De personalidade complexa, cristalina e sem artifícios, a autora de "Qadós" continua sendo lembrada três anos após sua morte. Na revista Cult, por Antonio Naud Júnior:
Mesmo atualmente com suas obras completas (40 livros em 19 volumes) sendo publicadas pela Editora Globo, e seu arquivo no Cedae da Unicamp, disponível para pesquisas, a escritora paulista passou anos em luta contra o esquecimento, o desdém do público e da crítica. De ascendência ibérica do lado da mãe e franco-alemã do lado do pai (os Hilst vieram da Alsácia, região entre a França e a Alemanha), nasceu em Jaú, no interior de São Paulo, em 21 de abril de 1930, estudou Direito na Faculdade do Largo do São Francisco, sem nunca ter exercido a profissão, e lançou o seu primeiro livro em 1950, "Presságio". Lia em francês, inglês e espanhol, mas não falava nenhuma língua muito bem. De rara beleza, comportava-se na juventude de maneira avançada, numa desregrada vida boêmia, escandalizando a sociedade paulista e despertando paixões sem futuro. Em 1966, depois da leitura de "Cartas a El Greco / Raport Catre El Greco", a última obra do grego Nikos Kazantzakis, escrita em 1956, resolveu abandonar essa vida fútil, procurando sentir mais a cintilância do invisível e definindo menos a realidade. Mudou-se para a Casa do Sol, transformando completamente seu cotidiano, passando a enxergar entidades e tendo vivências fora do corpo. Publicou uma série de obras em ficção e poesia (seu teatro, bastante ruim, permanece inédito), destacando-se a obra prima "Fluxo-Floema" (1970), "Qadós" (1973, o livro favorito dela), "Da Morte. Odes Mínimas" (1980) e "Amavisse" (1989). Em 1992, escandalizou o mercado editorial e seus leitores fiéis com "O Caderno Rosa de Lori Lamby", uma pequena e risível novela supostamente pornográfica.
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Um comentário:
Luciano, mais um pouquinho da "louca magnífica", em Alcoólicas, só uns trechinhos.
bj
de selenia
Alcoólicas
de Hilda Hilst
É crua a vida. Alça de tripa e metal.
Nela despenco: pedra mórula ferida.
É crua e dura a vida. Como um naco de víbora.
Como-a no livor da língua
Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me
No estreito-pouco
Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida
Tua unha plúmbea, meu casaco rosso.
E perambulamos de coturno pela rua
Rubras, góticas, altas de corpo e copos.
A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos.
E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima
Olho d'água, bebida. A Vida é líquida.
(Alcoólicas - I)
* * *
Também são cruas e duras as palavras e as caras
Antes de nos sentarmos à mesa, tu e eu, Vida
Diante do coruscante ouro da bebida. Aos poucos
Vão se fazendo remansos, lentilhas d'água, diamantes
Sobre os insultos do passado e do agora. Aos poucos
Somos duas senhoras, encharcadas de riso, rosadas
De um amora, um que entrevi no teu hálito, amigo
Quando me permitiste o paraíso. O sinistro das horas
Vai se fazendo tempo de conquista. Langor e sofrimento
Vão se fazendo olvido. Depois deitadas, a morte
É um rei que nos visita e nos cobre de mirra.
Sussurras: ah, a vida é líquida.
(Alcoólicas - II)
* * *
E bebendo, Vida, recusamos o sólido
O nodoso, a friez-armadilha
De algum rosto sóbrio, certa voz
Que se amplia, certo olhar que condena
O nosso olhar gasoso: então, bebendo?
E respondemos lassas lérias letícias
O lusco das lagartixas, o lustrino
Das quilhas, barcas, gaivotas, drenos
E afasta-se de nós o sólido de fechado cenho.
Rejubilam-se nossas coronárias. Rejubilo-me
Na noite navegada, e rio, rio, e remendo
Meu casaco rosso tecido de açucena.
Se dedutiva e líquida, a Vida é plena.
(Alcoólicas - IV)
* * *
Te amo, Vida, líquida esteira onde me deito
Romã baba alcaçuz, teu trançado rosado
Salpicado de negro, de doçuras e iras.
Te amo, Líquida, descendo escorrida
Pela víscera, e assim esquecendo
Fomes
País
O riso solto
A dentadura etérea
Bola
Miséria.
Bebendo, Vida, invento casa, comida
E um Mais que se agiganta, um Mais
Conquistando um fulcro potente na garganta
Um látego, uma chama, um canto. Amo-me.
Embriagada. Interdita. Ama-me. Sou menos
Quando não sou líquida.
(Alcoólicas - V)
(in Do Desejo - Campinas, SP: Pontes, 1992.)
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