20 maio 2025

Cláudio Carraly opina

Entre mundos: a sabedoria do oprimido
Cláudio Carraly* 

Nos interstícios do poder e da cultura, forma-se um tipo particular de conhecimento: o saber do oprimido. Trata-se de um acúmulo ampliado, plural, muitas vezes invisível aos olhos das epistemologias dominantes, mas profundamente potente. O sujeito marginalizado, especialmente aquele oriundo das periferias do mundo, do sertão ao sul global, da favela às ex-colônias, carrega em si não apenas a gramática de sua própria existência, mas também a linguagem do poder que o oprime, ele é bilíngue em estruturas de dominação.

Tomemos como ponto de partida nosso país, o jovem do nordeste, migrante real ou simbólico, desde cedo precisa se alfabetizar não apenas nas letras da escola, mas nos códigos de prestígio do centro dominante. Aprende a reconhecer sotaques, gírias, referências midiáticas, posturas esperadas e até as caricaturas e estereótipos que fazem dele e da sua gente. Decifra as narrativas do Sudeste, as músicas das rádios nacionais, as estéticas dos grandes jornais, não apenas compreende, mas muitas vezes reproduz, com domínio técnico e profundo senso analítico. Vive em trânsito.

Enquanto isso, o jovem das regiões centrais, herdeiro inconsciente do monopólio narrativo, permanece alheio à riqueza dos dizeres de quem está longe demais das capitais, desconhece completamente as tradições, signos e saberes que são profundamente ricos. Esse desnível não é casual, trazendo para discussão o aspecto transnacional, ele expressa o que Boaventura de Sousa Santos chamou de epistemologias do sul: formas de conhecimento historicamente marginalizadas, silenciadas, apagadas por um sistema-mundo que universalizou a experiência do Norte global como a norma, e a do Sul como exótica, essa vista como subalterna ou folclórica. A força do saber periférico está em seu caráter híbrido e adaptativo: O oprimido precisa compreender mais que o opressor para sobreviver, resistir, resinificar e crescer.

É uma repetição histórica, um ouroboros, durante os séculos de dominação europeia, os africanos sequestrados e escravizados precisavam aprender as línguas dos colonizadores, seus gestos, seus códigos religiosos, sua organização social, sob pena de punição, exclusão ou morte. Já os senhores brancos, donos das senzalas e das igrejas, em geral jamais aprenderam os idiomas bantos ou iorubás, os significados dos orixás, os saberes medicinais ancestrais. Em Angola, Congo, e mesmo no Brasil, o africano conheceu profundamente a Europa, mas a Europa jamais compreendeu a África.

Essa assimetria ainda é atual, um intelectual indiano lê Michel Foucault, Judith Butler, Marx e Kant. Mas quantos pensadores parisienses leram B. R. Ambedkar, Gayatri Spivak ou Vivek Chibber? O estudante latino-americano reconhece obras de Jürgen Habermas e John Rawls. Mas quantos alemães já ouviram falar de Aníbal Quijano, Silvia Rivera Cusicanqui ou Paulo Freire? A divisão internacional do trabalho intelectual permanece colonial: o Sul conhece o Norte, mas o Norte ainda ignora o Sul, inclusive onde este é indubitavelmente mais qualificado e teoricamente superior.

É nesse cenário que emerge o conhecimento estratégico do marginal, não é apenas resistência; pode ser uma leitura refinada do mundo. Como disse bell hooks, a marginalidade pode ser um local de radical abertura, um ponto de vista a partir do qual se enxerga o todo, incluindo o centro, enquanto o centro vê apenas o reflexo de si mesmo, o periférico é cosmopolita à força, ele vive entre mundos. Um jovem do subúrbio de Dakar conhece com desenvoltura a culinária, programas de TV e música francesa, e ainda é capaz de recitar inúmeros trechos do Alcorão. Um morador do sertão do nordeste conhece a letra inteira de um funk carioca, mas também os usos do extrato de umbuzeiro e como usar a palma na seca para alimentar os animais. Um indígena brasileiro decodifica as instituições ocidentais para conseguir demarcar sua terra, ao mesmo tempo em que preserva a cosmologia ancestral de seu povo. São todos transfugas da fronteira, por imposição perversa da latitude e longitude do local do seu nascimento.

Esses sujeitos acumulam, portanto, um capital simbólico ampliado, eles não apenas detêm seus saberes originários, mas também dominam com lucidez crítica os códigos hegemônicos, são intérpretes multiculturais. No entanto, sua erudição popular, seu conhecimento prático, sua leitura dupla do mundo, não são valorizados pelas instituições e academias. Isso revela o quanto a modernidade continua presa à estrutura colonial que a fundou: só reconhece como universal aquilo que nasce no centro, e normalmente só repara a borda quando o próprio centro observa algum valor por lá.

