11 fevereiro 2007

A poeta que não sabia amar


De personalidade complexa, cristalina e sem artifícios, a autora de "Qadós" continua sendo lembrada três anos após sua morte. Na revista Cult, por Antonio Naud Júnior:

Mesmo atualmente com suas obras completas (40 livros em 19 volumes) sendo publicadas pela Editora Globo, e seu arquivo no Cedae da Unicamp, disponível para pesquisas, a escritora paulista passou anos em luta contra o esquecimento, o desdém do público e da crítica. De ascendência ibérica do lado da mãe e franco-alemã do lado do pai (os Hilst vieram da Alsácia, região entre a França e a Alemanha), nasceu em Jaú, no interior de São Paulo, em 21 de abril de 1930, estudou Direito na Faculdade do Largo do São Francisco, sem nunca ter exercido a profissão, e lançou o seu primeiro livro em 1950, "Presságio". Lia em francês, inglês e espanhol, mas não falava nenhuma língua muito bem. De rara beleza, comportava-se na juventude de maneira avançada, numa desregrada vida boêmia, escandalizando a sociedade paulista e despertando paixões sem futuro. Em 1966, depois da leitura de "Cartas a El Greco / Raport Catre El Greco", a última obra do grego Nikos Kazantzakis, escrita em 1956, resolveu abandonar essa vida fútil, procurando sentir mais a cintilância do invisível e definindo menos a realidade. Mudou-se para a Casa do Sol, transformando completamente seu cotidiano, passando a enxergar entidades e tendo vivências fora do corpo. Publicou uma série de obras em ficção e poesia (seu teatro, bastante ruim, permanece inédito), destacando-se a obra prima "Fluxo-Floema" (1970), "Qadós" (1973, o livro favorito dela), "Da Morte. Odes Mínimas" (1980) e "Amavisse" (1989). Em 1992, escandalizou o mercado editorial e seus leitores fiéis com "O Caderno Rosa de Lori Lamby", uma pequena e risível novela supostamente pornográfica.

Um comentário:

  1. Anônimo12:41 PM

    Luciano, mais um pouquinho da "louca magnífica", em Alcoólicas, só uns trechinhos.

    bj
    de selenia

    Alcoólicas
    de Hilda Hilst


    É crua a vida. Alça de tripa e metal.

    Nela despenco: pedra mórula ferida.

    É crua e dura a vida. Como um naco de víbora.

    Como-a no livor da língua

    Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me

    No estreito-pouco

    Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida

    Tua unha plúmbea, meu casaco rosso.

    E perambulamos de coturno pela rua

    Rubras, góticas, altas de corpo e copos.

    A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos.

    E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima

    Olho d'água, bebida. A Vida é líquida.

    (Alcoólicas - I)



    * * *



    Também são cruas e duras as palavras e as caras

    Antes de nos sentarmos à mesa, tu e eu, Vida

    Diante do coruscante ouro da bebida. Aos poucos

    Vão se fazendo remansos, lentilhas d'água, diamantes

    Sobre os insultos do passado e do agora. Aos poucos

    Somos duas senhoras, encharcadas de riso, rosadas

    De um amora, um que entrevi no teu hálito, amigo

    Quando me permitiste o paraíso. O sinistro das horas

    Vai se fazendo tempo de conquista. Langor e sofrimento

    Vão se fazendo olvido. Depois deitadas, a morte

    É um rei que nos visita e nos cobre de mirra.

    Sussurras: ah, a vida é líquida.

    (Alcoólicas - II)



    * * *



    E bebendo, Vida, recusamos o sólido

    O nodoso, a friez-armadilha

    De algum rosto sóbrio, certa voz

    Que se amplia, certo olhar que condena

    O nosso olhar gasoso: então, bebendo?

    E respondemos lassas lérias letícias

    O lusco das lagartixas, o lustrino

    Das quilhas, barcas, gaivotas, drenos

    E afasta-se de nós o sólido de fechado cenho.

    Rejubilam-se nossas coronárias. Rejubilo-me

    Na noite navegada, e rio, rio, e remendo

    Meu casaco rosso tecido de açucena.

    Se dedutiva e líquida, a Vida é plena.

    (Alcoólicas - IV)



    * * *



    Te amo, Vida, líquida esteira onde me deito

    Romã baba alcaçuz, teu trançado rosado

    Salpicado de negro, de doçuras e iras.

    Te amo, Líquida, descendo escorrida

    Pela víscera, e assim esquecendo

    Fomes

    País

    O riso solto

    A dentadura etérea

    Bola

    Miséria.

    Bebendo, Vida, invento casa, comida

    E um Mais que se agiganta, um Mais

    Conquistando um fulcro potente na garganta

    Um látego, uma chama, um canto. Amo-me.

    Embriagada. Interdita. Ama-me. Sou menos

    Quando não sou líquida.

    (Alcoólicas - V)

    (in Do Desejo - Campinas, SP: Pontes, 1992.)

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