06 março 2025

Trump e o Estado norte-americano

Um Estado sob o controle de Donald Trump
Como garantir que a máquina governamental esteja totalmente alinhada com os projetos presidenciais? Segundo Donald Trump, nomeando aliados para cargos estratégicos, dando um peso significativo à segurança e colocando instituições e círculos de conselheiros mais ou menos informais em concorrência entre si. A abordagem disruptiva e original do ocupante da Casa Branca pode, no entanto, encontrar limites rapidamente
Por Martin Barnay/Le Monde Diplomatique  

 

As declarações de Donald Trump sobre a Groenlândia, o Panamá e o Canadá mais uma vez destacaram sua concepção negocial das alianças, inclusive as transatlânticas. Seu ex-conselheiro de segurança nacional, o general Herbert Raymond McMaster, a resumiu sem rodeios em 8 de janeiro passado, diante do Council on Foreign Relations: Trump considera a União Europeia “acima de tudo como um concorrente econômico”.[1]

O respeito às normas diplomáticas não faz parte da visão trumpista. O estranho passeio do filho do presidente norte-americano, Don Jr., pela Groenlândia – recebido por figurantes usando bonés MAGA (“Make America Great Again”), aparentemente recrutados com a promessa de uma refeição quente – ou ainda o envio a Israel, logo após a posse, de seu velho aliado Steven Witkoff – magnata do setor imobiliário de Nova York sem experiência em assuntos internacionais – para supervisionar o cessar-fogo entre Tel Aviv e o Hamas são exemplos disso.

As primeiras nomeações para seu gabinete parecem obedecer à mesma lógica de ruptura, privilegiando figuras polêmicas e sem experiência governamental, inclusive para a gestão das relações internacionais. Diferentemente do primeiro mandato de Trump, em que algumas de suas escolhas foram rejeitadas pelo Congresso, o processo de confirmação ocorreu desta vez sem dificuldades, com os senadores aprovando quase por unanimidade todos os indicados.

Um detalhe chamou a atenção dos analistas no caso da Groenlândia e do Panamá: o presidente dos Estados Unidos justificou suas ameaças tarifárias em nome da “segurança nacional”. Não é a primeira vez que esse conceito é invocado em um contexto que parece estar mais ligado ao comércio exterior do que à defesa. Já em 2017, Trump, seguido por Joe Biden, utilizou essa justificativa para legitimar o viés protecionista da economia norte-americana, apoiando-se em uma cláusula pouco explorada do antigo Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (Gatt) – precursor da Organização Mundial do Comércio (OMC) – que autoriza um Estado-membro a adotar “todas as medidas que considerar necessárias para a proteção de seus interesses essenciais de segurança”. Rara continuidade entre as duas administraç&otil de;es, esse desvio dos princípios de livre comércio veio acompanhado do bloqueio do órgão de resolução de disputas da OMC. Desde 2019, Washington impede a nomeação de novos juízes para seu tribunal de apelação.

Pilar do discurso político norte-americano, a expressão “segurança nacional” surgiu no pós-Segunda Guerra Mundial, mas seu uso se consolidou durante a Guerra do Vietnã. Por trás desse conceito, distinto da segurança interna (homeland security), que ele engloba parcialmente, desenha-se a visão expansionista dos Estados Unidos sobre seu papel na ordem mundial. Sob sua égide, organizam-se as principais instâncias de formulação da política externa e de defesa, tendo no centro o Conselho de Segurança Nacional (NSC).

Criado no início da Guerra Fria pelo mesmo ato que instituiu a CIA, o NSC depende diretamente da Casa Branca. Seus contornos jurídicos permanecem imprecisos: trata-se de um conselho ministerial restrito cuja frequência das reuniões varia conforme o período e a administração, reunindo o presidente, o vice-presidente, alguns membros do gabinete (ou seja, do governo), o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas e o diretor de inteligência. 

A caixa-preta da política externa

Na prática, o funcionamento do NSC baseia-se em mais de uma centena de colaboradores, divididos em setores geográficos e temáticos, encarregados da coordenação interagências. No comando, o assessor de segurança nacional ocupa um posto estratégico, embora pouco definido, sendo frequentemente visto como um alter ego do presidente para assuntos internacionais – Henry Kissinger sob Richard Nixon, Zbigniew Brzezinski sob Jimmy Carter, Jake Sullivan sob Biden.

