratégico, política e economicamente a um país como o Brasil, se soubermos aparecer nessa função.

Um ponto que me marcou foi a questões das mazelas da nossa sociedade e sua visão para a resolução. Tentou me mostrar que só acredita em ações estruturais que venham do aumento da produção da sociedade que para ele seria o ponto de partida fundamental para mudanças mais profundas. Questões distributivas seriam secundárias e adviriam exatamente dessa melhoria estrutural. Quase como uma transposição espontânea.

Tentei mostrar ser impossível essa separação. Não ser natural que os frutos do progresso técnico automaticamente se revertam em melhorias sociais. A história sempre mostrou que existem segmentos sociais e classes que tendem a se apropriar desses resultados e podem levar a processos de maior exclusão ou, pelo menos, aumentando em muito as disparidades de renda e a pobreza.

Reconheci como fundamental para um plano de desenvolvimento atacar a baixíssima produtividade que apresentamos no nosso país frente aos países desenvolvidos, o inadequado perfil de capacitação de pessoal, muitas vezes de baixa qualidade e distorcido frente às necessidades do setor produtivo, a necessidade de um novo perfil de investimentos em uma sociedade que vem se modificando com a chamada manufatura 4.0. Com o que concordamos.  Mas, isso não surgia pelo merado, sim por uma ação eficiente de governo.

Necessário ter uma estratégia que faça com que a situação atual possa realmente ser revertida, mas não só, ter como foco uma sociedade mais justa e equânime concomitantemente, sem o que estes avanços podem levar a rupturas sociais.

No debate sobre a China e os avanços dados, ele defendeu que isso só foi possível porque se admitiu a possibilidade do lucro e dos avanços “capitalistas” no país.

Continuei afirmando ser um regime socialista, muito bem planificado. Em que se abriram setores à iniciativa privada, mas há controles estatais bastante bem delimitados, sem deixar de observar que nos setores cruciais da economia como saúde, educação, ciência e tecnologia, o estado tem tido forte atuação. Talvez, as mudanças que se consolidaram tenham muita relação com a ênfase que foi dada a esses segmentos nos diferentes planos quinquenais.

Também, chamei a atenção de que houve uma participação regulatória eficiente por parte do Estado, inclusive com um arranjo institucional definido a priori, fazendo com que os benefícios para a sociedade se fizessem palpáveis. Que o processo rápido de urbanização foi planejado, que mesmo nas áreas rurais há uma melhoria significativa da qualidade de vida.

Quanto ao Brasil, ele reconhece avanços que foram dados nestes dois anos e vem dando resultados, mas os vê como conjunturais. O descontrole de gastos poderia levar a um processo inflacionário que celeremente modificaria a situação e faria com que o país voltasse a um processo de estagnação.

Os dados não mostram isso, mas, ao colocar a questão no médio prazo, torna-se uma questão de crença e essa concordamos não discutir.

Uma conversa rica e inspiradora. Em que lógicas de pensamento se batem, mas se tem como objetivo maior a melhoria da sociedade. Provavelmente ele terá outra versão e destacará outros pontos que para mim passaram despercebidos.

Seria ótimo se este voltasse a ser o perfil das relações humanas, principalmente no meio acadêmico. Evitar o debate civilizado só empobrece as relações humanas e pouco contribui para buscas de conhecimento e caminhos de sustentação do desenvolvimento que nos são tão caros.

[Ilustração: Edvard Hopper]

*Professor aposentado do Departamento de Engenharia de Produção da Universidade Federal de Pernambuco) e da Fundaj (Fundação Joaquim Nabuco)

Nenhum comentário:

Postar um comentário