17 novembro 2013

A vida do jeito que é


Lava tripas
Marco Albertim, no Vermelho

O fustão furta-cor do vestido da velha absorveu o cinzento cambiante das paredes da casa. Sentada ao lado de uma mesa, não quis se dar conta de que a cor escura da garrafa de cerveja, não tinha uma semelhança casual com sua pele; a secura de ambas, com riscos curvos de cima a baixo, mostrava a sorte inevitável do fim próximo.

- Eu vim morar aqui há quarenta anos - disse a velha, sem evitar a umidade espumosa na comissura dos beiços.

Às nove horas, o sol há muito se acumpliciara com a infertilidade do chão de areia granulada, cinza, na frente da casa; da casa e de todo quarteirão sem atalhos, inda que sinuoso, na margem do rio Lava Tripas. A velha sentara-se de modo a exibir, sem afetação, familiaridade com o canto de sua escolha. O rancor natural do sol, irrompera porta adentro, acentuando a cor indecisa das quatro paredes.

A velha, sem sinais de incômodo no couro calcinado, mantinha uma conversa chocha com outra de sua idade. Dona Cema sentara-se em frente, junto a uma mesa no lado contrário, vizinha à porta de acesso às prateleiras da bodega. Nos fundos, um quarto e a cozinha com as paredes chamuscadas de fumaça e de tisna nos lados e nos fundos das panelas.

Dona Cema conservava a palidez do couro; fora branca sem nervuras de doença no rosto, quando moça. Agora, mesmo com o rosto encardido de quem pena com o impaludismo, esconde-se do sol. Acomodara-se na desordem dos fios grossos de borracha na cadeira com braços, pés e espaldar de ferro; distinguia-se, assim, da pobreza  nos casebres tão juntos quanto ostras nos juncos.

- Também cheguei aqui há quarenta anos. - respondeu - Dilermando foi meu marido nos dez primeiros anos. Não aguentou a força da enchente de 83. Entrou no rio para salvar os móveis que a enchente tinha levado. Não sentiu febre. Mas na semana seguinte, foi picado pelo mosquito. Morreu de malária.

Na quarta-feira de uma semana arrastada, a velha do fustão sem cor movia-se com a memória nos anos em que se cria tão fértil quanto as águas então limpas do rio Lava Tripas. Quando montara casa, o rio não tinha nome, era um riacho afluente do rio Beberibe; não tinha nome nem o bodum dos detritos jogados pelo hospital a sua margem. O hospital mudou-se para outro endereço. O rio manteve o nome que lhe dá fama. Os moradores, tangidos pelas plantações de cana, e ali jungidos, fungaram o vapor da lama; devolvem-no ao rio nos trapos imundos, no que  fora o madeirame inteiriço de uma cama patente.

Dona Cema não se queixa do lixo que se amontoa na superfície e nas margens do canal das Tripas - o rio se encolhera; o nome, seguindo-lhe o rasto, deixara-se desfalcar na pronúncia. Mesmo porque, também ela se despoja do lixo doméstico na crosta dura da água sem correnteza.

As duas, tão sós quanto o oco da bodega, não se olhavam; tinham na fundura das órbitas o cansaço sem queixas de uma solidão velha. O bodum do canal, entranhado nas paredes da casa, não era de todo sorvido por causa do cheiro do charque gorduroso na panela sobre o lume chiante do fogo no fogão.

A negra, com um olho na memória e outro na segunda garrafa de cerveja, já sente a demência sobre o que ainda lhe  reserva a escassa fortuna. Vê o negro vistoso com quem dividira a estreiteza das molas da cama patente.

 - Senta, Silvino. Não bebe comigo não, pra não se queixar de dor no fígado.

- Dilermando bebe sem ter medo de doença. Só se queixa do cheiro podre que vem do rio. Mas não tem medo de se banhar da cintura pra baixo, quando vai arrancar ostra. Traz ostra e aratu pra comer ensopado.

O negro vistoso tem uma cor indistinta nos trajes de porteiro do hospital. O sol que  dá luz à sala da bodega, não alumia sua silhueta. O bodum do canal, entrando na porta da frente, restaura o cheiro de éter sorvido no hospital. Do lado do crioulo, Dilermando, sem traços no rosto da mesma cor de dona Cema, não diz uma palavra; só a queixa que resiste à febre da malária. 
 
As duas não têm  fome. A memória não lhes dá fome.

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