Em Casa Amarela: mercearia
de seu ArthurAbraham
B Sicsu
2012, mudei de residência. O Código de Endereçamento Postal dizia ser Casa Amarela. Quiseram tornar sofisticado. Dois anos depois, mudaram o CEP, mudaram o Bairro. Agora é Parnamirim, mais chique dizem.
Meus sábados tinham
uma rotina. Feira de Orgânico às 5 da manhã, mercado público às 10. Tira-gosto
e rum como obrigação. Era vício, não podia falhar. Como deixei de dirigir, fui
procurar o que seria mais perto.
Mercado de Casa
Amarela, um ambiente simpático. Mas, não fiz ligação. Os bares colados à rua,
muito tráfego, as mesas muito apertadas.
Deixei de ir lá. Por
um tempo, continuei no da Boa Vista, onde me sentia acolhido. Longe de casa, o
taxi depois da birita, um problema a solucionar, nem sempre muito fácil.
Clemilton, primo de
minha mulher, querido. Morava no bairro. Sempre soube escolher bem seus
espaços. Quando professor da UFPE, na Imprensadinha, na Torre, fez seu
escritório diário. Vivendo em casa Amarela havia de me dar uma solução.
“Na Rua da Harmonia,
esquina com Conselheiro Nabuco, há uma mercearia. É lá que me encontro com os
amigos, todo dia às 10 e meia da manhã”. Disse-me sabiamente.
Fui conferir.
Fantástico. Seu Arthur, o dono, com quem logo fiz amizade, os filhos e a
esposa, Dona Dalva, sempre me trataram com respeito e consideração.
Dois atendentes
fraternos. Infelizmente se foram para outro mundo. Mas, eram do coração, muita
consideração, muita empatia.
Zé me contava tudo da
família. Da mãe com que morava, da irmã que o protegia. Histórias que não
esqueço, regadas a cerveja ou destilados. Sempre arrumava um bota-gosto. Nem
que tivesse que convencer Dalva a retirar do almoço da família.
Sônia, sempre
carinhosa, fazíamos aniversário no mesmo dia. O queijo e a mortadela
cortadinha, o salgado esquentado no microondas, a minha bebida preferida, me
conhecia bem, nem precisava pedir. Trazia logo que eu chegava.
É uma mercearia, onde
se compra mantimentos e produtos de limpeza, mas Dalva tem uma mão divina na
cozinha.
O cachorro quente de
charque, a saladinha de bacalhau, o guisadinho de carne, a carne de sol bem
fritinha, tudo me agrada, me dá a sensação de comida caseira. Nem sempre tem,
hoje, quase nunca, mas vale a pena engraxar os beiços com quitutes
maravilhosos.
Não tendo a comida
preferida, Arthurzinho, o filho, me prepara um sanduíche divino. Queijo
manteiga e mortadela, bem farto, esquentado e cortado em cubinhos para
acompanhar os alcoóis de minha predileção. Raul me deu a dica e eu não dispenso
a iguaria.
Sempre chegam pessoas
metidas. Lembro dos primeiros dias que lá fui. Uma madame metida a besta.
Achava que se confundiria como do povo por estar lá.
Observações
totalmente inúteis sobre o arroz, o charque e a carne de sol, tornando a vida
do atendente insuportável. Terminando o besterol pede a Arthur:
- Seu Arthur, prepare
um queijinho coalho no pão, bem quentinho, que esteja derretendo.
Educadamente, o
merceeiro responde:
- Minha senhora, aqui
não é um bar, é uma mercearia.
Ela indignada, aponta
para a mesa onde eu estava, repleta de pratinhos na temperatura correta, e diz:
-Mas, o senhor
esquentou o salgado e o charque para aquele senhor. É discriminatório.
Irônico, o sábio
comerciante responde:
- Foi mesmo???
Obrigado por avisar. Não farei mais.
Ela saiu bufando.
Um local de encontro
de amigos, de conversas sempre divertidas. Polêmicas existem e ajudam há passar
as horas. Mas, com respeito e muito falar mentiras.
Já teve um público
maior. Difícil quem mora no bairro não tenha passado por lá. De desembargador,
médico, engenheiro e delegado até porteiro, entregador de água e varredor de rua.
Todos se unem, todos têm direito a fala. Uns tomando whisky, outros cachaça.
Uns comendo arrumadinho, outros um pedaço de carne seca crua.
Públicos variados
freqüentam o local, quem vai fazer feira, quem vai encher a cara. Cada um tem
seu costume, tem seu horário.
Durante o dia tem seu
perfil, seus freqüentadores.
Os meninos, professores e funcionários do
colégio perto. Para estes, o menu é composto de salgados e batatinhas, sem
esquecer de muito refrigerante.
