25 dezembro 2024

Cláudio Carraly opina

O ultraliberalismo: um caminho rumo ao abismo
Cláudio Carraly* 

O ultraliberalismo representa uma fase ainda mais radical do neoliberalismo, caracterizando-se pela destruição do papel do Estado na economia e na sociedade. Ele intensifica privatizações, precariza o trabalho, promove políticas excludentes e eleva a repressão estatal para conter o indefectível descontentamento social, sua pseudológica, travestida de eficiência econômica, agrava desigualdades, monetiza a vida humana e ameaça os princípios democráticos, tornando-se um fenômeno que deve ser analisado e combatido

1. O Desmonte deliberado do Estado: O Mesmo Método no Mundo

Se o neoliberalismo diminuiu a atuação estatal em prol do livre mercado, o ultraliberalismo aprofunda a ideia do Estado, que antes era o Estado mínimo, agora resume-se apenas a um aparato de polícia, restringindo suas funções apenas à repressão e segurança pública. Como aponta a economista Wendy Brown em Undoing the Demos (2015), o ultraliberalismo reduz o cidadão a um mero agente econômico: “o humano é transformado em capital humano”. Isso significa que os direitos sociais deixam de ser uma garantia coletiva e passam a depender do desempenho econômico individual, e o possível mau desempenho é só responsabilidade do indivíduo e nada a ver com o Estado.

No Chile pós-ditadura, políticas ultraliberais implementadas durante o governo Pinochet resultaram em privatizações agressivas de setores como água e educação. Hoje, cerca de 82% dos chilenos dependem de sistemas de ensino privados ou mistos, o que aprofunda desigualdades e impede o acesso universal à educação, sem falar no sistema de previdência nas mãos de empresas privadas, que ao quebrarem deixaram milhões de pessoas desassistidas.

Desde que o governo ultraliberal assumiu o poder na Argentina, diversas medidas vêm sendo implementadas em ritmo acelerado e sem discussão com o parlamento ou a sociedade, obviamente gerou impactos imediatos no dia a dia da população. Logo nas primeiras semanas, foram anunciados cortes em ministérios e órgãos públicos, além de uma possível dolarização da economia para frear a hiperinflação que, no entanto, já pressiona ainda mais os preços de bens básicos. A orientação para privatizações de setores-chave, como energia e infraestrutura, ganhou força no discurso oficial, enquanto subsídios em áreas como transporte e serviços públicos sofrem reduções abruptas, encarecendo o custo de vida e aumentando o descontentamento social.

Ao mesmo tempo, sindicatos e movimentos populares organizam protestos contra a precarização do trabalho e a diminuição de programas de assistência, que antes atenuavam a pobreza em regiões mais vulneráveis, com a desigualdade em alta, a tensão política se acirra, e o governo dobra a aposta e diminui ainda mais os investimentos sociais, para isso, utiliza o argumento de cumprir as metas fiscais, ainda que, na prática, o custo desse ajuste pese como sempre nas camadas mais vulneráveis.

2. Privatizações e Desigualdade: O Avanço do Mercado

Os ultraliberais justificam privatizações agressivas como uma solução para crises fiscais, ignorando os impactos sociais, em muitos países, empresas estatais de setores estratégicos, como saúde, energia e transporte, foram entregues ao setor privado. Como consequência, os preços aumentam, a qualidade dos serviços se deteriora e o acesso se torna excludente. Um relatório do Banco Mundial (2020) mostra que a privatização de sistemas de abastecimento de água em países da África subsaariana resultou no aumento das tarifas em até 200%, inviabilizando o acesso para milhões de famílias.

No Brasil, entre 2016 e 2021, mais de 50 empresas públicas foram privatizadas, especialmente no setor de energia e saneamento, conforme dados do BNDES. A privatização da energia elétrica na África do Sul levou a apagões frequentes e tarifas mais altas, impactando sobretudo a população pobre, o que vimos aqui no Brasil, no estado mais rico da federação, que sofre com apagões, preços elevados e qualidade sofrível de atendimento. A falta de investimentos em infraestrutura é consequência direta da busca pelo lucro imediato das empresas privadas.

