Reagan, Trump e a “destruição inovadora”
A década de 70 do
século passado, os EUA sofreram uma série de reveses militares, econômicos e
geopolíticos: foram derrotados na Guerra do Vietnã; surpreendidos pela Guerra
do Yom Kippur e pela criação da OPEP e a subida dos preços internacionais do
petróleo; e foram surpreendidos uma vez mais pela Revolução do Aiatolá
Khomeini, no Irã, em 1979; seguida pela “crise dos reféns” americanos que foram
mantidos presos durante 444 dias na embaixada dos EUA em Teerã, culminando com
a invasão soviética do Afeganistão, em dezembro de 1979.
José Luís Fiori/Observatório Internacional do
Século XXI
Muitos analistas falaram naquele momento de uma “crise final da hegemonía americana”. Frente a essa situação de declínio relativo de poder, entretanto, os EUA destruíram a ordem mundial que haviam criado depois da Segunda Guerra Mundial e adotaram uma nova estratégia internacional, com o objetivo de manter sua primazia mundial.
Primeiro, aceitaram a derrota, renderam-se e assinaram um acordo de paz com o Vietnã; ao mesmo tempo, abandonaram o padrão-dólar que haviam imposto ao mndo em Bretton Woods, em 1944; em seguida, pacificaram e reataram relações com a China; e enterraram definitivamente seu projeto econômico desenvolvimentista, impondo uma abertura e desregulação financeira da economia internacional, enquanto iniciavam uma nova corrida armamentista, conhecida como a 2ª. Guerra Fria, que culminou com a derrocada da União Soviética.
Um
verdadeiro tufão conservador e neoliberal, que começou no governo de Richard
Nixon e alcançou sua plenitude durante o governo de Ronald Reagan, mudando
radicalmente o mapa geopolítico do mundo e transformando de forma irreversível
a face do capitalismo mundial.
Agora
de novo, na segunda e terceira décadas do século XXI, os EUA vêm sofrendo novos
e sucessivos reveses militares, econômicos e geopolíticos. Foram derrotados no
Afeganistão e obrigados a uma retirada humilhante da cidade de Cabul, em agosto
de 2021; estão sendo derrotados de forma inapelável na Ucrânia; sofreram uma
perda significativa de credibilidade moral em todo mundo, depois do seu apoio
ao massacre israelense dos palestinos da Faixa de Gaza; vêm sofrendo um
processo acentuado de desindustrialização e sua moeda, o dólar vem sendo
questionado por seu uso como arma de guerra contra países concorrentes ou
considerados inimigos dos seus interesses; e por fim, os EUA têm perdido
posições importantes na sua competição tecnológico-industrial e espacial com a
China, e na sua disputa tecnológico-militar com a Rússia.
Neste
momento, uma vez mais, o governo norte-americano de Donald Trump está se
propondo refazer sua primazia através de uma nova mudança radical de sua
estratégica internacional, combinando doses altíssimas de destruição, com
algunas propostas disruptivas e inovadoras no campo geopolítico e econômico,
partindo de uma posição de força e sem pretensões éticas ou missionárias, e
orientando-se apenas pela bússola dos seus interesses nacionais.
A
principal consigna de campanha de Donald Trump -“fazer a América grande de
novo”- já é por si mesma, um reconhecimento tácito de que os EUA estão
enfrentando uma situação de crise ou declínio que precisa ser revertida. E suas
primeiras medidas são todas de natureza defensiva: seja no caso da sua política
econômica mercantilista, seja no caso da “barreira balística” que ele está se
propondo construir em torno do território americano. E o mesmo se pode dizer de
suas agressões e ameaças verbais, que tem sido dirigidas contra seus vizinhos, aliados
e vassalos mais próximos e incondicionais.
De
qualquer maneira, o mais importante tem sido o ataque avassalador e destrutivo
de Donald Trump e seus auxiliares mais próximos, contra as regras e
instituições próprias da orden internacional constru ída pelos EUA, como
resposta à sua crise dos anos 70 do século passado. E contra os últimos
vestígios da orden mundial do pós-Segunda Guerra, como no caso das Nações
Unidas e do seu Conselho de Segurança.
Com
ênfase particular no ataque e destruição americana do multilateralismo e do
globalismo econômico que se transformaram na principal bandeira americana do
pós-Guerra Fria. Neste capítulo das “destruições”, deve-se sublinhar também o
ataque seletivo e estratégico do governo Trump contra todas as peças de
sustentação interna -dentro do próprio governo americano- do que eles chamam de
deep state, a verdadeira base de sustentação e locus de planejamento das
guerras norte-americanas.
No
plano internacional, entretanto, a grande revolução -se prosperar- será
efetivamente a mudança da relação entre os EUA e a Rússia, que vem sendo
proposta pelo governo de Donald Trump.
