20 dezembro 2024

Uma crônica de Cícero Belmar

O corpo é o cavalo da arte
Cícero Belmar*      

Todo fim de ano, escolho um presente para dar a mim mesmo. É como um afago, que me faço: você foi um bom menino, eis a recompensa. Por exemplo, já escolhi livros maravilhosos, almoçar num restaurante da moda, comprar uma caixa de CDs na época dos CDs, fazer uma viagem. Neste 2024, que está com dias contados, fui ao show de Ney Matogrosso, que fez 52 anos de carreira.

Comprei o ingresso com antecedência, para não perder a oportunidade do preço e garantir o presente a mim mesmo. Dia a dia, esperava o 30 de novembro chegar. Quem ama a MPB e nunca sonhou com a apresentação dessa estrela incontestável? Uma fila quilométrica se formou na entra da do Classic Hall, em Olinda (PE), duas horas antes de o show começar.

Na tarde do dia 30, meu amigo Ney, não o cantor, mas o escritor, crítico literário e jornalista Ney Anderson, conversou longamente com Ney por telefone. Ele tem acesso direto ao cantor e ouviu o questionamento: “Será que vai dar público?”. A pergunta chega ao prosaico. Ney fe z uma pergunta que todo artista do palco se faz antes do espetáculo. Ele só não sabia que os ingressos estavam esgotados havia semanas.

Ao colocar o seu “Bloco na Rua”, Ney Matogrosso me fez cantar e dançar. Os milhares de fãs que lotaram o Classic Hall, também. Dono da alegria e das emoções, o cantor fica do tamanho do palco quando se apresenta. Coloca o seu corpo a serviço da arte, predispõe-s e de uma maneira tão genuína que todos embarcam na sua proposta. De imediato, estabelece um elo com o público, mobiliza quem está abaixo, ali, à sua frente.

O show tem um repertório que percorre várias fases de sua carreira, iniciada em 10 de dezembro de 1972. No set list estavam sucessos antigos (seus) como Poema e Homem com H; as canções Postal do Amor (de Fagner/Fausto Nilo/Ricardo Bezerra) e Ponta do Lápis (Clodô/Rodger Rogerio); C omo 2 e 2 (Caetano Veloso); Eu quero é botar meu bloco na rua (Sergio Sampaio); Balada do Louco (Mutantes); A Maçã (Raul Seixas).

Cada música escolhida tem um objetivo. Cada gesto seu, na interpretação, também. Ney não está no palco por estar. Todo mundo percebe e acredita nas suas alegrias, nas suas paixões, nos seus desvarios, nas suas consternações. O coletivo se identifica com a verd ade que pulsa.

O show se efetua com elementos cênicos delicadamente pensados. O figurino, do estilista carioca João Paulo, reforça um personagem que Ney criou para si mesmo. O cenário, de Luiz Stein, é composto por projeções que causam efeitos poéticos; a iluminação, d e Juarez Farinon, é essencial e útil para despertar emoções. Com uma banda foda, potência vocal surpreendente e performance eletrizante, Ney faz você se questionar: essa pessoa tem mesmo 83 anos?

No final do show, meu amigo Ney me disse que iria com sua esposa, Karla, ao camarim, dar um abraço em Ney. “Quer ir conosco?” Só se eu estivesse louco, para não ir. Foi uma experiência à parte: ao conhecê-lo, acaba-se a magia do palco. Esqueçam o personagem fulgur ante de minutos atrás.

Em cena, Ney se revela, sugere, requebra, seduz, põe fogo no mundo. No camarim, não mais. A simplicidade contrasta com a exuberância. Há uma distância muito grande entre o cantor, o forte personagem de que ele nos convenceu de sua existência, e o homem simples e quieto.

A reação inevitável é de surpresa. Ele é de estatura pequena, magrinho, educadíssimo, diria humilde. É então que você descobre que foi persuadido por um artista na expressão do corpo e do canto, no palco. Diante da metamorfose, você conjectura que o corpo de Ney é apenas o cavalo à disposição do espírito da arte. Ney é gigante.

Ney nos trata com atenção e gentileza. O show foi o melhor presente que eu poderia me dar. O meu amigo Ney também me presenteou ao me levar ao camarim. Falar nisso, Ney Anderson fez 40 anos ontem. Parabéns, amigo! Fico devendo este presente que jamais será esquecido. 

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