3. A Precarização do Trabalho e o Aumento da Exclusão Social

Essa ideologia político-administrativa também promove a retirada de direitos trabalhistas conquistados e a precarização do emprego em nome da "flexibilidade do mercado". Isso resulta em aumento do desemprego, informalidade e insegurança econômica, o economista francês Thomas Piketty, em O Capital no Século XXI, destaca que o ultraliberalismo favorece os detentores de capital e amplia a desigualdade de forma estrutural. Pior, sob o argumento falacioso da meritocracia e empreendedorismo, parte da classe trabalhadora abraça esse discurso como se oprimido pelo seu esforço “pudesse virar o opressor.”

Segundo a Organização Internacional do Trabalho – OIT , entre 2010 e 2020, a informalidade no trabalho aumentou em 25% na América Latina em países que implementaram reformas nas linhas do sistema econômico do coração dos mercados financeiros. O relatório de 2022 da Oxfam revela que o 1% mais rico do mundo detém quase 50% da riqueza global, enquanto bilhões vivem com menos de US$ 2 por dia, e a tendência é essa distância se elevar mantidas as atuais condições do sistema financeiro global e a falta de uma regulação dos super-ricos.

4. Repressão Social: O Papel do Estado Nessa Distopia

Diante do aumento da desigualdade e do descontentamento popular, os ultraliberais defendem o fortalecimento do aparato repressivo, ao invés de atuar como mediador e promotor de justiça social, o Estado assume um papel de controle e vigilância, criminalizando protestos e movimentos sociais, como um retorno à máxima do século XIX de que questões sociais eram um problema de polícia, sim, como a moda é cíclica e as roupas do passado voltam à moda, políticas sectárias, ao que parecem, também retornam. Na França, os protestos dos “Coletes Amarelos” (2018) contra as políticas ultraliberais foram fortemente reprimidos. De acordo com a Anistia Internacional, a violência policial resultou em centenas de feridos e prisões arbitrárias.

5. O Impacto na Democracia e a Crise Global

Ao transferir o poder decisório para grandes corporações, enfraquecem-se os mecanismos democráticos, decisões que afetam milhões passam a ser guiadas por interesses privados inconfessáveis e o lucro destas se sobrepõe aos interesses da sociedade, e o espaço para políticas públicas inclusivas é totalmente eliminado. Essa lógica contribui para o aumento da polarização e do populismo autoritário em diversos países. Como afirmou o sociólogo Zygmunt Bauman, “a privatização do público é o golpe mais profundo que se pode dar na democracia”.

O ultraliberalismo não é uma solução para crises econômicas; ele as agrava. Seu legado é a desigualdade, a exclusão e a destruição de direitos coletivos conquistados ao longo de centenas de anos de lutas e acúmulos por parte da classe trabalhadora do campo e da cidade. A experiência global demonstra que as políticas ultraliberais falham em promover prosperidade e justiça social, beneficiando apenas uma elite econômica em detrimento das maiorias e deixando, ao final, o que resta do Estado de joelhos para essas corporações.

Alternativas Possíveis:

A. Fortalecimento do Estado Social: A reconstrução de políticas públicas robustas e universais é fundamental.

B. Regulação do Mercado: O equilíbrio entre Estado e mercado é essencial para garantir justiça econômica.

C. Tributação Progressiva: A taxação das grandes fortunas é fundamental para reduzir desigualdades e financiar políticas sociais.

D. Mobilização Social: A resistência por meio de movimentos partidários, sociais e difusos é crucial para barrar o avanço ultraliberal.

Como cidadãos, é necessário compreender que a luta contra as várias formas de metamorfose do capitalismo em sua veia mais agressiva que surge de tempos em tempos, essa na verdade é uma luta pela dignidade humana, pela justiça social e pela preservação da democracia, e estamos apenas no início dessa longa e difícil caminhada.

*Advogado, ex-secretário executivo de Direitos Humanos de Pernambuco

Leia sobre as pressões do mercado sobre o governo https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/12/editorial-do-vermelho_24.html

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