As meninas da casa de
festa e do cabeleireiro, ainda mais moderno, os freqüentadores da academia de
ginástica da rua com suas roupas que ressaltam os formatos do corpo.
Misturam-se com as
senhoras que vem comprar pão, o detergente, os ovos e alimentos diversificados.
Ambiente muito comportado sem muito atrevimento. É permitida uma mesa de canto,
sempre que se saiba segurar o verbo.
Havia uma banca de
bicho. Uma menina bonita atendia. Além do tradicional zôo esporte, uma
maquineta de jogos.
Serjão, companheiro
de outras farras, me ensinou. Joga-se em qualquer coisa, em qualquer país do
mundo onde haja futebol. Ele fazia uma fezinha semanal. Idos de 2019. Antes da
desgraça das BETs se generalizar, havia alguns lá que apostavam. Até pênalti em
jogo de várzea se previa. Nunca joguei, nunca perdi dinheiro.
Nas noites da sexta
feira se faz o ruído encantador, com excelente som. Dr. Pedro e Leandro
comandam. Muita cerveja, muitos destilados, comidinhas e muita mentira.
Encontros inesquecíveis onde o bom humor prevalece.
A música sempre
impera. Romero traz os amigos. Todos de grande valor, muita qualidade. A noite
se aprofunda, Arthur quer fechar, mas, quem deixa? Agüente um pouco mais que a madrugada ainda
está começando.
Tenho meus vícios.
Depois da minha caminhada, bem cedinho, às vezes, muito raramente, passo lá.
Peço um café, já tendo tomado em casa, e adiciono meia dose de conhaque.
Fantástico, o dia será perfeito.
Meu dia é sábado de
manhã. Como já havia dito. Chego lá pelas dez. Encontro gente querida. Gente
que tem suas histórias.
Marcos e Emanuel,
acompanhado por sua cachorrinha, fazem as honras da casa. Enaltecem os donos e
o local que consideram quase seu.
Dr. Sérgio, pediatra
aposentado que sabe tudo das famílias pernambucanas. Conta a vida de Correntes
e Garanhuns, terras da família da minha mulher, como se eu conhecesse. Tudo que
lhe foi contado por um médico que está no interior de São Paulo e é família
distante da minha companheira.
Um engenheiro
florestal, doido no bom sentido, com uma cultura vastíssima, que adora música
americana e de repente se arvora a dar alguns acordes nas cordas vocais. Até
que não desafina. Toma um conhaque de alcatrão insuportável que chama de café.
Cada um tem seus gostos.
Um publicitário que
veio do Rio, calado, mas que dá belas alfinetadas nos papos desconexos. Adora
Pernambuco e, cansado da ponte aérea, provavelmente aqui se fixará.
Jorge, o bom
engenheiro. Fez-se com muito esforço e trabalha numa grande empresa de origem
local. Afetuoso. Gosta de discutir política e muitas vezes se inflama. Mas,
sempre com muito respeito, pelo menos comigo.
Um aparte quanto a
Jorge. Na Mercearia, usualmente, se faz uma rifa de uma cesta com mantimentos e
bebidas. Ele ganhou e estava viajando. Telefonaram para ele e permitiu que
fossem consumidos os bolos e perecíveis, mas não mexêssemos nas bebidas.
Resolvemos entender o inverso.
Walter, um aviador
aposentado. Tem suas manias. Deixa uma toalhinha para forrar a mesa.
Quadriculada, bem novinha. Lugar de beber tem que ser organizado, segundo ele.
Vai todos os dias.
Clóvis, o artista. Já
chega preparado. Conta suas viagens pelo mundo, além do mundo mágico de sua
arte. Adora um campari e sai como chegou, pronto. Com uma ou duas doses a mais.
Ultimamente,
Alexandre também freqüenta. Arquiteto e professor, com sonhos de viver o
desconhecido. Faz semanas que planeja um estágio na China. Dou o maior apoio.
Conversa e faz desenhos em três dimensões, naquela mesa de bar.
Por fim, chega
Policarpo. Professor de Economia que com sua calma nos agüenta. Uma ou duas
cervejas no máximo. Antes de partir para outro bar. Como chega depois das onze,
pega o grupo embalado. Não entende bem o que falamos, mas sempre disposto a
mais um copo, em pouco tempo se enturma, se torna o centro.
Está feita a mesa.
Sábado após sábado. Saímos ao meio dia. Felizes com o vivido, sem saber o que
falamos, prometendo o retorno, próxima semana não faltaremos.
Rotina de sábado, na
dúvida existencial da vida, uma mercearia bar ou um bar mercearia? Conversa
para mais um trago.
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Leia um poema de Adélia Prado https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/01/palavra-de-poeta-adelia-prado.html
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