Uma
inflexão muito profunda e radical, muito mais do que foi a reaproximação entre
os EUA e a China, na primeira metade dos anos 70. Porque, de fato, no século
XX, os EUA herdaram uma inimizade, competição e polarização geopolítica
construída pela Grã Bretanha contra a Rússia, desde o momento em que se
consagrou a vitória dos russos e dos ingleses contra a França de Napoleão
Bonaparte, no Congresso de Viena, de 1815.
Desde
então, os russos foram transformados pelos ingleses em seus “inimigos
necessários”, e serviram como princípio organizador da estratégia imperial
inglesa. Uma realidade histórica que foi depois consagrada pela teoria
geopolítica do geógrafo inglês Halford Mackinder, segundo a qual o país que
controlasse o coração da Eurásia, situado entre Moscou e Berlim, controlaria o
poder mundial.
Por
isso, os ingleses lideraram a Guerra da Criméia, entre 1853 e 1856, contra os
russos; e de novo lideraram a invasão da Rússia depois do fim da Primeira
Guerra Mundial; e cogitaram fazer o mesmo logo depois da Segunda Guerra. Uma
obsessão de Winston Churchill que acabou cedendo lugar ao projeto de construção
da “cortina de ferro” e da OTAN.
Essa
obsessão inglesa foi repassada aos norte-americanos depois da Segunda Guerra
Mundial e esteve na origem da Guerra Fria. A partir de então, os EUA e a GB
(junto com seus aliados da OTAN), construíram uma gigantesca infraestrutura
militar -material e humana- destinada a “conter os russos” e, se possível,
derrotá-los estrategicamente. A última tentativa foi feita agora na Guerra da
Ucrâniae fracassou uma vez mais.
E
se o projeto atual de Donald Trump de aproximação da Rússia prosperar, ele
estará sucateando toda essa infraestrutura junto com todas as demais alianças americanas
construídas a partir de 1947, com vistas à esta “guerra final” contra os
russos.
Nao
e pouca coisa muito pelo contrário, e muitos líderes euro-atlânticos que
tentaram romper essa barreira ficaram pelo caminho. Podendo-se prever,
inclusive, a possibilidade de algum tipo de atentado ou auto-atentado, a partir
do próprio mundo anglo-saxão, com o objetivo de barrar esta mudança de rumo
norte-americana.
Sim,
porque está sendo rompida e enterrada a aliança estratégica anglo-saxônica, que
foi fundamental para a dominação ocidental do mundo, desde a Segunda Guerra
Mundial, desmontando-se ao mesmo tempo, como um castelo de cartas, o projeto da
OTAN, o G7, e talvez a própria União Europeia.
Mas
nada disto encerra a competição interestatal pelo poder global. O projeto de
Trump diminui a importância da Europa e diminui a importancia da fronteira
europeia da Rússia, deslocando as linhas de fratura da geopolítica mundial para
o Ártico e para o Sul do Pacífico. Mas a própria cobiça de Trump com relação ao
Canadá e à Groenlândia explicita seu projeto de construção de uma grande massa
territorial equivalente à russa, justo em frente à fronteira norte e ártica da
própria Rússia.
E
ao mesmo tempo, o projeto de negócios conjuntos entre russos e
norte-americanos, que vem sendo insistentemente anunciado, sobretudo na região
do Polo Norte, aponta para um possível distanciamento futuro e “pelo mercado”
da Rússia com relação à China, para não permitir que se consolide uma aliança
estratégica inquebrantável entre Rússia e China, ou mesmo entre Rússia e
Alemanha. Porque a China seguirá sendo no Século XXI, o principal competidor e
adversário dos EUA, neste planeta e no espaço sideral.
A
estratégia americana de “destruição inovadora” terá -desta vez- o mesmo sucesso
que teve no século passado, com Richard Nixon e Ronald Reagan?
É
difícil de saber, porque não se sabe quanto tempo durará o projeto de poder de
Donald Trump e seus seguidores. E em segundo lugar não se conhece o impacto
mundial de uma política econômica mercantilista e defensiva, praticada pela
maior economia do mundo. O nacionalismo econômico foi sempre uma arma dos
países que se propõem “subir” na hierarquia internacional, e não de um país que
não quer “descer”.
De
qualquer maneira, do ponto de vista geopolítico o projeto Trump pode
estar apontando na direção de um grande acordo “imperial” tripartite, entre
EUA, Rússia e China, como também pode estar apontando para o nascimento de uma
nova ordem multipolar que lembra, de certa forma, a história europeia do século
XVIII.
Com
a grande diferença que agora o “equilíbrio de forças” do sistema envolvería uma
competição entre potências atômicas de grande dimensão, quase impérios, como é
o caso dos EUA, da China, da Rússia, da Índia, e da própria Uniao Europeia ,
caso ela consiga se reorganizar e rearmar sob a liderança da Inglaterra ou da
Alemanha. E, em menor escala, da Turquia, do Brasil, da Indonésia, do Irã, da
Arábia Saudita e da África do Sul.
Um
mundo difícil de ser administrado, e um futuro impossível de ser previsto.
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