O espectro da guerra na Europa
Enquanto a Otan alimenta a escalada belicista, a história alerta: as
lições de 1812 e 1941 ecoam como um aviso à Europa submissa aos interesses do
Pentágono
João
Quartim de Moraes/A Terra é Redonda
1.
Sistematicamente
destilada por monocórdica e incessante campanha de intoxicação promovida pelos
grandes meios de comunicação daquém e dalém mar, a russofobia prospera na
Europa dos monopólios e dos trustes. Ela se prepara para entrar diretamente na
guerra em curso entre a Federação Russa e a Ucrânia cripto fascista.
Sempre é
importante lembrar que, contrariamente ao que sustentam os sabujos do
imperialismo, esta guerra começou com o golpe de Estado parlamentar de 22 de
fevereiro de 2014, que depôs o presidente Victor Yanukovych porque ele era
contrário aos que pretendiam quebrar o estatuto de neutralidade da Ucrânia para
fazê-la aderir à União Europeia e à máquina de guerra comandada pelo Pentágono.
De Barack
Obama, dos líderes da União Europeia e da direita em geral, vieram aplausos aos
golpistas. Mas as populações de língua russa da região do Donbas (Lugansk e
Donetsk) recusaram-se a aceitar o golpe. Proclamaram a independência dispostas
a defendê-la de armas na mão.
Entrementes, a
junta cripto fascista que assumira o poder na Ucrânia desfechou uma vaga de
perseguições contra russos em geral e comunistas em especial, revogando a lei
que reconhecia o russo como língua oficial em regiões onde ele predominava.
As fontes
minimamente objetivas (muito raras no “Ocidente”) reconhecem que Vladimir Putin
empenhou-se em evitar uma escalada no confronto, solicitando publicamente aos
dirigentes das duas já proclamadas repúblicas populares de Lugansk e de Donetsk
que postergassem o referendum para ratificar a independência, de modo a
permitir negociações com o governo instalado em Kiev.
As negociações
não prosperaram. A junta golpista logo recorreu à solução de força, atacando as
regiões insubmissas e ocupando boa parte de seu território. Destacou-se nesta
ofensiva uma tropa de choque neonazista, que após se apoderar, em junho de
2014, da cidade de Mariupol, no litoral do mar de Azov, adotou o nome de
batalhão Azov. Assumiu na sequência as dimensões de um regimento, que foi
formalmente integrado à Guarda Nacional Ucraniana.
Cabe-lhe a
principal responsabilidade pelos métodos de guerra suja contra a população de
língua russa (torturas, estupros, pilhagem e “limpezas étnicas”). Em agosto,
porém, os autonomistas do Donetsk viraram a sorte das armas, infligindo pesada
derrota aos agressores em uma batalha nas redondezas da cidade de Ilovaisk, que
constrangeu a junta de Kiev a retomar as negociações.
2.
Em setembro de
2014, uma discussão trilateral com a participação da Rússia, da Ucrânia e da
União Europeia em Minsk (Belarus) estabeleceu um protocolo de cessar-fogo em
Lugansk e Donetsk. O êxito foi muito pequeno; os combates se reativaram até que
um novo encontro, em fevereiro de 2015, dito Minsk II, reduziu a intensidade do
confronto (retirada de armamento pesado da linha de frente, troca de
prisioneiros etc.), mas sem chegar a um acordo durável.
A extrema
direita ultranacionalista, instalada na cúpula do Estado ucraniano, preferiu
manter o estado de guerra, multiplicando os ataques às duas regiões
conflagradas e continuando a considerá-las “territórios ocupados”, a serem
recuperados com o apoio de seus protetores ocidentais.
As tensões se
agravaram lenta, mas inexoravelmente. Relativamente ao objetivo estratégico da
Otan, manter a Rússia cercada na frente europeia, a Ucrânia é peça essencial.
Para a Rússia, estratégico é o objetivo de não se deixar asfixiar pela Otan. O
desencadeamento, em 24 de fevereiro de 2022, da “operação militar especial”,
transformou em guerra aberta a guerra larvada que prosseguia há mais de sete
anos.
Difícil saber
se ao tomar a iniciativa e assumir os riscos de invadir a Ucrânia, o governo
russo esperava uma vitória rápida e decisiva sobre o regime de Volodymyr
Zelenski ou se pretendia primordialmente garantir a independência de Lugansk e
de Donetsk. Mas certamente visava também a comprovar, no campo de batalha, que
o cerco da Otan podia ser rompido.
Foi grande a
comoção orquestrada no “Ocidente” perante a “operação militar especial” russa
na Ucrânia. Podemos, entretanto, duvidar da sinceridade da pretensão
“humanitária” dessa reação. Ou a defesa dos direitos e valores humanitários é
uma posição de princípio abrangendo toda a humanidade, ou é uma fórmula
retórica vazia.
A atitude
majoritariamente tíbia, quando não conivente, da opinião pública “ocidental”
perante o genocídio do povo palestino de Gaza, mostrou a que ponto sua
compaixão é seletiva. Nessa incoerência de sentimentos coletivos, além da
russofobia, há uma boa dose de racismo e de nostalgia colonialista.
Considerada no
complexo de suas consequências, a guerra da Ucrânia reativou o ódio por
“Moscou” dos tempos da guerra fria, voltando a polarizar o antagonismo
geopolítico entre o bloco hegemônico comandado pelos Estados-Unidos e o bloco
eurasiático Rússia/China.
Sem dúvida,
esses blocos não são monolíticos, nem abrangem todos os países relevantes. Mas
influenciam em larga medida o curso dos acontecimentos. Sem o apoio financeiro
e militar de seus patronos do “Ocidente”, o fantoche Volodymyr Zelenski já
teria sido varrido para a lata de lixo da história.
À medida em que
a guerra em curso se prolonga e intensifica, a Otan aumenta seu arsenal, não
apenas para suprir a Ucrânia, mas também em vista da ampliação do confronto.
“Se a Europa
quer evitar a guerra, ela deve se preparar para a guerra” escreveu em 19 de
março passado um plumitivo francês, retomando o velho argumento que sempre
justificou as corridas armamentistas. A propósito dessa e de outras ameaças
europeias, Vladimir Putin lembrou como terminaram as invasões de seu país por
Napoleão em 1812 e por Hitler em 1941.
*João Quartim de Moraes é professor titular
aposentado do Departamento de Filosofia da Unicamp. Autor, entre outros livros,
de A
esquerda militar no Brasil (Expressão Popular). [https://amzn.to/3snSrKg]
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Veja: Novo cenário geopolítico mundial e o papel da China https://www.youtube.com/watch?v=xKQYKNKqwyk&t=8s
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