A escolha do assessor de segurança nacional indica a orientação de uma administração. A sucessão de titulares no primeiro mandato de Trump – Michael Flynn, H. R. McMaster, John Bolton, Robert O’Brien – refletia certa hesitação entre pragmatismo e intervencionismo assumido, entre um viés pró-Otan e um foco na região do Pacífico. A substituição do diplomata Jake Sullivan pelo indicado de Trump, Michael Waltz, ex-integrante das Forças Especiais, sinaliza um endurecimento da postura, contrastando com os discursos isolacionistas do candidato Trump.

Deputado pela Flórida na Câmara dos Representantes, onde presidiu o grupo de amizade com a Índia, Waltz havia chefiado o setor da África no NSC durante a primeira administração Trump. Desde então, construiu uma reputação de republicano “independente”, diferenciando-se da ala MAGA ao reconhecer a vitória de Biden em 2020 e votar a favor da ajuda militar à Ucrânia – ao contrário do vice-presidente James David Vance e do secretário de Estado, Marco Rubio.

Instituição pouco conhecida, até mesmo nos Estados Unidos, o NSC funciona como uma caixa-preta na formulação da política externa norte-americana. Sua importância variou ao longo do tempo, conforme o perfil dos presidentes e a natureza de sua relação com a administração. Durante a presidência de John Kennedy (1961-1963), permaneceu em segundo plano, pois ele preferia comitês ad hoc liderados por pessoas de confiança. Já sob Richard Nixon (1969-1974), o conselho ganhou papel central com o todo-poderoso Henry Kissinger. Transformando a Casa Branca no epicentro da política externa, Kissinger converteu o NSC em um canal diplomático paralelo, gerenciando os assuntos mais sensíveis – a começar pelas negociações secretas para a reaproximação com a China.

O papel do NSC aumentou consideravelmente após os atentados de 11 de setembro de 2001, tornando-se uma espécie de conselho de guerra permanente. Sua expansão, semelhante às tensões na França entre o gabinete do presidente e o Ministério das Relações Exteriores, gerou controvérsias, especialmente dentro do Departamento de Estado e do Pentágono, cujos dirigentes, sob Barack Obama (2009-2017) em particular, criticavam seu envolvimento excessivo no acompanhamento de operações militares.

O corpo de funcionários do conselho é conhecido por reunir a elite do Capitólio, com membros recrutados entre assessores do Congresso e de grandes agências federais (Departamento de Estado, Pentágono, Tesouro). De menos de cinquenta funcionários sob George H. W. Bush (1989-1993), cresceu para quatrocentos sob Obama e Biden. Símbolo do que alguns chamam de governo permanente ou de “Estado profundo”, suas equipes geralmente são mantidas de um mandato para outro. Com um orçamento modesto – cerca de US$ 15 milhões – em comparação com sua influência, o NSC tornou-se um alvo privilegiado de esforços de lobby, especialmente de delegações estrangeiras, às quais proporciona um acesso muito mais direto aos circuitos de decisão do que as agências federais.

Os presidentes às vezes demonstraram certa desconfiança em relação à instituição, criticando sua falta de compreensão das realidades políticas e seu distanciamento das restrições do poder. Os recorrentes vazamentos de informações também representam um problema: Lyndon Johnson (1963-1969) evitava cuidadosamente as reuniões do NSC, comparando-o a uma “peneira”. Trump foi particularmente afetado por isso: em 2019, dois funcionários do conselho, irmãos gêmeos de origem ucraniana, vazaram para a imprensa o conteúdo de sua conversa telefônica com o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, na qual solicitava uma investigação sobre Hunter Biden, filho de seu antecessor. O episódio desencadeou o primeiro processo de impeachment contra Trump, no qual ex-membros do NSC testemunharam contra ele.

Na véspera de sua posse, Waltz anunciou a demissão de todos os funcionários de carreira – mais de 150 pessoas, a maioria destacada de outras agências por um ou dois anos – para garantir a “total lealdade” do NSC à agenda do novo presidente.[2] Os democratas expressaram preocupação de que essa demissão privasse a instituição de parte essencial de sua expertise. De fato, a nova equipe tem um perfil altamente ideológico, dominada por veteranos da primeira administração Trump e assessores vindos das fileiras republicanas no Congresso. Ao contrário dos cargos ministeriais e das nomeações de embaixadores, os chefes de setor não precisam de aprovação parlamentar.

