Bolsonaro, 1964 e a reparação histórica: do golpe militar à condenação no STF
A condenação de Bolsonaro representa, não apenas a resposta a uma conspiração contemporânea, mas também uma reparação simbólica às vítimas e aos traumas deixados pela ditadura
Renan Bohus/Vermelho
A condenação de Jair Bolsonaro pelo Supremo Tribunal Federal, em setembro de 2025, marca um momento sem precedentes na história democrática brasileira: pela primeira vez, um ex-presidente da República é responsabilizado criminalmente por tentativa de golpe de Estado. Este episódio não pode ser analisado de forma isolada, mas como o ápice de um processo histórico que remonta ao golpe militar de 1964, período em que o Brasil mergulhou em duas décadas de autoritarismo, repressão e sistemáticas violações de direitos humanos. A condenação de Bolsonaro representa, portanto, não apenas a resposta do sistema de Justiça a uma conspiração contemporânea, mas também uma reparação simbólica às vítimas e aos traumas deixados pela ditadura.
É fundamental esclarecer que a condenação de Bolsonaro não se refere aos eventos de 1964; contudo, sua trajetória política é indissociável da apologia àquele regime. Eleito vereador pelo Rio de Janeiro em 1988, Bolsonaro construiu sua carreira sobre uma plataforma corporativista e de exaltação da ditadura, proferindo declarações que negavam o golpe e o celebravam como um ato revolucionário.
Essa narrativa ganhou tração em um terreno fértil: a impunidade dos crimes cometidos durante o regime militar. A Lei de Anistia (Lei nº 6.683/1979), que perdoou crimes políticos, foi interpretada de forma a garantir a impunidade de agentes do Estado responsáveis por tortura, sequestros e assassinatos. O resultado, segundo a Comissão Nacional da Verdade (CNV), foi um saldo de 434 mortos e desaparecidos políticos, além de uma estimativa de ao menos 8.350 indígenas mortos em decorrência de ações ou omissões do Estado.
Ao longo de sua carreira como deputado federal, Bolsonaro notabilizou-se por exaltar a figura de notórios torturadores, como fez em seu voto durante o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, ao homenagear Carlos Brilhante Ustra. Em outra ocasião, afirmou que “o erro da ditadura foi torturar e não matar”. Tais declarações não eram meras polêmicas, mas a consolidação de um projeto político que culminou na autorização para celebrações oficiais do 31 de março durante sua presidência.
Esse discurso de exaltação ao regime militar, combinado a uma narrativa de criminalização da política tradicional, encontrou ressonância em uma parcela da sociedade brasileira descrente das instituições. Apresentando-se como um outsider capaz de restaurar a ordem, Bolsonaro capitalizou sobre a crise de representatividade e, como um fenômeno político, mobilizou uma base fiel contra os Poderes constituídos, elegendo-se Presidente da República.
Sua gestão foi marcada por uma condução desastrosa da pandemia de COVID-19, com posturas negacionistas que contribuíram para a morte de mais de 700 mil brasileiros. Ao não conseguir um segundo mandato, tornando-se o primeiro presidente a não se reeleger desde a redemocratização —, Bolsonaro intensificou seus ataques ao sistema eleitoral. A escalada de teorias conspiratórias sobre as urnas eletrônicas culminou em uma reunião com embaixadores, na qual disseminou informações falsas, ato que levou o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a declará-lo inelegível por oito anos.
A partir de então, segundo a acusação que resultou em sua condenação, Bolsonaro liderou uma organização criminosa com o objetivo de subverter o Estado Democrático de Direito. Em decisão histórica, a 1ª Turma do STF o condenou, por 4 votos a 1, pelos crimes de golpe de Estado, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, associação criminosa armada, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado. A pena foi fixada em 27 anos e 3 meses de reclusão, em regime inicial fechado, além de multa.
Se durante a ditadura a responsabilização foi obstada pela Lei de Anistia, a condenação de Bolsonaro representa um inequívoco gesto de reparação. O sistema de Justiça afirma que não há espaço para conspirações contra a ordem constitucional. Se em 1964 o Estado foi capturado, em 2025 o Estado Democrático de Direito respondeu pela via institucional, sinalizando que, ao contrário de outrora, hoje há limites claros estabelecidos pela Constituição.
A condenação de Jair Bolsonaro é, portanto, mais do que um ato jurídico; é um marco político e simbólico. Ela demonstra que a democracia brasileira, apesar de suas fragilidades, aprendeu com as lições de 1964 e não está disposta a tolerar novas aventuras autoritárias. É, em essência, uma reparação histórica: o Brasil reconhece os fantasmas de seu passado e reafirma que não há futuro democrático sem memória, verdade e justiça.
Renan Bohus da Costa é advogado criminalista
[Se comentar, identifique-se]
Leia também: Luiz Fux e as duas faces da moeda https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/09/minha-opiniao_11.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário