Ampulheta, uma viagem no tempo
Waldir Pedrosa Amorim*
Possuía estranha obsessão por uma ampulheta antiga herdada de seu bisavô, guardada cuidadosamente sobre a escrivaninha. A confluência daquelas duas formas cônicas dispostas em sentido oposto, separadas por um diminuto estrangulamento havia lhe dado a mais que perfeita noção do tempo.
Grãos finíssimos a escoarem lenta e continuamente por um pertuito pré-determinado, obedecendo à mais singela lei da gravidade, conferiram-lhe a percepção da inexorabilidade do que passa e não retorna, do acontecido que não retroage, do feito que não se desfaz.
Grãos medonhos bem mais plangentes que o tique-taque do relógio das horas, com mais poderes que os sinos da matriz.
Aprendera quando o tempo fora imensurável e despreocupado, quando pertencera aos relógios de sol como marco de sombra refletida, quando teria sido vela consumida sobre a cabeça dos escravos que o anunciavam. Escravos do tempo, pensou consigo, como outros se transmutariam em escravos do tempo anunciado.
Lembrou que ganhara dos filhos um relógio de pulso capaz de fazer conferir as horas em qualquer latitude do mundo. Mal sabia ajustá-lo para as horas de Paris, Nova Iorque, Moscou, Buenos Aires, Londres e do Rio de Janeiro. Conferia-o para as horas brasileiras, ou, melhor dito, do seu pequeno rincão onde se deslocava daqui para acolá a cumprir seus passos comedidos gastos na condução repetitiva da rotina.
Era noite, e diante da velha ampulheta rememorava o tempo das crianças. Sabia que a elas não se podia prometer um tempo por demais comprido. Aprendera que quanto menores, mais o aguardar se transformava em eternidade. Com seus avós aprendera o tempo paciente dos idosos. Consigo próprio, o tempo doce das conjecturas, o duro tempo das conquistas e o amargo tempo do desprazer.
Havia jantado e sentara-se para ler um pouco, devanear um pouco, quem sabe escrever um pouco. Curto era este necessário tempo noturno que por vezes lhe retribuía manhãs sonolentas quando varava as madrugadas, por entusiasmo, por obsessão. Era seu modo de se refestelar de um tempo útil em significados.
Vigilante, lá estava sua ampulheta escorregando uma metáfora de vida. Rabiscou um poema e inquieto foi deitar tomando um livro de poesia de Elliot para relê-lo enquanto o sono lhe possuísse. Descobriu um poema iniciado assim: Eis-me aqui, um velho em tempo de seca, / Um jovem lê para mim, enquanto espero a chuva....... Na epígrafe do poema, uma citação de Shakespeare: Não és jovem nem velho, / mas como, se após o jantar adormecesses, / Sonhando que ambos fosses. Adormeceu e sonhou. Seus sonhos, deslocados do tempo, diziam da atemporalidade dos mistérios de sua alma.
* Do livro “Palheiro Cotidiano – Contos e Crônicas”
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