Os dirigentes do NSC, no entanto, terão de lidar com uma equipe de emissários especiais nomeados por Trump que respondem diretamente ao Salão Oval, cada um com recursos próprios e encarregado de defender a linha presidencial em áreas estratégicas. No caso do Oriente Médio, o dispositivo será denso, contando com Steven Witkoff, além de Massad Boulos, sogro de Tiffany Trump – filha do presidente –, nomeado assessor pessoal da presidência para assuntos do Oriente Médio. A esses dois aliados de Trump se soma Mike Huckabee, pastor batista e ex-governador do Arkansas, figura central da direita evangélica e agora embaixador dos Estados Unidos em Israel.

Já os escritórios da Ásia Oriental e de Assuntos Tecnológicos do NSC, confiados respectivamente a Ivan Kanapathy e Dave Feith – dois fervorosos neoconservadores anti-Pequim –, terão de coexistir com o inevitável Elon Musk, codiretor do novo Departamento de Eficiência Governamental (Doge), que mantém laços comerciais importantes com a China.

Trump pretende, assim, duplicar ou até triplicar os cargos responsáveis pela política externa. Dezenas de representantes da presidência foram nomeados para a América Latina, a África, o Reino Unido, a Rússia e a Ucrânia. Esse tipo de nomeação tem a vantagem de não exigir a confirmação do Senado. Algumas designações permanecerão simbólicas – como a dos atores Sylvester Stallone, Jon Voight e Mel Gibson para o cargo de embaixadores em Hollywood –, mas outras podem ocupar o centro das atenções, como a de Jared Kushner, genro do presidente, que durante o primeiro mandato se impôs em vários assuntos importantes – a renegociação do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta) e dos Acordos de Abraão –, para desgosto dos diplomatas de carreira.[3]

Waltz também anunciou que a administração Trump reintroduziria uma ordem executiva de 2020 que facilita a demissão de funcionários federais. Uma espada de Dâmocles sobre a cabeça dos trabalhadores afetados, mas também um sinal para os parceiros internacionais – China, União Europeia, membros da Otan – do esperado alinhamento da máquina estatal norte-americana com a estratégia presidencial.

Essa pressão presidencial demonstra uma Casa Branca determinada a garantir os meios para alcançar suas ambições. Até o momento, ela mal encontrou resistência – e por um motivo claro: o método Trump, testado durante seu primeiro mandato, fortaleceu o domínio econômico e militar dos Estados Unidos sobre o restante do mundo, especialmente sobre os antigos aliados europeus e japoneses.

No entanto, diante dessa composição heterogênea – um gabinete composto de catorze bilionários sem experiência política –, é difícil não se lembrar do precedente Nixon. O modo de exercício do poder do atual presidente remete, de fato, à abordagem heterodoxa de seu antecessor republicano, especialista em golpes ardilosos. Ambos construíram sua presidência em torno de figuras fora do convencional, muitas vezes alheias à esfera política. A nomeação de Elon Musk, grande doador da última campanha de Trump (US$ 288 milhões), como “carrasco da máquina estatal” ilustra isso perfeitamente. Os expurgos conduzidos pelo Doge na função pública federal lembram o início do segundo mandato de Nixon, quando, em 1973, no dia seguinte à sua reeleição, ele exigiu a demissão de cerca de 2 mil altos funcionários. Já fragilizado internamente, seu unilateralismo – deixando de lado o Velho Continente para se concentrar quase exclusivamente em Moscou e Pequim – acabou por isolá-lo no cenário internacional. Paralisado pelos déficits herdados de seus antecessores, sua combatividade política – quase paranoica – o deixou indefeso diante das revelações do Watergate.

Trump não está imune a um destino semelhante ao de Nixon. Os focos de instabilidade, especialmente os geopolíticos, permanecem numerosos: uma possível suspensão das sanções contra a Rússia, ou até mesmo contra o Irã, ou a retomada do consumo na China poderiam reequilibrar os termos de troca em detrimento dos Estados Unidos. Soma-se a isso o risco de um evento imprevisto – uma escalada em Israel ou em Taiwan – que obrigaria Washington a intervir… ou, ao contrário, a se manter à margem. Apesar de sua habilidade em cultivar a ambiguidade e a saturação de anúncios frequentemente contraditórios, Trump não poderá jogar indefinidamente em todos os tabuleiros.

A estabilidade continua sendo o principal desafio da administração. Durante seu primeiro mandato, Trump teve quatro conselheiros de segurança nacional, o mesmo número de chefes do Estado-Maior e cinco diretores de comunicação, e realizou catorze substituições em seu gabinete – uma taxa de renovação sem precedentes entre seus seis antecessores.

[Ilustração: Galvão Bertazzi]

Leia: China + Rússia no contexto global https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/02/china-russia-no-contexto-global.html

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