A escritora portuguesa de pais africanos, Grada Kilomba, em seu livro Memórias da Plantação, mostra como o saber do colonizado é constantemente deslegitimado e expulso do território do pensamento. Quando o negro, o indígena, o pobre ou o migrante fala, muitas vezes não é escutado, ou é ouvido como “experiência” e não como “teoria”. O saber das margens é tolerado como curiosidade, mas raramente aceito como epistemologia válida.

Esse fenômeno é reproduzido também na mídia, nas artes, moda, cinema, na política institucional, em tudo. Quantas vezes as gírias das periferias viram moda nos centros urbanos sem o devido crédito ou contexto? Quantas vezes expressões de resistência estética são apropriadas sem reverência às suas origens? A periferia fornece o ritmo, o sabor, a cor, a magia, o conhecimento, mas não o poder de nomear ou conduzir.

Contudo, há fissuras nessa hegemonia, a circulação digital e midiática tem provocado em parte uma reconfiguração desse jogo. A democratização da internet tem exposto jovens periféricos a múltiplos universos culturais e, ao mesmo tempo, projetado suas linguagens para além do gueto e diminuindo as fronteiras. Coletivos de comunicação popular, lideranças indígenas e quilombolas, escritores das periferias, rappers e poetas, grafiteiros, estão transformando sua vivência em narrativa política, estética e pedagógica. Nunca tantos marginalizados souberam tanto sobre tantas realidades de tantos outros marginais. Porém, o centro pouco se move, assim, o peso da desigualdade epistemológica persiste.

Para nós do Sul Global, é exigido um repertório duplo, por vezes triplo: o sujeito periférico precisa dominar seu contexto local, interpretar os códigos do centro e se orientar num mundo globalizado em constante mutação, é um malabarismo existencial. Mas também vira uma capacidade potencial, essa plasticidade de leitura, essa fluência entre mundos, é um dom de quem se acostumou a caminhar sobre terrenos instáveis, transforma essa pessoa em alguém que pode analisar o micro e ainda compreender perfeitamente o macro.

Nesse sentido, a figura do oprimido é tudo menos passiva, sabe quando traduzir e quando deixar que o centro se perca na própria ignorância, sabe entrar em espaços onde sua presença é questionada e, mesmo assim, ocupar com dignidade e crítica. A capacidade de viver entre códigos, de habitar simultaneamente o mundo do colonizador e o da resistência, é um atributo de profunda complexidade intelectual. Não devemos romantizar a situação, mas compreender a força que advém da escassez.

Refletir sobre esse fenômeno é também repensar as bases de um novo pacto civilizatório, o saber do marginalizado precisa deixar de ser apenas um instrumento de sobrevivência para se tornar um ponto de partida, aquele que conhece a si mesmo e ao outro está mais apto a propor sínteses, mediações, recomeços. O mundo que queremos talvez esteja mais próximo da escuta das periferias do mundo do que da repetição estéril do centro dominante.

Como disse Frantz Fanon, "o colonizado é um homem enredado em dois mundos". Mas esse entrelaçamento, longe de ser um fardo, pode ser uma chave para uma nova concepção de humanidade: múltipla, fluente, inclusiva, atenta às bordas. Uma humanidade em que saber mais não seja privilégio, mas reconhecimento, quem sabe um mundo sem centros únicos, em que cada ponto do que hoje vemos como margem seja o nascedouro de um novo centro que entre em confluências com outros tantos centros mais, até que não haja mais necessidade nenhuma de centralizar.

Essa transformação exige uma ética da escuta, que os centros se abram a silêncios longamente impostos, que o conhecimento deixe de ser um privilégio geográfico e passe a ser uma partilha comprometida. Que o currículo, universidades, bibliotecas, museus, parlamentos e as redações acolham vozes até então secundarizadas, não como ato de caridade, mas como reparação histórica e reinvenção do comum, pela beleza da busca de conhecimento mais pleno, porque, como vimos, o saber do oprimido não é menor, ao contrário, é muito mais vasto, pois abarca um conhecimento incontabilizável, o do seu mundo e o do dele.

Cláudio Carraly - Advogado, ex-secretário executivo de Direitos Humanos de Pernambuco.

Veja: Sul Global, multipolaridade e multilateralismo, contradições e tendências https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/05/sul-global-multipolaridade-e.html

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